domingo, 25 de maio de 2014

"O Enigma"

19 de Setembro de 2012

Vieira da Silva no Museu da EDP, Porto. A exposição  inicia com fotos que lhe traçam o curso do corpo, e onde ela surge sucessiva, o olhar de pássaro a alargar no inexplicável. Fica-nos o espanto em que os olhos flutuam, como se a realidade uma coisa grande demais para a pintora. Entre tanta fotografia, fixei uma do casal. Arpad e Vieira da Silva estão juntos no sofá, o ângulo recto das pernas em paralelo perfeito. Dois velhos quotidianos, se não fora serem eles. E nos corpos sentados uma sintonia de abraço imaterial, estar de dois que são um. Olho-os melhor. A Harmonia entre aqueles dois seres é acerto que transpira sem efusão. Lado a lado, os quatro pés denotam uma paz ainda amorosa.
Pouco entendo da pintura de Vieira da Silva e nunca tinha apreciado “O Enigma”. É um quadro que me fascina, todo construído em quadrados brancos e pretos, que joga tudo na cor e tamanho das formas geométricas. Observado a alguma distância, emerge-lhe uma ave de asa aberta e, contudo, nada nela é de voar, de todos os lados cadeias a seguram, como se lágrimas cristalizadas lhe tolham o vôo e impeçam que se destaque por inteiro. O quadro vive de uma falta de distância entre espaços, origem da imprecisão das imagens e que acorda no observador a radicalidade do insolúvel. Enigma é um nome que lhe assenta.

Desconheço motivos para ter  circunscrito as notas a uma foto e uma pintura. Mas foi assim que encontrei o rascunho, nas costas de um bilhete de comboio, as palavras a esvoaçar em volta dos pequenos círculos que  assinalavam a passagem do revisor.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Solilóquio

