sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Mágoa

Temos dificuldade em dizer as mágoas da vida. Mágoas são como pedras no rim, a mínima saliência arrepia, o sopro de um movimento dói. Por vezes, a escrita devém substância química e desfaz algumas. Outras desfazemos bebendo água - e cada um sabe do seu H2O - . Ainda não descobri a minha água para deitar fora esta tristeza de tanto fogo a queimar a terra a que dedico talvez mais amor que os papas. Não a beijo, como eles, de rabo para o ar (perdão, senhor papa) mas sofro-a na alma que não sei se tenho e no corpo que me é certo.  Imagino-a indefesa às chamas que, em ápices ventosos, a vão exaurindo de si e lhe calcinam a continuidade da vida.
E os telejornais apostados em que não esqueça, mostram-me olhos gastos de choro, rugas vincadas de desgosto, desalento de quem viu arder o esforço de muito ano.
Tudo que era nosso, perdido. Já imaginaram? É que não consigo.
E os bombeiros exaustos da luta insana onde vários já tombaram. É como se as chamas tenham endemoninhado e tudo arda em sofreguidão e voracidade, violando num repente todas portas. Matando sem destino. O fogo é ausência de interditos.
Certa vez em que passava a ferro, distraí-me e queimei meio centímetro das costas da mão. Primeiro, senti a violência da dor na cabeça, como um choque eléctrico; só depois a mão se tornou tão dolorosa que agigantou e foi como se só ela existisse, o resto do corpo elidido. Hoje é pele morta, em cinco milímetros da minha mão, sinto nada. Penso nos bombeiros que morreram. Lá. No meio do fogo. Ou que sofreram queimaduras de tal índole que o corpo não as aguentou e desistiu. E não me conformo.
 Nas condolências a familiares afirma-se, era voluntário/a, cumpria a missão mais nobre, morreu a defender os outros do flagelo mais atroz. Coisas assim. Mas se eu fosse mãe, mulher, marido, namorado, amiga/o, para além da perda ficava-me a certeza profunda de que o mais atroz é morrer queimado.
Ainda nunca entendi o critério das presidências para as condecorações no 10 de Junho.
Mas sei que os bombeiros são os heróis do povo. Os que morreram. E os que não.
Bem Hajam


PS: e também sei que nada disto aproveita à minha pedra ou a eles. É um zero à esquerda. O meu zero.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Aselhices ImperativaS

