segunda-feira, 31 de março de 2014

Dia do Pai

(continuação)
É claro que, por gosto e vaidade, lhe prolonguei a atrapalhação a repetir, gosto muito de si, pai; e um simultâneo beijo na bochecha. Os olhos da vizinha a estranharem-me num fundo de rugas, de onde saiu esta alma. Abri a porta do carro. Ela, vou de abalada. E zarpou. A outra vizinha, minha distinta tia, foi-se eternizando como quem não quer nada, um olhinho a seguir-me os movimentos e depois, enquanto eu entrava e saía, ziguezagueou, bem devagar, até casa. Uma discreta pessoa.
Carreguei tudo até à cozinha e fui tentar abrir as janelas da sala. Ora, o meu progenitor tem vocação de morcego e vive semicerrado ou em escuridão alumiada por filamentos eléctricos que em regra não funcionam, posto o que o Menino Jesus, garoto simpático e assisado, lhe deu um candeeiro de pé (e lhe sou grata para todo o sempre, deixei de tricotar a tacto). Portanto, entre o cortinado e a janela, havia uma rede de teias de aranha que antecipou o resto da função. Depois, dedos de esforço na ferrugem, consegui abrir as duas janelas e logo entendi que nenhuma das visitas ia chegar tarde. Podiam reunir, atrasar o expediente, sair e ir dar um passeio: chegariam sempre antes de eu terminar.
O meu pai à claridade, no meio da sala, a medir o descalabro e a desculpar-se armado no tio Patinhas que é, podia mandar cá vir a rapariga, mas depois quando o teu irmão chegar está outra vez tudo sujo. Eu a encher um alguidar de água com detergente, ó paiiii!…O pai mora aqui, não pode limpar para o meu irmão, tem de limpar para si. Mergulhei um pano e passei pelo sofá. Olhei: preto retinto. O meu pai, convencido de que eu era mulher para o que havia a fazer, foi para a rua do monte, na maior. Impante. Suponho que, na sua idade, um filho a limpar-lhe a casa seja o máximo. Resmas de amor filial. Comecei a arrepender-me da limpeza. Mas pensei no lanche. E Portanto. Continuei. O pó da lareira e o outro tinham obra acabada. Entrou-me uma filoxera e lavei tudo, até as fotografias dos inglesinhos.
Nos evangelhos, depois de muito instado, sempre a fazer-se difícil, Cristo mudou a água em vinho. Eu, em café; sem outra instância que os meus braços e mãos e a vontade de que nos sentássemos a uma mesa limpa. Porém, um deus faz a diferença: o meu resultado cingia-se à cor e limitava-se a escorrer pelo valado da frente num rego escuro que deixava um fundo preto nos baldes e alguidares a esvaziar. Má ideia, ter esquecido as luvas de latex.
Entretanto, a minha tia terá vindo espreitar a barrela – não dei por nada – e começou a ajudar resmungando com o irmão, que…que…que. Desconversei em silêncio desapetecido. Como não parasse, ó tia, agora não vale a pena, temos é de limpar isto tudo para lancharmos. E notei que ficou contente de a incluir no grupo. Espreitei a rua. O meu radiante pai estava fazendo nada, inchado de orgulho, tonto e antiquado: inflava, a empatar conversa com o vizinho do lado, como se o que se passa em casa não importe, mas no desejo de que o outro saiba que está a passar-se. Um disfarçadão. Pus a cabeça fora da janela e, ó pai, vá lá apanhar as laranjas para o sumo, se faz favor. 