O dia de terça-feira é-me extenuante. Extenuo com facilidade, o corpo sempre propenso ao cansaço. Começo dentro da piscina, braços e pernas leves, a cumprir ordens. Quarenta minutos de obediência tépida a orientar-me a cabeça de pântano; pressuponho que, enquanto atento aos movimentos do tronco e membros adjacentes, em silêncio, sub-reptícia, ela se rearranja: enrosca parafusos soltos, aperta porcas, oleia com ideias zonas perras e alagadiças.
Saio com a rinite actualizada, cão de água pingante. Vou às compras nesse estado miserável e rumo aos pequenos arranjos caseiros de quem vai sair e só regressa depois do jantar, tratando que nada falte a quem fica. Depois, faço um caminho comprido a pensar na vida e num eu que encontro no carro e que, provavelmente, é de ficar dobradinho até à próxima viagem (como no carrossel). São viagens muito acompanhadas, dou boleia a imensa gente, sentam-se-me pelos braços e pernas, penduram-se no meu pescoço, acachapam junto ao vidro da frente tão maravilhados quanto eu com o operar de maravilhas nos campos primaveris. Se me atraso a sair, amontoam em silêncio no banco de trás e apenas se manifestam nas ultrapassagens perigosas num sopro de susto, “ssss….”. Respeitam o mau humor. Ou temem-no. Se acaso viajo acompanhada, não entram; ficam no alpendre a fazer-me adeus, as pessoas a meu lado, estás a rir para onde, e eu, oh, nada, estava distraída. Porém, na maior parte das vezes somos só nós, e por isso não ligo o rádio. Conversamos de mil coisas, canto uma cantiga ou outra a pedido e vemos a paisagem em silêncio, palavras a subir ao imprescindível de mim e eles a fazerem espaço. Pacificados.
Chego a Lisboa no estado de espírito de começo de mundo. E começo nesse mundo outro. Faço o que tenho a fazer e sou outra. Mais tarde, dispo-a e deixo-a atrás da porta da dispensa junto com as roupas de trabalho. Retomo-me à hora do lanche, frente a uma chávena de chá. Então, sacudo melancolias que me assolam dos vapores e antevejo-me a ler numa parede um verso tão profundamente amado que nos sinto mais velhos que a idade dele, “Ah, se eu não morresse nunca e eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas”. E nem sei a razão de me fazer falta vê-lo. Ali. Naquela parede de azulejo. Humanidade mais exposta não existe. Depois, sigo para uma aula de Poesia onde pouco aprendo e mais me interessam outras coisas.
Ontem era terça-feira e chovia. Pensei, e se o professor faltar?! Mas avancei as botas para o contínuo das poças e mergulhei nos oblíquos riscos de chuva, as árvores a choramingar pelas folhas pejadas, quem foi o palerma que nos trocou o tempo? Já temos ninhos e flores, nasceram-nos milhares de folhas…e agora? Que é feito do nosso contrato de habitação com os pássaros? Dei de ombros, não havia tempo para pensar em questões arborícolas. E continuei. A ensopar.
À saída do Metro dei de caras com um renque de malmequeres a acenar-me do meio do temporal, loucura! Não continues, volta atrás, regressa. Parei um bocadinho a olhar-lhes a brancura a destruir, as pessoas dentro dos carros e os transeuntes abrigados na traseira da reitoria, a mulher é parva, parada no meio da rua e a chover desta maneira. E eu que gosto de malmequeres, a elidir o recado que sacudia as corolas, mesmo quebrados de vento e chuva, tão bonitinhos; parece até que estão de mãos dadas, e o guarda-chuva para mim, ou seguras com mais força ou vou-me embora que estou farto de poesia barata. E eu a agarrá-lo com força, oh! Mal-educado... E disse adeus aos malmequeres a convencer-me, armada em raposa de fábula, são flores, não sabem o que dizem.
Porém, não é lícito desatender palpites chuvosos de malmequer. Estavam certos. Sabiam. O professor faltou (que uma reunião, que, que, que). Mas a Alda teve o bom gosto de me convidar e fomos as duas ocupar tempo e assistir a uma conferência na CLEPUL sobre a vivência do pós 25 de Abril nas ex-colónias portuguesas. E desgostei. As nossas universidades são assim: livrescas, agarradas a papéis e escritos, museológicas. Aborrecentes, como disse a filha de Lobo Antunes depois da visita ao museu. Calhou-nos ouvir duas professoras universitárias a perorar sobre duas obras de escritores africanos (um cabo verdiano e outro que não recordo). Suprema pobreza! Se eu desse uma aula igual, os meus alunos não se seguravam na sala. Foi mais ou menos o que aconteceu: as pessoas foram saindo, saindo (sem a algazarra que, seguramente, os meus alunos fariam). Quando eu, emparceirada com o guarda-chuva, já quase dormia de desalento, terminou. Como terminam todas as coisas do género, a assistência cingida à mesa e a um ou outro resistente (nós duas, feitas valentes); ouvem-se uns aos outros, portanto. Oh santa incapacidade de nos enxergarmos como somos e não fazermos força para mudar (digo eu que pouco mudo na vida).
A terminar, visitámos uma exposição que era quase exclusivamente cobertura jornalística de época e toda a gente muito nova, um brilho nos olhos, uma força de acreditar que queria mover montanhas e esvaneceu em quarenta outonos desiludidos. Saímos pesarosas de tanta esperança rasgada, da perda de confiança, de termos deixado chegar à política uns filhos de Abril que são filhos de uma senhora que tem um nome que não se diz, até por ter menos culpa no cartório que eles.
E depois, a chuva. Furiosa e armada de vento. A paisagem a encharcar, árvores frenéticas desde a raiz, descompostas, a dobrarem ramos até ao impossível, se isto não para, dá-me uma coisinha má e quebro de vez; filas de automóveis a escorrer teimosias de céu cinzento, os limpa para-brisas em frenesim de nervos. As nossas pernas na ousadia do labirinto automóvel, a atrasar de vento. Nós ambíguas de passos,  a suster arremessos e empurrões ventosos, em busca de uma bússola no desconcerto do dia, que horas são?  Se não fora a Alda, perdia-me em pleno, num lugar que conheço e me surgia acidulado e hostil, a natureza a despedir-nos, vão-se embora, fora daqui, a querer chorar e arrepelar-se a sós. Guarda-chuvas no arame e caminhávamos como se nada fosse, a comentar a conferência e a nossa estranheza face a professoras universitárias que são estudiosas de um determinado autor e não conseguem elucidar-nos sem debitar, nem denotam um pingo de emoção interessada no estudado. Que diabo! Não queremos que tenham Abril no sangue, mas tanta frieza arrepia. Não pode ser bom sintoma. E lembrei Piaget, assimilação, acomodação, equilibração… à comunicação daquelas senhoras faltou alguma coisa que não apenas de ordem emotiva.
Entretanto, nós dentro do temporal, a rir do irrisório de tudo e a salvaguardar uma simpatia elegante e cordial, as músicas do Zeca que não ouvimos, uma canção cabo Verdiana, apelo à lentidão tropical balançada nas ancas a que o cabo da minha sombrinha foi sensível.  Na boca iluminada do Metro,  Cesário  recebe-nos eterno, num sorriso de azulejo a escorrer lágrimas de guarda-chuva, “Ah, se eu não morresse nunca e eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas”.

