sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

EQUILÍBRIOS DIFÍCEIS 2


Entretanto, a minha mãe, senhora de silêncios demorados, parada a olhar, sorriso embevecido. E gosto de pensar que de mim, portanto, de mim. Cruzou-me a mente o perverso de um pensamento, e se eu não aprendesse? E logo a procurar asa, eu aprendo a andar de bicicleta, não aprendo, mãe? Ela não mexeu o sorriso e como a acordar, tenho mais que fazer. E afastou-se. Sempre que eu perguntava o óbvio, deixava-me sem resposta; por ausência de discernimento, este facto contristava-me, imergia-me numa irritação mansa de perguntas repetidas. Eu ainda era toda óbvia. Hoje? Bom, mudei para muito óbvia. Fiquei ali, em salamaleques de adoração. Palpava-a a medo e a seguir esfregava o lugar onde os meus dedos suados do estupor, uma marca; corria-lhe em vagar e enlevo o delgado do corpo; mal tocava a campainha metálica, com medo de estragar; levantava a roda de trás e girava-a em admiração. E ficaria até quando, se o meu pai, rapaz de pouco sonho e muito trabalho, não me cortasse o devaneio Vai mas é guardar a bicicleta que tens de te habituar a pô-la no descanso. Anda cá aprender como é. E fui descansá-la e fechá-la à chave que a gente nunca sabe se às bicicletas não lhes dá para se escapulirem no escuro da noite. E é melhor prevenir.

Ao serão, as minhas irmãs indiferentes àquela sorte grande, não falavam dela. Estavam parvamente na sua vidinha normal, sem respeito nem interesse pelo meu asteroide. A mais nova, caracolinhos desdenhosos, cavalgava um animal de plástico cozinha fora e para a minha estrela nem um ámen. Adormeci contente de no dia seguinte começar a pedalar. E por entre descargas de sono, ainda espantava nebulosas dubitativas, “é a sério, mesmo minha”.

A bicicleta foi o meu Cristo em objecto, criou-me a história e a pré-história.

No dia seguinte, o meu pai antes de sair, deu-me a aula de código: “Não custa nada, é só dar aos pedais e olhar para a frente.” E abalou. A seguir, eu libertei-a do trinco da porta e fui para a rua experimentar, disposta a cumprir, dava aos pedais e olhava para a frente. Pensei que a descida da minha casa à estrada era boa e levei-a para lá em prestezas de afinador de pontaria. Um bocadinho mais à frente, não, um bocadinho mais atrás, aqui não que está um alto…etc. A mãe disse de passagem, como se não fosse importante, para aprenderes tens de te sentar. E sentei-me a constatar que chegava com os pés ao chão. É claro que mal dei aos pedais, caí. E voltei a cair. E depois, e depois, e depois….

À hora do almoço doíam-me as mãos de agarrar no guiador e tinha o artelho esquerdo ferido de bater com ele na roda pedaleira algumas vezes que era sempre, de cada vez que pedalava ele a adivinhar o golpe que não falhava, a arrancar mais um bocadinho. Tinham passado mais de três horas, a minha inteligência estava de rastos e temia que a simultaneidade de dar aos pedais e olhar para a frente me fosse impossível. Pensava que tinha que mudar o meu ponto de referência, a Rosa do ti Manel estava a anos luz de mim, mesmo com a 4ª classe em suspenso. Além disso, o meu astro já tinha uns riscos, de tanto cair. Depois de duas quedas em que fizemos corpo uma com a outra, tinha compreendido ser assaz nefasto à minha integridade física continuar. Eu não era de lata. E ela, não sei porquê, persistia em ser unha e carne comigo, caísse por cima, por baixo, a uma ponta ou a outra, aleijava. Nunca senti tanto bico, tanta ponta áspera, tanto peso e dureza a despedir. Portanto, decidi: se não aprendia a andar, chegando com os pés ao chão, aprenderia a não cair. Fui desde cedo uma optimista.

E a tarde não me melhorou. Ao contrário. Calcei meias para os artelhos não baterem na roda pedaleira e logo as rasguei bem como ao dito. Pobre. Cujo. Em sangue. Doíam-me mais as palmas das mãos. Se olhava para a frente, esquecia-me dos pedais, se dava aos pedais, esquecia-me de olhar. Resultado: caía sempre e não conseguia ir além de dois metros. As minhas irmãs olhavam-me estranhas, a duvidarem de que não estivesse brincando aos trambolhões. Nos intervalos de tudo, subia-me uma irritação e mandava-as ir para o outro lado do monte. Mas, mal subia para a bicicleta, bem as via a espreitar. Sérias. Curiosas do desfecho.

À noite, o meu pai fechou-me as contas quando desviou a zundape do caminho e me disse: vá monta-te lá para eu ver o que aprendeste. Nessa altura, já tinha um penso todo armadilhado de trapos grossos contra a parva da roda pedaleira, seguros com fita cola que descolava parvamente. O meu progenitor deu uma gargalhada quando me viu o artelho assim e gritou incrédulo, MAS COMO É QUE TU BATES COM O ARTELHO NA RODA PEDALEIRA?! Fiquei animadíssima. Nem os dois metros consegui. Incentivada, esqueci até o propósito de não cair atada à bicicleta. Desastre. Então, a Rosa – que eu não conhecia – agigantou-se. Uma heroína. Nem eu nem o meu pai sabíamos que existem várias formas de se ser inteligente, portanto… e pensas tu que és inteligente, ah, ah, ah…nem te digo mais nada, a Rosa aprendeu em três horas…

As minhas irmãs caladas, muito sérias. A mãe nem uma palavra sobre. Só o suave da voz, vem jantar que a mãe depois põe-te mercúrio nas feridas. E os olhos das minhas irmãs a arregalarem de pena.

E quando adormeci doíam-me os lados todos de mim.

(continua)


2 comentários:

  1. Como eu gostava de saber contar histórias assim...de um modo divinal, que põe quem lê a ver as o que se passa como se lá estivesse.
    Um dia destes o teu progenitor ainda te vai dizer:
    - Mas COMO E QUE TU ESCREVES TÃO BEM.

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  2. O meu progenitor salta por cima de acontecimentos menores :) A maioria mínima que me conhece aceita-me com esta paranoia sem a curiosidade de conhecê-la. As pessoas têm pouco tempo para ler os outros, marca. Preferem fotos, fixidez na corrente do que somos. É tão voraz a nossa alma de imediato individualista que aborta tentativas de querer amadurecer alguma coisa. E mais se não nos pertence.

    E não contas como eu. Por cada um criar de maneira própria a realidade, a ordená-la dentro de si, talvez - em mim seguramente - para a entender. Mas sabes contar histórias, sim. E tens um imaginário mais polarizado. Podes crer.

    BFS para ti :)

    Mas, curiosamente, todos continuamos a gostar de ser lidos.

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