Sobre a máquina de costura de minha mãe, as nossas fotos no casamento do meu irmão. Lindas. É que não tenho memória de ser aquela pessoa. Mas, de cada vez que entro na sala, fico grata a meu pai; quem chegue e não me conheça, julga-me uma estampa. Pareço uma senhora fina. Ainda hoje não sei como me arranjei, deve ter sido o ar de Inglaterra, levei o vestido a mais dois casamentos e não consegui o mesmo aspecto. De toda a maneira, vale. Não me canso de repetir, pai nunca tire daqui estas fotos, ouviu? Pronto, é verdade que o meu irmão casou num dia de Maio soalheiro e que os ingleses iam todos em tons pastel ou primaveris. E nós três de preto. Aí valentes! Da cabeça aos pés. Parecíamos as viúvas da Nazaré. Mas em bonito. Uma espécie de corvos sorridentes e sem pio. Consigo achar-me mais extraordinária naquelas fotos que na do meu próprio casamento que ombreia com elas - eu e o meu pai estamos a sair de casa, de braço dado -; de branco vestida e bastante aceitável para quem não foi à cabeleireira, não se pintou, se esqueceu das luvas e do saiote de baixo. Agarrei uma das fotos e comentei para a minha tia, estávamos tão bonitinhas, não estávamos tia? A minha tia a olhar-se, ai, doíam-me tanto os pés! – afinando a pontaria dos olhos - até se vê aqui, tenho os pés inchados, olha lá para isto – garanto que não se nota - . A minha Natinha é que me emprestou esta mala tão bonita. Olhei a mala, uma assombrosa pega dourada em forma de coração a destacar. Coloquei a foto junto às outras e, Vou acabar de lavar o chão e ver dos talheres e dos pratos; e a tia vai descansar um bocadinho que já não tem idade para isto.
Entretanto, o meu pai pousou um balde de laranjas na cozinha e pedi ao único marido da família – o meu - que fosse buscar a minha irmã na saída do emprego. Depois, tomei embalagem na esfregona e passei da sala ao corredor e à entrada exterior.
Depois a minha irmã fez o sumo enquanto eu ultimava limpezas de pormenor. Foi um agrado olhar a mesa já pronta. Chegou a mana da reunião e lanchámos. Gostei que a minha tia e o meu pai se sentassem  à cabeceira. Comemos e rimo-nos como fazemos sempre que nos juntamos. E o meu pai, muito loquaz, falou de gente que nunca conhecemos e dos tempos em que tinha nove anos e veio sozinho trabalhar numa casa de bicicletas que pertencia a um primo.
Quando as travessas quase vazias e a ninguém apetecia mais bolo eu disse muito depressa: desculpem mas tenho que me ir deitar, encostar as costas nas almofadas, já não aguento mais. Rapidamente a sala voltou a ser ela, a cal das paredes num suspiro liberto, "ainda bem, estávamos numa ansiedade tal que ainda ficávamos verdes". E as cadeiras a gemer preguiças, "estou cansadíssima, caiu-me um peso em cima e o corpo não está habituado a esta vida". No centro da parede, o pesar do relógio repassava-nos: a pureza da memória ainda a retinir cristais e o pêndulo, qual olho cego, colado à brancura do mostrador por onde o inerte dos ponteiros nos esgarçava o passado. Despedimo-nos em harmonia, a minha tia no meio do escuro a acenar para o carro, então quando é que vens outra vez?