Despedimo-nos a confirmar percursos e seguimos para as nossas vidas. Domésticas e comedidas. Mas no fundo de mim, “Ah, se eu não morresse nunca…”. e pouco me importa a morte, que tanto mais eu queria, ininterrupta, buscar a perfeição das coisas. Buscar. Ainda que só o imperfeito. E dou-me conta que, volvidos 40 anos, talvez seja o mais necessário: que o espírito procure afadigadamente e sem tardança. Assim eu te procuro. Sempre.

terça-feira, 20 de maio de 2014

World Press Photo

Entro na exposição da World Press Photo e os rostos dos fotojornalistas sorriem quotidianos, contentes da frescura que transpira. Aproveito que não podem retorquir e inquiro-os, olho no olho. Sorrisos e expressões tão normais que ouso a loucura de haver fotos que apeteçam, os olhos cativos e  mendicantes, só mais um bocadinho. Mas não é isso o fotojornalismo.
Fotografias distribuídas por várias categorias que relatam acontecimentos marcantes de 2013: doenças que segregam – fotos de crianças albinas, deficientes mentais e dos maus tratos a que são sujeitos; mortos de guerra – montes de cadáveres alinhados e prontos ao empurrão para a vala comum; as vinganças e sua injustiça cósmica – cadáveres balançando no tecto de um possível armazém, formas de retaliação e aviso dos cartéis da droga;  qualquer desastre nas Filipinas - as pessoas em fuga espavorida, o rosto a contrastar com a placidez rosada  e bem nutrida dos santos que carregam e tentam pôr a salvo; devastações e catástrofes naturais em grande escala; problemas que se perpetuam - a violência sobre as mulheres e o horror das crianças que assistem, ou a condenação à pena de morte. Nas fotos de atletismo move-nos a história documentada de Nadja Casadei, atleta com cancro que não desistiu das provas e foi fotografada a competir e na quimioterapia. E tantos outros temas.
De entre as fotos, três permaneceram-me. A primeira foi tirada durante as cerimónias fúnebres de Nelson Mandela e intitula-se, Farewell Mandela. É um retrato de grandes dimensões e mostra uma rapariga negra, muito bonita, após lhe ter sido negada a entrada na sala em que se encontrava o corpo de Mandela; esse era o terceiro e último dia para o povo prestar homenagem ao líder. A tristeza feita cansaço desanimado ressalta sobre o terço branco que traz ao pescoço e cuja cruz leva aos lábios; apetece passar-lhe a mão sobre o cabelo e dizer uma banalidade como, deixa lá, o que conta é a intenção. A segunda foto intitula-se Ich bin Waldviertel e mostra a vida de duas irmãs (7 e 9 anos) numa aldeia isolada da Austria, Waldviertel, com 170 habitantes. Na verdade há uma série de fotos das manas e a mais velha parece, em algumas, a versão infantil da Lolita do  filme. Do corpo seminu não se desprende apenas infância, há uma coquetterie meia pose provocatória, na forma como se deixa fotografar. Ou eu a vi assim. A terceira foto surgiu-me no conjunto das que mostram como vive quem se afasta da sociedade. Reparei numa casa a ocupar uma gruta na rocha. Primário. Mas somos animais muito domésticos, a gruta tem uma janela com cortinas. Onde quer que estejamos queremos fazer nosso o espaço. E o que sabemos de fazer nossas as pedras é talvez dar-lhes uma janela e cortinado. Quem sabe, há uma mulher por detrás e aquela seja a sua casa. Devaneio, a série de fotos cinge-se a elementos masculinos e fala sobre eremitas.  Homens. Ainda assim, uma janela com cortinas. Virada à rocha. Para ver nada. “Home”.

Era já a tardinha quando saí. Os turistas calados, aos magotes nas paragens a sobressair entre crianças de mochila às costas que relatavam o dia ao cansaço das mães. E, no suor de sol em monte, só eles sorriam entre si, religados em ternura viva.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