Hesitei em escrever este post. Porque vou contar factos que não me pertencem apenas. Mas os imperativos são ordens que se erguem sozinhas, vozes imperiais a que não ouso desobedecer. Eis a minha desculpa para nunca me esquecer de rir de mim: ser imperativo. Cada um desculpa-se como pode. Mas não minto: tenho mesmo imperativos de escrita. Deve ser doença.
Por fatalidade, destino, acaso ou o que lhe queiram chamar, a viagem à Bélgica fugiu ao previsto ainda antes de eu entrar  – eu mesma, seguindo o meu estigma de nascimento, fui, nela,  imprevista. Tínhamos alugado um carro e combinado quem o guiava. Não eu. Despistada e desconhecendo pontos de embraiagem (o problema não é auditivo), excluo-me sempre da condução, facto que muito beneficia os meus acompanhantes e a mim própria. Mas este ano dei por mim sentada ao volante de um automóvel desconhecido. Novinho e cheio daqueles cheiros enjoativos de carro pouco usado. O primeiro que usei sem chave. Na posse do cartão, entrei nele na meia ilusão de quarto de hotel. Liguei-o, experimentei mudanças e pareceu-me óptimo. Mas o mistério aconteceu – acontecem-me muitas coisas misteriosas - ao querer sair com ele. Não encontrei a marcha atrás. Meti as mudanças como indicado e era sempre a primeira que entrava. Vi todo o painel de botões. Revi. Re-revi. Nenhum era o que eu pretendia. Raciocinei, um carro tão jeitoso sem marcha atrás? Mesmo que ele não tivesse jeito nenhum, era impossível (raciocínio assaz destro). Mas, por mais que procurasse, nem sinais. Ou seja, o carro só andava mesmo era para a frente. E, se não fora alguém a meu lado ter-se lembrado, parece que ontem ouvi falar numa patilha, eu teria descido até à estrada a pedir ao primeiro automobilista que me ensinasse onde era a mudança. Não foi preciso.
Aguardava-me a aventura do GPS. Que exige perícia. No GPS. Tudo me eram caixas dentro de caixas, dentro de caixas. Porém, desconhecia a Bélgica. Portanto, levei pendura à conta do GPS. Cujo tinha uma senhora muito expedita a orientar-me, mas que por vezes era acometida de mudez súbita que me fazia dar voltas sem fim às rotundas. Por exemplo. Imagino que enquanto eu andava no carrocel a senhora fosse beber um copo de água ou assim. E não. Não estejam já a pensar que recalculava o itinerário. Nunca tal aconteceu. Mas que, por vezes, eu esperava por ela…é verdade. E a memória que tinha? Dava-lhe o ponto de chegada e ela não mais o perdia de vista. Claro que não podia estacionar em frente dos locais onde me dirigia; se fosse em Portugal gastava mais gasóleo à procura do parque que na viagem, mas ali era fácil. Porém, a minha orientadora não esquecia o objectivo. Mesmo depois, quando eu reentrava e a instruía com outra direcção, a lady fazia questão de, primeiro, terminar o percurso anterior. Uma jóia, aquela senhora. Só não me ajudou nas duas vezes em que deixei o carro ir abaixo.
Da primeira, atrapalhei-me um bocadinho apesar de ter visto que, para o bem comum, estava sozinha na estrada. É claro que levei logo a mão à chave que não havia, fiquei meia parva a olhar o retrovisor ainda sem automóveis, até que me lembrei do botão. Mas afinal o que tinha de fazer era só meter a primeira (estes carros modernos são muito melhores). Levei um bocadinho de nada a descobrir isto tudo, o que afligiu sobremaneira a minha pendura que andava a passar uns tempos aflitos de si mesmos. E vai ela, na sua candura de boia salvadora, enquanto eu procurava a chave que não havia, liga-me os quatro piscas. Nessa altura do campeonato, era a primeira viagem, ainda não tínhamos descoberto onde se ligava o ar condicionado, ou seja, eu desconfiava que um carro tão novo, mesmo na Bélgica incógnita, não podia ter o ar condicionado assim quente e dizia convicta enquanto mantinha a velocidade extrema de 40 km hora, isto é a ventoinha de certeza, o ar condicionado tem um botão qualquer específico. Mas, para quem estava já atrasado por ter perdido tempo à procura de uma reles marcha atrás, arranquei com a ventoinha no máximo – ainda hoje não entendo porquê, mas deve ter sido automático mesmo – o que me impedia de ouvir o que fosse e me fazia quase gritar para ser ouvida na lateral. E o inverso. Portanto, não só não vi os quatro piscas ligados, como não ouvi o tic-tac que faziam. O barulho da ventoinha ensudecia-nos. Continuámos viagem e estava eu muito serena num semáforo, quando a doce pendura, a senhora daquela carrinha está a dizer-te qualquer coisa. E eu incrédula, a mim???! Tens a certeza? Em vez de olhar. Mas, depois de confirmar que estava dentro dos riscos da estrada e isso, arrisquei. A senhora estava a sorrir-me e fez-me um sinal com os dedos das duas mãos a abrir e a fechar. Sou mesmo um bocadinho tapada e gritei para o lado, ela está a brincar ou é a sério? Não sei o que é aquele sinal. E a minha doce pendura em alarme, ai, ela está a dizer que temos as luzes acesas. E eu convicta, não pode ser. Não temos nada; eu ainda nem aprendi a ligá-las. Virei-me de novo para a senhora e embrulhado em linguagem gestual atirei como se ela pudesse ouvir-me e, mais que isso, entender-me, não sei o que é isso das luzes, não percebo nada deste carro. Devem ter sido elucidados gestos porque arrancou num riso aberto que só visto. Outro mistério. Para evitar estragos, arranquei também, com a promessa para a direita, ali à frente há uma faixa onde param os camiões, vamos parar e descobrir se isso das luzes é verdade.
Quando parámos, verifiquei no tablier que as luzes estavam mesmo acesas. E na procura de botões, de repente, saído do nada, zombeteiro e mesmo à frente dos olhos, aparece o do ar condicionado. Hélas! Ligámos e de imediato se fez silêncio. Silêncio, é como quem diz, ficaram os piscas tic-tac, tic-tac. E o repentino da pendura, ai, eu tinha-te ligado os quatro piscas quando deixaste o carro ir abaixo e esqueci-me de os desligar. Ai como eu tenho a cabeça, olha bem a minha cabeça, não desliguei os piscas. E eu de olhos arremelgados à novidade, numa admiração de deuses a descer à terra, Tinhas????!!! Não dei por nada. – e caindo em mim e no ridículo dos semáforos, É pá, a mulher deve-se ter farto de rir com a gente. Então fizemos a viagem até aqui com os piscas ligados…deixa, pronto. Agora já vamos bem. Só já falta saber o que é este sinal verde que nos aparece.
E lá seguimos para casa. Chegadas, fomos ler o manual de instruções. As duas. Ali. A confirmar botões e assim. Para nossa infelicidade, o que queríamos saber estava na penúltima página. Ficámos bem uma meia hora dentro do carro a estudar. Mas aprendemos.
E. Porém. No dia seguinte, queríamos contar uma à outra o que tínhamos aprendido acerca daquele sinal. Mas nenhuma sabia.