Fiz a viagem com a minha irmã mais nova, contámos peripécias, viemos rindo o caminho inteiro. Porém, quando aterrei na cama, amálgama de gente,  soçobrei em cima das almofadas. Em satisfeito e constipado cansaço. 

quinta-feira, 20 de março de 2014

Elucubração

Escrevo aos solavancos. Contra mim. No esforço de quem abre uma concha. Ainda que o alívio de fazê-lo, a distracção da minha subjectividade a emparelhar palavras, a poda de “corta e substitui”, o interminável da função, tenham tudo para me levar à escrita. Porém, só escrevo quando “não pode deixar de ser”. Nem sempre foi assim. No tempo das cartas, quantas folhas enchi! Ultrapassando as sete folhas, antes de chegarem ao vermelho da caixa do correio, obrigava-as a pernoita sob o dicionário, para minguar volume. Nunca ninguém me respondeu verdadeiramente. As minhas amigas escreviam tanto menos e atrasavam a resposta; quem sabe, liam-me na diagonal, ou nem isso. Como se usa na net se passamos a dizer olá e marcar presença ou dar opinião sobre. E vale? Talvez. Porque também as minhas amigas respondiam a uma ou duas das minhas quarenta questões sobre a vida delas e não opinavam sobre o imenso que não era pergunta. Porém, eu, inabalável, a abrir-lhes as cartas com a mesma sofreguidão com que leio os mails em que raramente (nunca) se mostram. Se escrevem.
A vida é assim mesmo. Nasci demasiado tarde para esta vocação de monge copista em iluminuras de semana inteira. Por isso, tenho de me aguentar às palavras em computador e às cartas que são mails, pejados de pps a impar boas intenções e que pouco ou nada dizem do emissor. Descalça. Portanto.
Para que escrevo? Porque gosto. E para meu esclarecimento, a escrita elucida, ordena a cabeça. Mas também para não esquecer. Os portugueses têm o péssimo hábito de saltar os bons momentos. As agruras e nefastices ninguém olvida; mas, o que nos alegra o quotidiano, obliteramos. Razão para o trabalho de arrumação mental que, de tempos a tempos, plasmo na folha onde as palavras, tontas de tinta, pretextam a sua existência de papel. Mão dada linhas fora, descrevem o que foi e libertam-se da memória. Ela agradece a leveza. E eu. Que posso voltar. Oh! Extraordinário ímpeto de regresso!
Quem sabe, uso mal a escrita. Afinal, o passado é o que já foi e, de certa forma, inexiste. Mas é o meu como de saber fazer. É mais fácil descrever o que passou que inventar acontecimentos. Basta silenciar o presente e, logo se instaura desmedida, a diferença temporal dos rituais. Então, dobramos o imaginário à realidade. Conforma-se. Oh, sim. O imaginário é o que salva os escritores. Mas não é comum de todos. Ou é neles mais largo. Diferente.
 Ontem foi Dia do Pai. Bem sei que é consumismo, um nada no amor que lhes temos. Se, porém, retiramos prazer em presença, por que não festejar?
Amanheci palerma, no meio de uma gripe esfarrapada, nariz entupido, tosse, dor de cabeça. E nem me lembrei. Atirei os compromissos para trás das costas e zanzei pela casa com vontade de coisa nenhuma, possivelmente a desfiar mazelas de viva voz para ninguém, salvo a gata, num acto purgativo que me entretém e liberta. Já a manhã aquecia quando liguei o Pc. E isto de haver um Google tem utilidade, logo dei pelo esquecimento: era dia do Pai. Pedalei um pouco na Net, a meter o bedelho em aquis  e alis que prefiro, enquanto marcava números de trabalho. Ninguém. Deixei mensagem e comecei a equacionar mentalmente tarefas e horas: necessitava fazer compras, almoçar, culinar alguns pratos leves, um bolo…e ir mais cedo para limpar a sala de refeição. E fui às compras para um lanche a descair para jantar, munida de minuciosa lista. Que breve se fartou de mim, ainda hoje não sei o que lhe aconteceu. Há coisas assim, são como certas pessoas, torcidas, desaparecem à parva. Portanto, fiz grande parte das compras de cabeça, o mesmo é dizer esquecendo algumas. Uma das minhas convidadas ligou e que sim, que queria ir mas saia tarde e teria de recolhê-la. Tudo bem. Depois de almoço, e com outro sms no telemóvel, a segunda também ligou. E que sim, mas tinha reunião. Que fôssemos lanchando.
Tomei um comprimido para a gripe, pus o avental e fui para a cozinha. Duas horas e meia depois comecei a arrumar a tralha no carro. O lanche. E os apetrechos de limpeza. Fiz mais dois convites e meti-me no carro que tresandava a restaurante. Fiz nova paragem no super e abasteci as faltas da manhã. E depois rumei ao destino satisfeita da surpresa, o palerma do bolo a um lado e a outro em cada curva.
O meu pai encontrava-se na rua, à conversa com duas vizinhas e nem sabia que era Dia do Pai (como é que esta gente mais velha vê Tv ?). Saí do carro toda espevitada, a léguas da matrafona da manhã. E ele, então, o que vieste fazer? Nem avisaste…  e eu a abraçá-lo, vim vê-lo, lanchar consigo, mais daqui a pouco vêm os trabalhadores. Hoje é Dia do Pai. – e rematei a apertar-lhe a gordura da barriga - Gosto muito de si, Pai.
Juro que o meu pai se engasgou com aquele pigarro que tem quando se atrapalha e não sabe o que dizer e que os olhos piscaram até ficarem pequeninos. E aguaram.

(continua)