World Press Photo

A World Press Photo regressou com as primeiras flores dos jacarandás, quando uma ténue neblina arroxeada romantiza os dias claros da cidade. Assim os vi eu de um autocarro apinhado, nuvens violeta a pairar sobre os troncos negros, requebrados e elegantes braços de árvore. Comovente, a sinuosa  implantação dos troncos a abraçar o espaço. Os jacarandás são superlativo absoluto simples da beleza e não há árvore que mais converse desde a raiz.
 E os turistas assarapantados de calor, a desdenhar de ares condicionados que não condicionam (Talvez sejam autocarros comprados em segunda mão à Alemanha que pouco precisa refrescar-se), palavrões entredentes e os lábios apertados em trejeito de nojo do povo suado e soturno que atravanca os veículos públicos e lhes sofre a modorra; e eles em observação do borbulhar untuoso que depois escorre em bagas morenas. Passeantes ricos(?) em território pobre. Vão vagar por Belém num calor inusitado que os desapodera de roupas, tinge de patusco tom rosa e os leva a tirar óculos escuros e limpar a cara suada, na surpresa limpa da pele branca  a desfazer em líquidas excrescências. Vêm em bando ou a pares e são altos e comedidos no linguajar, excepção feita à tagarelice dos espanhóis. Se vou ao estrangeiro e me perco ou preciso informação, pergunto a alguém. Mas eles não. Eles estudam os mapas, lêem tudo que há para ler nas paragens e viram-nos as costas. Ainda não decidi a origem desta discrepância – decidir é o termo, porque o que alguém decide não tem que ser verdadeiro, é só uma maneira de finalizar um assunto. Parece que os portugueses – ou só eu - acreditam mais na oralidade, preferem confiar nos autóctones. Os estrangeiros não. São autossuficientes, desenvencilham-se sozinhos.

Os espanhóis chegam a Belém e enfileiram buliçosos nos pastéis, a aconselhar-se uns aos outros sobre a conveniência de estar sentado a uma mesa e poder ir ao WC. Quando se decidem pela mesa, a fila, expurgada de salero, perde vigor, emagrece, entristonha. Do outro lado da estrada, o rio esverdeia em jogos de espelho. Ali caminham rosados estrangeiros, botas ao pescoço ligadas por atacadores, longas pernas de cal a esticar na soalheira, passos de molaflex chinelado. Há garotas de calções, deitadas a todo o comprimento dos bancos de jardim à beira rio, tíbias e perónios pendurados na lateral, a ruborizar. Têm olhos fechados e um vinco a avermelhar na linha do decote. São lindas e jovens, em algum lugar têm pai, mãe, família; mas estão ali, sozinhas, a deglutir a beatitude enganadora do sol. Passo por elas num misto de inveja, chega-te para lá, deixa-me deitar aqui só um bocadinho; e de cuidado com as traições solares, olha que logo o escaldão não te deixa dormir. Gozam o dia sem incomodar. Se não fora ocuparem espaço, dir-se-ia que não estavam ali. Sigo para o Museu da Electricidade, edifício que impera sobre o rio. Como é que uma central de produção eléctrica a partir do carvão pode ter aparência tão airosa?! Mas tem. Alguém a pensou também esteticamente, facto bem invulgar em Portugal. A falta de cultura dá nisto: compreensão parcelar do que somos. Parvoíce de julgar que a estética é para quem pode. Que aos pobres só interessa o pão para a boca e um tecto onde dormir. Pretensão de criar estreitezas onde a beleza não caiba. Estupidez de pensar elites a partir do que é de todos e a todos é devido.
(continua)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Suave e Murmurado