Estranho…

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Hiato


A música mora num canto da Praça de Espanha em Bruxelas.  E também noutras ruas, é certo. Mas é ali que se juntam dois ou três músicos de orquestra a tocar os clássicos. E tão bonita a harmonia do som a vogar surpresas na multidão, qual brisa que a atravessa e abranda,  apazigua rostos e alisa expressões, o olhar grato a compassos que estendem mãos à chave da memória. Se uns páram a gosto, noutros, os passos abrandam involuntários. E há quem deslembre, a alma a evadir do corpo posto em admiração. Foi assim com aquela criança que rompeu o círculo involuntário e avançou para o som até ficar frente a frente com os músicos. Quieta, a chupeta a murchar num canto da boca, olhos muito abertos.
E ninguém desfez aquele supremo.

Olhei. E uma compreensão toda nova dominava a praça. No ar, de mistura com as notas, uma exalação rendida e infantil.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A casa da Bélgica


A casa no Inverno. Com frio, talvez chuva carregada. O ar escuro. E depois da porta um calor que lhe vem das paredes, primavera de muito tempo que expõe o amor habitado. Um lar. É assim que a verei sempre, porta aberta no meio do verde, a florir algures num lugar belga. E, contudo, conheci-a num verão em que as petúnias enlanguesciam de calor, o verde assarapantado a amarelecer, mas o que é isto, as árvores a encompridar raízes, falta-nos frescura, sufocamos, por favor acudam aqui onde ninguém nos ouve e tudo começa.
Sorrindo para quem passa, floreiras de petúnias montam-lhe guarda pretoriana. Imóveis. Alegres. Corpo vegetal que se enlaça.  E desmaia levemente no desábito de sol tão insistente. Tenso. Irradiante. Suspiram breves por folhinhas miúdas em queixas rasantes à terra, ai, se nos não trazem umas gotas de água desaguentamos este riso colorido. E se a água um alívio, distendem-se na sua caminha de terra, desenrugam a testa – quem conhece as flores sabe que as petúnias têm o hábito de franzir o sobrolho - vou florir, abrir mais uns botões de que já me estava a arrepender. E as pombas do telhado em arrulhos de aplauso, agradadas da decisão.
Dentro da casa é tudo alegre e fácil; a lembrar o refúgio da floresta onde habitavam os sete pequeninos mais conhecidos no mundo. Em ponto grande. Porque é uma casa de e para crianças. Exceptuando a escada em que cada degrau grita, perigo! Quanto preenchem os filhos o coração dos pais! Não caberíamos no mundo se o sentimento fosse medível. E nesta casa ocupa lugar, as crianças estão por todo o lado: na sala, nos corredores, nas casas de banho, no quintal verde e bonito que nos chama e insiste na pausa.
Os tons da casa são em claridade e alegria. Das flores aos brinquedos, passando pelos acessórios como cortinados, toalhas, bibelots.  Foi projectada e é vivida para gostarmos de viver nela e desejarmos regressar. Um for ever and ever. O amor é assim : chama, insiste suave e veemente. Um lar. Mesmo.