quinta-feira, 13 de março de 2014

Os Anjos Também Morrem III

Quando a D. Maria dos Anjos saiu, trazia um lencinho diáfano na cabeça, óculos de sol e agitava brancuras salpicadas de sangue a tilintar chaves. Tentou fechar a escola e logo o de sempre, António Manuel anda cá ajudar-me a fechar a porta. O Tóino que já estava na expectativa, queres ver, queres ver…chegou-se à professora meio sorridente, pegou na chave e puxou a porta para cima enquanto a rodava, a explicar, a porta está descaída, a senhora tem de a segurar. Depois retirou a chave e deu-lha. Ela, Obrigada. Vai para o teu lugar e toma conta dos outros lá atrás, que eu vou à frente. O Toino passando entre os colegas, já vamos embora. E eles contentes do início, a acharem-se lindos. Potentes.
            Da viagem até casa da Elisa retiveram o novo da professora lá à frente, pela berma, o seu jeito de polícia, se alguém puser um pé no alcatrão - o Tóino logo a poisar a ponta do chinelo na estrada e a metade de trás a sorrir -, volta para trás. Um general com sua tropa. E fingiam não ver a curiosidade dos automobilistas que, de onde em onde, passavam na Nacional. Era terreno conhecido e, sem olhar o caminho que sabiam de cor, aproveitavam para conversar como se não se vissem há anos ou fossem outros, unidos pelo insólito da morte de que ora dispersavam. Esquecida a escola, restavam-lhes as brincadeiras, a vida de casa, os irmãos, os pratos preferidos, os animais que tinham; e outros, de tanto assunto que as crianças sempre têm. Por vezes, a professora voltava-se e, schchchch. E, sem saber, interrompia digressões entre vacas e burros, cabras e ovelhas, mordidelas de cães e arranhões de gatos comparados ao centímetro, a medir a robustez das feridas, meias a baixar, mangas que se regaçavam numa mostra de evidência necessária, os olhos em admiração ou displicência, a minha ferida é muito maior, queres ver? Enquanto o parceiro, olhos fixados nas costas da professora, tá de costas… tá de costas…tá de costas…virou-se! Num repente, voltavam à normalidade de andar insuspeito e cadenciado que os olhos por detrás dos óculos esquadrinhavam em verde-escuro.
No cimo da subida, esperava-os a D. Vitória, gloriosa viúva, zeladora da igreja e suas jarrinhas de flores; fazia o presépio mais bonito de Portugal: comportava lagos de água numa bacia plástica com peixinhos vermelhos, tinha pontes verdejantes e campos cheios de árvores pequeninas e borreguinhos alvos deitados ou em sereno pasto, que eles mudavam de lugar sem a D. Vitória dar por isso, na ânsia de senti-los sob os dedos carinhosos. E era tudo tão bonito que o Menino Jesus eclipsava, os garotos embrenhados naquela aldeia de brincar onde os moinhos mexiam as velas, as picotas do poço picotavam, os sinos tocavam a rebate. Lá em cima, debaixo da estrela, a sagrada família ficava como deve ser: a guardar o quadro. Mas eles perdiam-se na estradinha de areia clara onde despontavam os reis magos que vinham de tão longe, coitados. Fazia-lhes espécie que não trouxessem ao Menino Jesus bolos, bolachinhas de chocolate como as da D. Vitória, e brinquedos. Pensavam para si, o que é que ele liga àqueles potezinhos com ouro, incenso e mirra que a gente nem sabe o que é e ele também não deve saber. Ninguém pode brincar com aquelas coisas e nem servem para comer. A D. Vitória sofria de Parkinson sem lhe saber o nome e a voz dela tremia no fim de todas as frases e cânticos de igreja porque a cabeça lhe estremecia em constância que os garotos imitavam sem pejo ou maldade, apenas por ser diferente de qualquer outra mulher e a gostarem de coração. A D. Vitória que não tinha filhos e, dizia-se, tinha roubado o marido à irmã. As más-línguas, foi castigo de Deus ser “maninha”. Mas a D. Vitória muito mais bonita que a irmã, um sol. Tinha o seu quê de senhora fina e interessante de conversa, figura alta e esguia, o cabelo meio curto e ondulado, sempre de saias justas compridas e irrepreensíveis, colares de pérolas sobre blusas e casaquinhos claros, foi o meu marido que mas ofereceu; trouxe-mas de Lisboa, nós vivemos lá uns anos. A D. Vitória era a única viúva que não se carregava de preto e a única pessoa na aldeia que tinha em casa bolachas de chocolate que distribuía como e a quem queria. A quem ajudava no presépio, distribuía. Tinha aqueles sapatos disformes, umas barcaças sem jeito de nada, os joanetes crescem-me dia a dia, os meninos nem sabem o que me custa andar a pé; e dava pena olhar-lhe os ossos sob o calçado, umas batatas a arredondá-lo. Eles num palpite, corte os sapatos aí de lado D. Vitória, o meu pai cortou os meus, os dedos já não cabiam lá à frente. E ela num pudor a menear a cabeça convicta, ai não, não. Não posso fazer isso – fazia-lhes uma festa na cabeça – obrigada pela ideia. E eles a pensarem que mal podia haver em deixar aquelas batatas à mostra. Porque de certeza a D. Vitória não tinha menos dores que o aperto de dedos nos sapatos se os pés lhes cresciam ao Deus dará. Mas respeitavam. Sem imitações ao andar de pata choca que distinguiam até na lonjura da subida.
Então a professora mandou parar todos, veio até meio da forma e disse, não se esqueçam que são alunos da escola e que há uma criança que morreu. E façam tudo como eu mandar, sem conversa nem risinhos. Quem não for capaz volta para trás agora, ninguém é obrigado a ir.