(continuação)
O sol do Alentejo invade todos os escaninhos, espreita todas as frestas. Desimportado, interpõe-se no abraço a deslaçar e mostra-nos uma à outra. Sorrimos ao espelho. Oito anos. A mudança dos cinquenta para os sessenta. E tanta, santo Deus. A partir dos sessenta é irrecusável, a pele cansa-se de ser jovem e cria um amolentado que se tacteia com agrado – a minha mão mapa de tempo a descer-te o rosto e a recordar a vitalidade de um rabo de cavalo –,  espécie de papel fino que ganha sinais do que viveste. A polpa dos dedos alisa o cansaço dos esforços em que te suplantaste, o pragmatismo de que lançaste mão para sair dos buracos negros que te couberam, os amigos que te recusaram ou tu afastaste, os teus pequenos-grandes vícios, as noites de insónia, os amores que perdeste porque na altura não os julgaste importantes, outros viriam.  Tudo fica cruzado na pele, finamente, por vezes em arabescos tão repetidos que quase constitui um padrão. Porém, mais nos delatam os olhos. Porque, se não foi fortuito, dizem do bem que te quiseram. Está-te nos olhos se o fruíste e usufruíste. Ganhas uma doçura resistente, profunda. Que te contém a infância e adolescência e as vai semeando pela vida – tua e dos outros.  Observo-te, estás um pouco alegre. Talvez saudosa.  Dou-te as flores que vais pôr em água e entro em casa com a tralha. E tu ajudas pressurosa,  restinhos da garota de Évora a evaporar na claridade.  
A casa recebe-nos no sossego que conheço. A mesma. Tudo no sítio. Menos a tua irmã. Não falamos dela. Contudo, o lugar vago alastra,  borrão de tinta em água. Afloro o nome recordando a última visita. Não o tocas. Pomos a mesa a meias e aceito pratos e talheres de plástico – se soubera teria trazido os meus –, mas faço questão num cálice de vidro. Tinha pensado que iríamos brindar ao próximo encontro, mas, à vista da garrafa do vinho, vais avisando um padecimento de vesícula e de uma penada o suprimes e às entradas. Em oito anos, muito acontecer calaste! Sirvo-te e sirvo-me.  Almoçamos, tu, medrosa da doença, a comentares o picante dos camarões. Comeste pouco e não repetiste. Também não brindámos. Mas pareceu-me que gostaste do pão-de-ló que  leva ovos e, incompreensivelmente, comeste e até repetiste.
 Depois do almoço, pratos e talheres descartáveis, arrumo as minhas coisas e ajudo-te na mesa. Em seguida, entramos de conversar. Sugiro-te o computador, pode ajudar-te as noites e será melhor que a prisão da TV; que posso enviar-te algumas coisas interessantes. Mostras-me um computador virgem, a reluzir saudade de dedos. Tento convencer-te a visitar uma casa de informática para a instalação de alguns programas, mas receio que quando volte a tua casa, ele numa queixa, exaurido de saudade, morro se não me tocam. Então, abro o meu pc e mostro-te o que posso – não tens acesso à internet – fotos de família que gostas de ver, coisas palermas que escrevi e acho bem dispostas…encantas nas minhas fotos da Bélgica e no relato pormenorizado a apontar, a apontar. Lamento não ter trazido as da Toscana. Na próxima vez. Prometo. Assim eu possa guiar-te os olhos por campos casados em veludo verde e amarelo, colunas de ciprestes e tanto mais. Não há verdes como os da Toscana. Como hás-de notar.
São já as dezassete. Para terminar, passeio contigo.  Vamos até à barragem da Amieira (ou será a marina?). Não há como conduzir no Alentejo. Olho-te o perfil contente. Tão maluca quanto eu, perplexas neste enlevo colorido. As nossas almas agradecidas flutuam gémeas na paisagem. Lindos estes teus campos e recantos. Colinas de tons quentes, íman dos olhos, tinta entornada que não ouso fotografar.
Chegadas à marina da Amieira, tiramos uma foto as duas e eu aproveito a paisagem. Bebo uma água que tu pagas e sentamo-nos na esplanada. Duas burguesas de meia-idade à sombra quente do Alentejo. No meio de outra gente encalorada, possivelmente com um barco na marina, que nos mira em jeito de quem conhece o território, a estranhar-nos, estas duas de onde saíram, o que querem. Desabafo para os barcos, aqui, só a sombra interior das casas é fresca. E eles a oscilarem um tudo-nada, sim, sim.
Acode-me à memória o Verão na minha aldeia pequena, cegonhas estáticas, asas escancaradas no inferno azul do ar. Olho em volta e nem um passarito pequeno. Afogueada, levanto a cabeça para a sombra alva do toldo. Como as sombras alentejanas são quentes, sufocadiças! Ficam a doer-nos na alma enquanto o suor empapa o corpo. Oh, castigadora ardência que infinitamente nos dobras, vincas, amarfanhas. Até neste dia de corolas invulgares, a espreitarem-nos de todo o sítio. Ai de nós, insidiosa Primavera.
Regressamos lentamente, olhos de esponja; eu, já a equilibrar tempo e quilómetros. Levo-te a casa, recolho o material e abraço-te com força porque gosto de ti e a gente nunca sabe.  Fica-me a insuficiência de sempre, o tempo que passamos juntas estreita demais, falta. E lanço-te o eterno apelo de um quarto independente com casa de banho privada que ninguém usa, vem a minha casa. Mas não virás. Sei.
Volto na tardinha, a tua mão no retrovisor a acenar-me. Olho-a a pensar nas mãos que me acenaram sem regresso. E fecho o pensamento  porque eu sei que se me concentrar nela, vou ter a certeza de regressar. Ou não. Em força de distracção, olho o jardim público, e aspiro golfadas de crepúsculo a arredar certezas, não vou mais deixá-las entrar. Não posso permitir que o tempo se me adiante.  Dobro uma esquina e desapareces. Vou andando, andando. Perco-me em Reguengos – acho que lhe dei uma volta completa antes de sair, além disso não passei na igreja matriz e devia. Volto a perder-me em Évora. Mas chego a casa. Outro mundo.

