É
um portão branco, pequeno, a meio de um gradeamento leve. Lá dentro, no pátio,
sentados em bancos de jardim sem jardim, estão os velhos. Atravessa-se a
portinhola e logo outro mundo. O reino da pré-morte. Onde tu moras. À entrada,
no exterior, um locatário a imitar gente comum, como quem não pertence e acabou
de chegar, vai entrar aí? E, como a desviar-se de algo repelente, acentuou o aí,
a fixar-me acintoso, olhar destravado. Mirava-me com um desrespeito semi louco,
de animal a desprender de hábitos sociais, na extravagância da minha presença
dentro da casa; ou na ideia de que o lugar onde vives – e ele também - seja
desaconselhável. O meu riso claro seguiu em ondas de encontro ao rosto anguloso
de anos, a aproximar em morbidez de curiosidade senil, sim, aí mesmo, não
posso? Então a sua expressão matizada em osso distendeu, o adunco do nariz mais
suave, as maçãs do rosto menos agudas, dedos prestáveis a abrir um desajeitado
portão, o corpo numa cortesia, a recuar um tudo nada. E passei, atenta ao
letreiro, Porta Principal.
Entrei e logo um bafo de urina a cumprimentar-me,
reinando sobre a limpeza do chão. E os velhos nos lugares pareciam talheres em
volta de pratos. Quietos. À mão. Virei à esquerda a tentar pensar noutra coisa,
o cheiro a sobrepor e a complicar-me a cabeça. Percorri um corredor comprido e
desemboquei na primeira sala, o cheiro acre constante, a preceder-me. Tantos
que são os velhos! Parecem plantados por dentro da casa. Quietos. Ou de gestos
a puir. Estes encontram-se frente a um intocado armário de livros. Não os vêem,
ignoram-lhes as lombadas, os livros reduzidos ao ser que neles não está: são a
parede em frente. Mais tarde, eu, já não
gostas de ler? E tu, no rabo-de-cavalo uma réstia da garota adormecida, não
tenho paciência, só gosto de televisão e novelas. Reforço, e se trouxer
revistas com muita fotografia? E tu, já não gosto, aborrece-me; só vejo
televisão. Lá do canto uma velhota mirrada, ela só precisa de uns miminhos, não
vale a pena outra coisa.
Continuo
em frente, a dar boa tarde a todos os sofás que não me respondem, imersos em
pensamentos dobrados; todos os sofás ocupados em desdobrar pensamentos, se
fossem de papel seria um restolhar de folhas. Procuro-te no teu lugar de
talher, junto à TV. E nada de ti. Estarás doente? Os velhos sentados em volta,
olhinhos piscos, a lucidez adulterada, será para mim a visita? Eu na claridade
da porta, saco na mão, indecisa, que é da Joaninha? Algumas pálpebras a baixarem
devagar, não é comigo, duas velhotas prestáveis, foi à casa de banho, olha já
aí vem.
Entras
e reconheces-me. Satisfaço no teu jeito de cabisbaixa admiração, prima!... e vamos
sentar-nos as duas no teu lugar, eu também de talher. Tens creme preso nas
sobrancelhas. Ponho-me a espalhá-lo devagar, faço-te uma festa demorada no
rosto, os teus olhos agradecidos. Digo, não desfaças o rabo-de-cavalo, fica-te
bem. E tu, vou deixar crescer o cabelo. Depois falamos dos mortos que em ti
continuam vivos e quando descobres a verdade, choras um pouco porque em ti não
morreram e enlutas aos soluços da memória. Faz-me mal que repitas todos os fins
das minhas frases, adoece-me, queres o quê?! Não consigo evitar. Conversas só
meia frase, vais indo aos tropeções, de meia em meia frase, sempre a pegar na
minha metade. Qual criança que experimenta os passos, sinto-te o esforço de
pensar. E entremeias muita vez para os presentes que dependuram e nos preferem
à TV, é a minha prima. Somos o foco: as primas.
Sempre
que te visito lamento não saber de novelas, seria um assunto para desdobrar
sobre a tarde e nós duas a investigá-lo quanto pudéssemos e a tua memória
deixasse. Revelas tristonha a ignomínia da mana, tirou-me tudo: pulseiras, anéis,
brincos, fio…não tenho nada. E agitas as mãos nuas e papudas de calmantes e
inanição, o teu dedo inchado aponta a singeleza das orelhas, e em desolação
palpas a nudez do decote. Ainda tens essas pulseiras, digo a olhar-te o braço
esquerdo. E tu contente, trouxe-as da Guiné. Eu mázinha, ainda bem que as
compraste de osso. E logo lanço um perfume, ficam-te tão bem. Quedas-te a
afagá-las em silêncio, no jeito de quem passa a mão no pelo de um animal de
regaço. Abro o saco e mostro-te artigos que penso poderás gostar. Preferes os pastéis
de nata e hás-de levá-los para comer ao lanche. Eu de repente, Joaninha e se eu
te trouxer um baton? Tu usas? E quase sorris, abanas a cabeça que sim e
convicta, numa decisão, uso. Uso. Inquiro, e a cor? Tu, vermelho. E pronto, na
próxima vez virá o teu baton vermelho. Foi assim que estiveste no meu
casamento, com uma mala quase do teu tamanho e um baton vermelho. Tão loucamente
bonita que doías à vista.
Amiúde,
perguntas-me as horas. E sinto remorsos porque te queria trazer um relógio de
presente e não o achei. Tinha pensado que talvez risses a sério. Faço outra
busca aturada e há-de trabalhar junto às tuas pulseiras de osso. Palavra que não
o usei e é a estrear. Olho-te na lembrança da última vez. Chamaste-me de parte,
secreta, sabes quem eu sou? E eu, sim. Acreditas em mim? E perante o meu assentimento
silencioso, sou a rainha Santa Isabel, tenho mais de setecentos anos e nunca
morro. E depois puseste o teu ar mais triste, não morro nunca e estou tão farta
de viver, mas não morro nunca. Olhaste no fundo dos meus olhos, dramática, acreditas?
E eu de novo, sim. E tu sem transição, está quase na hora do lanche.
Mas
hoje estás bem. Pergunto se queres saber as horas para ir lanchar e tu que sim.
Tens a obsessão da comida. Depois, uma velha na tua frente, Joaninha mostra lá
o quarto à prima. E tu levantas-te com o saco na mão e vais corredor fora. Sigo-te.
Porém, quando passas ao refeitório entras sem olhar para trás, como em hipnose,
a murmurar, já está na hora do lanche, é hora do lanche.
Estou
parada a olhar-te as costas a afastar, já em pose de velha. De repente, o cheiro
circunscreve-me, agonio e dou por mim cá fora às voltas com o trinco do portão branco agora isolado, o porteiro no afã de refeitório. Olho ainda a sala de refeições.
Vejo-te pela janela e estás numa atenção de doença. Deixei de te existir. Tanto
me dói a cabeça e não te existo.