E os poucos metros que faltavam foram mais ou menos silenciosos, a morte de novo a infiltrar-se-lhes no pensamento. Já mais perto viram que na porta da Elisa havia um corrupio de gente em tons escuros, a contrastar nas paredes do monte, que coagulou a olhá-los, em cochichos que se pegavam à cal. Eles, formados e na rua, que ninguém os deixou entrar, porque, dizia-se entre dentes, os pais estão a despedir-se do bebé. E a lengalenga da Laura lá à frente, sapato de verniz na mão, minha senhora tenho uma borrega no calcanhar, a professora evaporada, nem sinal do seu lencinho de cabeça. E, de repente, como uma visão, um homem saiu da casa da Elisa. Tinha o rosto muito vermelho e estava esguedelhado, não se parecia com o gigante louro que todos conheciam, a cara dele transformada, cheia de vincos compridos. Vestia uma camisa preta e os ombros andavam abaixo e acima, os olhos sem ver ninguém. Parecia o Chico maluco que nunca sabia onde estava nem com quem. E um garoto lá atrás disse baixinho, cheio de pena, é o pai da Elisa. Então, qualquer coisa lhes apertou a garganta e rasou os olhos, a Laura cristalizada no choro, o sapato ainda na mão. Os ombros do pai indiferentes, num ritmo só seu, abaixo-acima, abaixo-acima, abaixo-acima. Sem lágrimas. Só um som cavo que lhes ficou para sempre. Eles pregados ao chão que nem árvores, esquecidos da mão dada, a assistir àquele desgosto fundo.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Dallas Buyers Club

(continuação)


O melhor actor secundário em 2013 é Jared Leto pelo desempenho de Rayon, “a drug addicted Trans woman with AIDS” (wikipedia), que estabelece uma sociedade com Woodproof na distribuição de medicamentos alternativos; a Rayon cabe grangear a clientela. A personagem ganha-nos de imediato. Prende-nos a força desaparafusada dos olhos azuis e o tom leitoso da pele, ingredientes de uma quase inocência cósmica que soçobra e ajoelha sem luta perante a droga. Que faz cama à provocação de exibir a mulher que em si mora. Ao longo do filme, o personagem não renasce, não lhe emerge uma réstea de esperança, antes persevera na ausência de salvação pessoal. Impressionante caminho.
 Ao contrário de Woodproof que esbraceja e sonha até ao fim, sempre a arrastar outros no sonho, que ganha seis anos aos trinta dias prometidos pela medicina, ele não empolga. Limita-se a passear o seu olhar azul pelo filme como anjo caído progressivamente em desgraça, sem uma queixa. Mas também sem um plano, uma perspectiva, um sinal de desejo. Também ele a emagrecer –  emagreceu 30 quilos – e como que preso a um destino inexorável que o vai sugando. O que Woodproof rejeita, Rayon entrega. E a sua entrega é tão patética que nos enovela o âmago. Contudo, nunca abandona Woodproof e palpita no seu único gesto desejante a extensão da mágoa e do amor, o peso esforçado de vestir “à homem” na visita ao pai, a fim de obter verba que ajude o amigo.
Tudo nele vai cedendo, desistindo, até não ter coragem para injectar-se e ser o amigo a fazê-lo. Nesse balanço que os filmes dão a quem os assiste, palpamos-lhe a desistência e a nostalgia secretas, quando se abraçam quase no final, depois da oferta do dinheiro que é balão de oxigénio no projecto.
Depois encontra um companheiro tão patético como ele, aturdido, quase vegetal. Porém, o medo da morte permanece inexplicável, imune à desistência de viver. E, se nós vislumbramos em Rayon os sinais de um afecto maior, Woodproof não os detecta. Chegando de uma viagem, a morte do amigo choca-o profundamente – quanto pomos de propositada ilusão naqueles que gostamos -  e chora o companheiro de anos, aquele que, dentro dos parâmetros em que viveu, esteve a seu lado. Os dois respeitando o que o outro era na sua liberdade.
E, contudo. Todos os que assistem o filme, sabem desde o início, pelos olhos de Rayon, que a tragédia o habitava.
Deste actor multifacetado que fotografa, escreve e canta e tem uma banda – ou teve –; que realiza; que já tem um activo de papéis vários e aclamados; que tem fama de se deixar submergir pelo personagem a que dá vida e desaparecer como si mesmo enquanto o personagem dura; que é obsessivo com a interpretação; que prima por um visual empático e angelical: auguro uma vida longa. Que, a haver, nos brindará com bons momentos. 
Tchim- tchim!