Tomo banho. Suor e poeira do dia escorregam em fios múltiplos enquanto arquivo na memória pormenores irrisórios, coisas pequenas e navegantes. Oh, o infinito espaço da memória. Mais tarde, alinhavo algumas ideias, combinámos um escrito sobre. Ainda releio, quem sabe altero, acrescento, elimino. Vou ter cuidados de ponto cruz quando junte tudo para ti. Prometo.
E Obrigada por me receberes em tua casa:).

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Suave e Murmurado

(continuação)
Ontem à noite telefonaste inesperada, que podia ser hoje, podia ir ver-te. Apesar dos protestos, imediatamente te disse que sim e desculpei a tua lonjura de anos e falta de iniciativa, o teu silêncio sem motivo (não ligaste, como prometido, no dia seguinte à minha proposta de visita; encerraste em torre incomunicável, as pontes de voz içadas). Só a ideia de te visitar já me é grata. Verdade. Porém, a falta do sol deslaça-me. Apanhaste pois o imprestável de mim, as minhas vírgulas sem palavras, séries de dois pontos parágrafo na outra linha travessão e nenhuma letra, reticências inúmeras a invadirem-me as certezas diurnas. Enfim, durante a noite sou um acérrimo de pontuação sem o que lhe dá sentido, o discurso. Imagino que, porque me vou calando, ela tenha o seu recreio e ande livre por mim fora. Dos meus dedos soltam-se às vezes pontos em interrogação persistente, tão incómodos como a chuvinha de Maio, e já dei por uma exclamação a entupir-me um ouvido. Portanto, não me ligues no tarde da noite que tenho a criação à solta (quem dera fosse a criatividade) e não sei de mim. Limitei-me, pois,  a uma rasura de solilóquio, amanhã levanto-me cedo e penso no almoço. E adormeci.
Acordei já ligada à tomada. Sem tempo para compras, cingi-me ao que tinha em stoque, esperançada no teu gosto, bacalhau. Mas desejava-nos uma refeição inteira, um bordado com cercadura à volta, diria a minha avó. Portanto, enquanto tratava do peixe – quando era garota o bacalhau ocupava-me uma categoria intermédia entre a carne e o peixe; a minha mãe teve de discursar longamente acerca de variedades de peixe para me convencer -  descasquei as tubras/túberas, fritei-as e mexi-as com ovos. Imaginei um bacalhau em bechamel com batata, espinafres, camarão e cebola; fiz salada, pus um vinho branco e uma seven up  a refrescar, ( tenho de estragar o vinho para bebê-lo). E fiz o bolo mais simples que sei, pão-de-ló baixinho e húmido de que toda a gente gosta. E as horas voaram. Como já te disse atrás, estivemos as duas cirandando pela cozinha (nós). Embrulhei as refeições quentes em jornais, tirei o vinho, a salada e a fruta a arrumei no saco térmico, colhi-te rosas do meu jardim. Carreguei o bolo, a cesta, o saco térmico e as flores para o carro. E fui andando. Contente por irmos almoçar juntas em tua casa, na tua camilha. Esqueci-me de me pentear, mas és como eu, não reparas em pormenores.
Na Primavera, o Alentejo apetece. Chama por nós num canto seráfico dobrado de verde e azul. Fora do cansaço do Verão, a copa dos sobreiros pregada no céu, penteada, a vicejar frescuras que não existem, arredada de manso por uma brisa de algodão, inclina cortesias a quem passa; as árvores primaveris ainda não desgrenharam a sua angústia de sol e a cortiça protege-lhes a palidez confrangida da pele. As cegonhas, ocupadas em ser domésticas, são mães pernaltas, em atenção bicuda a ovos e ninho; quando o verão chegar, a sua silhueta airosa, imóvel, há-de recortar-se no azul, lá bem no alto, a perscrutar horizontes. As cegonhas de pose delicada são as bailarinas do Verão. Hoje, a terra soalheira reverdece. Renasceu, talvez – sejamos infantis, egocêntricas – para nós. A mesma terra que vai gretar à míngua, no rigor do estio, é agora una, compacta, um manto de vegetação rasteira a colar-se-lhe à pele dos grãos ainda castanhos e férteis. O Alentejo, apesar do nome masculino, é fêmea e lembra a Primavera de Botticelli, aquela adolescente grávida, todo o corpo a abrir em flor, que admirei, perdida de mim, na Galeria dos Ofícios. E que a mão humana consiga, antes de 1500, uma tal precisa e preciosa beleza, é espantoso.
Vou cortando a Primavera ao natural, quilómetro a quilómetro, contente da visão remoçada, colinas de cor em pincelada curta. Cada flor, um ponto. Fofo colorido onde apetece rebolar. Penso, se parasse o carro, fosse até lá e me atirasse sem olhar?! Apenas. Mas logo imagino as florinhas esmagadas, ui que dor tão forte, bati com a cabeça numa pedra; ou, corolas rente ao chão, não consigo respirar, tenho a boca cheia de terra; ou ainda, as mais abespinhadas, isto aleija, já tenho um botão escangalhado e partiram-me um braço, ora esta. Desisto, as marcas dos passos e do corpo na colina fariam muito estrago. Sem contar que existem animais que me enojam, lagartos, cobras e outros bichos que se arrastem. Podia atirar-me e eles ali; garanto que não gostaria de os sentir a mexer, incomodados.
A estrada é uma recta infindável, que se acrescenta e acrescenta. Ideal à gratidão dos olhos. Que sorte haver as estações do ano sem quebras, o tempo a fluir. Abençoado Deus ou Propósito de repetir a natureza em continuum. Façam os homens o que façam, ela repete o ciclo. Alheia a dores e alegrias, asperezas ou suavidades. Indiferente aos humanos. Perpetua-se. Somos nós, os seres mais mutáveis do universo conhecido, a desejar a permanência, a constância, a eternidade de que nada sabemos e pode mesmo ser um conceito vazio. Oh, a tragédia de existir a pensar noutra coisa!
Depois, de Évora até Reguengos, nova estrada plana, a perder de vista na linha de horizonte, tão rasa que mais parecemos imergir no azul. E Reguengos, em sua pacatez lírica de província. Um magote de casas na planície, que vai ficando maior e maior, e depois já tem ruas e semáforos e gente. Sigo até à igreja magnificente e com barras, frescura de silêncio onde um dia descansei calores e balbúrdia de alunos. Ladeio-a na pressa que trago de ti. Bom, também do nosso almoço. Breve me surge a placa, S. Pedro do Corval. Sigo o último trilho. Já na aldeia, paro numa olaria e confirmo o endereço. Todos te conhecem.