Nota: Mas. Porque. A verdade é que discordo destas atribuições. O meu melhor actor principal é Leonardo di Caprio; e o secundário, sem sombra de dúvida, Fassebender. Porque são excepcionais, com desempenho extraordinário. O que emana deles é de outro quilate. 

quarta-feira, 5 de março de 2014

Dallas Buyers Club

A atribuição dos óscares levou-me a “Dallas Buyers Club” (2013), filme em stoque que aguardava um apetite que eu sabia não ia chegar. Mas os dois actores ganharam respectivamente o prémio de melhor actor principal e melhor actor secundário. E a memória que não nos larga, a chagar-me o juízo, as palavras de alguém que me quer bem e a quem tanto quero, tu perdes muitos filmes bons por causa dessa atitude; - a continuar, engatilhada em reprovação de ternura – há histórias boas, mas se começam violentamente, tu desistes. E perdes muito. Perdes sempre alguma coisa.
Mas neste filme eu sabia que não era a violência. Dallas Buyer Club é mais. Nele existe o lado da vida que me faz estremecer involuntária, me turva a vista de repugnância e torce o estômago até à agonia do vómito. Quando terminou, dei por mim na casa de banho, as mãos na bancada, uma mulher de meia-idade a observar-me do espelho, agoniada a mais não poder, terrosa de pele, o olhar num desconcerto alucinado. Olhei-a na pergunta muda, “para além da insónia no cesto de aquisições nocturnas, de que valeu vê-lo? De que me valeu assistir o que já sabia acerca da indústria farmacêutica e do HIV?" É certo, surgiram-me uns quantos nomes novos e científicos, mas duraram uma estrela cadente.
O único a merecer-me reparo foi o desempenho dos dois actores. Ainda que a história tenha um lado atractivo de verosimilhança com a realidade que em mim dá a volta, azeda e se torna repelente. Não é delicodoce senão em breves momentos – bani-los teria sido uma ideia - e traça um percurso de fim de linha sem os adereços da peninha fácil, da componente religiosa, da assumpção de uma transcendência capaz de mitigar ou iludir o cáustico do caminho. Não há bermas verdejantes nem fontes de água pura. Na verdade, não há bermas. Ali, nunca é Primavera, vive-se na dureza do asfalto.
Porém, os dois premiados. Um mais um. Já conhecia o actor principal, Matthew McConaughey um galã de perfil muito razoável em filmes só digeríveis sexta à noite, quando nós cansadíssimos, estatelados frente à TV, não muito à frente de qualquer animal doméstico; perdido um bocado da fita, nada perdemos. Comédias supostamente românticas - já ninguém sabe o que é romantismo -, lamechices desenxabidas ao lado de actrizes que nunca serão formidáveis apesar da beleza inegável. Francamente, não esperava mais dele. Mas Ron Woodroof  mudou-lhe – em mim, já me disseram que existe uma série onde a sua qualidade desabrocha -  a imagem. Note-se, não foi um acrescento. Foi antes um “A Star is born”. Certamente o realizador,  Jean-Marc Vallée, viu-o muito mais e melhor que eu. Ainda bem. Na fita, McConaughey  é um doente de HIV que, como tantos outros à época – e quem sabe ainda hoje -, não fazia ideia de que fosse transmissível por relações sexuais desprotegidas. Que, depois de lhe vaticinarem a duração – 30 dias – resolve tomar a doença a seu cargo, abandona o hospital e as suas recomendações e recorre a medicação alternativa com resultado positivo. Graças à sua vontade de viver e por recurso à vida de esquemas em que sempre esteve envolvido, cria uma espécie de associação de distribuição medicamentosa grátis e paralela – os doentes pagam apenas a joia de sócio -  chamando a sua atenção para o perigo do receituário adoptado em hospitais. Associa-se neste empreendimento ao Transsexual (Jared Leto) internado a seu lado quando lhe foi detectado o HIV e que tem por ele uma paixão muda.
Abandonado pelos amigos, uns no preconceito da doença e outros crentes – como ele mesmo, no início – de que só acontece entre homossexuais, desenvolve com o transsexual uma amizade profunda. O filme conta-nos essa tripla evolução: da doença que lhe vai ganhando o corpo; da sua luta encarniçada na distribuição da medicação mais certa e que exacerba na razão directa do dinheiro que perde e da pressão que exerce a indústria farmacêutica; dessa amizade improvável. E tudo nele é esse doente terminal, corpo frágil, as roupas a dançarem-lhe no esqueleto, o rosto a ficar ósseo e desorbitado, pele colada aos malares descarnados. Ron Woodroof passa de electricista cheio de esquemas a doente-furacão, constrói motivos de viver, para si e para todos a quem distribui vida: injectável ou em comprimidos. E o que mais me perturbou foi aquele irreconhecível McConaughey. Ou a excelência de um bom actor. Justeza de prémio!
(Continua)

segunda-feira, 3 de março de 2014

Os Anjos Também Morrem II

Dentro da escola, depois de cumpridas as tarefas e da novidade digerida, a atenção dispersou do Garcia e o ziguezague de conversas ciciadas deu os primeiros passos entre os parceiros de carteira; em seguida, alastrou aos alunos de trás e da frente e em breve se instalou um zunzum a fortalecer, entremeado de uma ou outra palavra clara e distinta. Depois, na pressa dos minutos, foram esquecendo o lugar e os deveres. E quem passava na estrada distinguia uma algazarra sem freio, abafada por portas e janelas, e seguia abanando a cabeça, na certeza da professora outra vez à conversa em algum lugar.
Quando a professora entrou, atentos às desavenças da fechadura com a chave, os mais próximos da porta aprestaram-se a fingir o bom comportamento que não se lhes conhecia, e, esquecida a promessa de avisar os restantes, semelhavam anjos enfronhados nos livros. Lá à frente, a vida era outra. Dois garotos na fila do meio disputavam um lápis a reclamá-lo aos gritos como seu, cada um puxando-o para si. Na correnteza de carteiras da parede, jogava-se ao sisudo em grupos de quatro, virados uns para os outros, numa carranca de susto a conquistar o riso dos pares. Na fila da janela, duas alunas mais novas ensinavam-se mutuamente a lição, gaguejando sílabas, os dedos a pé coxinho sobre as letras.
A professora avançou e, sem zanga pelo barulho de quem ainda a não tinha notado, retirou aos beligerantes o lápis da disputa. Quando a notaram, coalhados em culpa, os alunos varreram conversas e endireitaram-se nas carteiras. Mas ela apenas: hoje vão sair mais cedo para o almoço. À tarde, quero aqui toda a gente de bata limpa; penteados e lavados, ouviram? Vamos acompanhar o irmão da Elisa ao cemitério. Digam às mães que vão comigo, a pé. E que vos trago depois. Ninguém precisa trazer mala.
Logo alguns, como se pedras em caminho, minha senhora a minha mãe anda a trabalhar e não está em casa; minha senhora, a minha bata está rota e a minha mãe está no trabalho e só chega à noite; minha senhora, a minha bata está de sabão. A professora a mirar o vermelho das unhas ovaladas e compridas, a mão branca, esguia,  à altura dos olhos, como que numa distracção, quem não tiver a bata em condições fica em casa. Mas eles num desejo de ir, o quinhão de morbidez acicatado pelo Garcia. Ainda que parte da alma amedrontada, queriam saber o que era um caixão, um morto, um cemitério do lado de dentro. E foram para casa a matutar no problema da bata limpa. Alguns resolveram-se ao tanque com um bocado de sabão azul e lavaram-na sem a passar a ferro que era coisa de meter brasas e que não sabiam como fazer; os sortudos tinham as mães em casa: lavaram e passaram, fizeram lume e aqueceram água para o banho em panelas de ferro, esfregaram-lhes o surro das orelhas e dos joelhos, cortaram e limparam-lhes as unhas, calçaram-nos para o caminho. Os que estavam sozinhos, e eram a maioria, procuraram as roupas e sapatos melhores mesmo que pertencessem aos irmãos mais velhos, lavaram a cara, as mãos, braços e pernas na água do tanque da roupa, puseram a brilhantina dos pais e pentearam-se de risca ao lado. E depois de almoço, sem mala, estavam a preceito na escola. Havia os que se tinham esquecido de lavar a traseira de pernas e braços, o sujo a vicejar por entre escorrimentos; os que repuxavam a bata no lugar onde as molas da roupa a tinham vincado; os que estavam ainda com a bata desabotoada para acabar de enxugar; os de brilhantina a escorrer rosto abaixo, só penteados à frente; os que se tinham esquecido dos pés descalços ou não tinham outros sapatos além dos chinelos de sapato cortado que sempre usavam, a brilhantina e o risco a parecerem fora de órbita, agastados de estranheza, estamos aqui a fazer o quê, não pertencemos. Junto à porta fechada da escola, uma garota ensimesmava,  cabeça virada aos botões de cima, em solilóquio, a minha mãe não me queria deixar vir, disse que é muito longe e vamos a pé até ao cemitério. E as outras, e se a gente se sentar à beira da estrada a descansar um bocadinho, faz mal? E ela a levantar a cabeça, como que a acordar do pensamento, em voz baixa para não perturbar o sono dos abotoados, não sei, a minha mãe não me disse.