Enfim, chego. Ainda encosto o carro e já tu, no de sempre, assomas ao quintal. Alentejanamente. E upaaaa! Um abraço sem roda. Não há coisa mais bonita. Não há.

domingo, 4 de maio de 2014

Dia da Mãe

Hoje é Dia da Mãe. Um dia que partilhamos. As duas. Vamos almoçar todos  e tu vens. A meu lado. Sorrindo. Sem cabelos brancos, com aquela trança comprida que levantavas ao alto e agora se usa de novo; está na moda o teu penteado, mãe. Trazes ao pescoço o fio de ouro com a fotografia do pai; nunca gostei dele, mas não o retiravas apesar dos meus instantes pedidos. Eu decretava que os homens faziam isso - dar um fio de ouro com a sua fotografia -  para demarcar território, o amor, alheio à oferta. Mas usaste-o sempre, desde o dia em que te foi dado, e nem sequer retorquias à minha revolta. Também não sei o que pensavas do assunto, nunca te manifestaste. E hoje, vê tu, não me faz dano que o uses.
Mandei-te pôr os dentes da frente no maxilar superior, encaixam com uns araminhos que mal se vêem e tu contente por poderes dar dentadas nas maçãs. Deve ter sido por isso que, finalmente, deixei de sonhar que me caem sem quê nem porquê, tão brancos e sem mácula e a cair, os palermas. Sabes, aquela tua ida ao dentista deixou marca, as coisas que nos ficam. As minhas, esqueço-as no imediato. Mas essa tua, impossível. Não falamos sobre isso, porém, estou certa que também a lembras. Nem sei o que mais me doeu, se a visão do sangue, se aquela mulher que te segurava a cabeça enquanto eu chorava desabalada, se a tua tristeza de lágrimas no regresso a casa. Não voltaste a ser a mesma. Nunca mais.
Fiz-te uma écharpe em tricot. Dei-ta logo pela manhã e tu puseste-a pelas costas sem te importares se rimava ou não com o vestido. E os teus olhos a brilhar, tão bonitos! A luz do amor é toda outra. Tão bonito o teu abraço. Tão bonito como o jeito que tu tens para usar écharpes que me caem desajeitadas para tudo quanto é lado. Em ti não, tu tens ombros e porte de écharpe. Não te contei, mas andei na net que tempos, a aprender esse tricot rendado para te fazer surpresa.
Estamos juntas para o que der e vier. Logo mais, os meus irmãos vão trazer-te outras prendas, mimar-te. Mas o nosso momento dorme eterno nas tuas mãos a abrir a écharpe e moldá-la aos ombros, o olhar de agrado a rodar o espelho.
Dormes assim no meu sonho, Mãe. De écharpe.