Foi um recreio diferente, ninguém brincava com medo de sujar roupas novas, desmanchar o cabelo, estragar sapatos. As raparigas endireitavam o rabo de cavalo ou as tranças umas às outras, enfiavam os dedos por dentro dos canudos, deitavam a vírgula do indicador a uma mecha desavinda e lançavam-na para trás da orelha. Depois, davam um passo atrás a mirar a colega e, assim ficas mais bonita, ignorando a queixa embaciada do cabelo, tirem-me daqui, soltem-me, não gosto de estar preso.  Entretanto, o António Manuel corria à estação a ver as horas e chegava esbaforido, a risca desfeita, já passam quase vinte minutos. Mas um barulho de motor a aproximar e logo o carro azul despontou e foi ficando cada vez maior. Então, muito compostos, descansaram.  
Quando a professora desceu do automóvel todos repararam que não trazia os sapatinhos de tic tic no andar, requinte de pernas em saltos de agulha, inveja das raparigas. E quando ela o de sempre, António Manuel traz-me os sacos que estão no carro, ele, sim  minha senhora, mas não seguiu atrás dela a bambolear-se na imitação dos saltos altos. A professora minguava no sapato raso, uma saia rodada com desenhos que não conheciam. Eles à porta, formados e de mão dada, a encolherem o corpo uns de encontro aos outros para ela passar no tilintar de chaves conhecido e a bichanarem, não é bonita a saia? E a Ana Maria que morava de empréstimo na caseta e era filha do engenheiro da ponte em construção, chegada de uma cidade grande e mais esclarecida, é saia calça, os machos da frente e de trás são abertos – e antes de hipotéticas dúvidas –. Tenho uma saia assim. E recrudesceu-lhes a admiração. A Ana Maria tinha roupa e sapatos bonitos, uma mãe que não trabalhava, usava calças e óculos escuros, fumava, pintava os lábios e quase não se deixava ver. Os rapazes aventuravam-se linha fora a espreitar o insólito da caseta, entre o rodeado dos pinheiros, e desorbitavam dela deitada numa rede, a ler e  fumar. A Ana Maria falava-lhes de ignaras coisas como haver um jardim zoológico, contava as férias na quinta dos avós, os passeios com os pais. Parecia um conto de fadas. A Ana Maria que era uma criança simples e bonita e dizia a todos que só estaria um ano com eles e ainda assim gostava da escola e emprestava livros e jogos e ensinava as contas e os ditados. A professora, que não lhe tocava, a advertir constante, Ana Maria! E ela a passar papelinhos com as soluções dos problemas em que era exímia. Ou a dar a sandes de fiambre a quem a pedia por nunca ter visto fiambre, quanto mais prová-lo. A Ana Maria era uma bondade de coração que a mãe entendia e compartilhava. A dada altura, o saco do lanche sempre com duas sandes bem aviadas, feitas em papo-seco e embrulhadas em papel de alumínio que eles desconheciam e pensavam que eram pratas de chocolates muito grandes que a família comia e guardava, esticadas com a unha, lisinhas. A Ana Maria que por vezes se alimentava do manjar dos deuses a que chamava salame e que ninguém conhecia.
E, quando já tinham entrado, a professora, todos de pé! – e sem hesitação – Vamos lá ver se estão em condições. Fora mandar um ou outro lavar mãos ou cara, António Manuel vai lá ver e leva a minha toalha para se limparem, passaram no exame. O Tóino, minha senhora a mãe da Ana Maria não a deixa ir ao funeral, ela disse-me para dizer à senhora. A professora sem os olhar, como se não o ouvira, a aliviar a mala de mão, um montinho de bugigangas sobre a secretária, saiam e formem lá fora. - subindo o tom de voz -  Sem barulho! – e numa ameaça - Quem falar, fica na escola.
E eles seguiram ordeiros, na pressa de dar a mão ao parceiro. Ou na ânsia de conhecer o que não sabiam.