Um beijinho

sábado, 3 de maio de 2014

Suave e Murmurado

Lembras-te? Foi há mais de quarenta anos e Évora parece ainda tão próxima. As muralhas, o jardim frente à Rodoviária e onde não passeámos, as ruas de paralelos difíceis, que tanto custavam a subir. Solitárias, íamos da antiga estação de camionagem até à outra ponta da cidade, ajoujadas sob a mala carregada de sucata, coração num susto de saudade. E a praça do Giraldo que não tinha fim, arcos sobre arcos, nós a marcar paragens em solilóquio, aguento até ali sem descansar, e agora tem de ser até ali. E os arcos inesgotáveis, em catadupa de pesadelo; nós desesperadas, a suster a vontade de abrir a mala e atirar fora metade do conteúdo que todo nos era necessário. Nessas noites de domingo, tardava-nos o longitudinal da rua onde vivíamos e que, mal lhe púnhamos o pé, se mudava em desesperante elástico; até hoje, e acredita que já andei bastante, nenhuma rua se me encompridou assim. Lá bem ao fundo, frente ao Jardim das Canas, e junto a uma das portas da cidade, alvejava o Convento Novo, destino de mole compacta e bruta, cortada pelo grotesco breve de janelas gradeadas rasando o tecto.
Por vezes, a porteira, menina Bia de sua graça, descia à rua e ajudava a carregar as malas escada acima até à soleira da portinha pequena, entreaberta na enormidade da porta principal que só ressuscitava ao domingo para a missa das onze ou por visita importante. Depois, tomava balanço e levava-as claustros fora, até à escada para o primeiro andar, “dizem que, depois da meia-noite, a irmã morta aparece aqui no primeiro patamar”. Não era verdade. Uma vez faltou a luz e eu estudava ainda no nosso quartinho junto à clausura. Tinha um ponto de Psicologia e gostava – toda a gente – do Serpa Branco a quem tratávamos carinhosamente por, “o Serpinha”. E resolvi descer a escada na hipótese de poder estudar ao luar, no claustro. Já passava da meia-noite e não encontrei um mero suspiro, uma luzinha a alumiar o imponente tenebroso da escadaria. Nada. Tão pouco consegui ler à luz da lua.
 Na Casa Pia éramos quatro aspirantes a professoras. Mas foi contigo que mais sintonizei. Ainda sintonizo. Não tínhamos história semelhante, mas éramos similares na nudez da pobreza. Quem não lhe vestiu o ser não nos entende; nem compreende a nossa estranha aliança. Toda a gente era pobre nesse tempo? Falso. A pobreza toma-nos, não há modo de apagá-la. É um sistema de vida, e tudo que se ganha e transforma é lenha insuficiente para consumi-lo. Transpor uma condição social. Se acontece, fica-nos o estigma às ferroadas na alma. A condicionar escolhas e momentos de escolher. Não. Os pobres nunca foram mais livres. Quem é subordinado à obediência por criação pode até revoltar-se, mas continua a obedecer. Quem sabe se não descendemos as duas desses escravos que assolaram Portugal depois dos descobrimentos. Ou dos servos da gleba que se vendiam adstritos à terra, propriedade de outros homens. Até o orgulho é em nós uma revolta a desfavor.
Contudo, hoje, nós umas matronas. Falta-nos a magreza ágil de animal alentejano comido de gorduras, só alimentado a sonho de futuro ainda sem idade. Mas conservámos alma e olhos de infinito. E que o tempo tarde a engolir tais benesses! Lembro a nitidez recortada do teu perfil moreno, o jeito de levantares a cabeça se nos olhavas; a tua boca de Amália onde um pincel de mestre se deitou a desenhar o lábio superior, lábio inferior cheio e ligeiramente amassado no centro; os olhos de planície entre a tristeza natural e a subtileza irónica; o nariz grego a fazer pendant com a linha estreita do queixo; a discrição do rabo-de-cavalo que amarravas na nuca. Quase não tenho memória do teu cabelo solto, talvez na bênção das pastas. Seguramente, na fotografia que me deste e guardo num álbum. Assentavam-te esbeltas blusas escuras de gola alta e jamais te vi pintada ou enfeitada garridamente. E, sobre todas as coisas, a tua voz. Reinando. Diurna. A arrastar-se em requebros maviosos de Alentejo profundo.  
E podes até já nem ser esta, mas é ela que eu procuro e encontro. E é assim que te vejo sempre e me existes. Foi contigo que estive três voadoras horas ao fogão. A querer levar-me. Amizade. É só o que vou contar.

(continua)