Estava
ainda entretendo tempo quando senti uns passos cautelosos junto à tenda. Relanceei o cadeado e continuava quedo. Quando julgava que seria um
pescador a passar e a minha atenção se desviava, voltavam em cautelas, próximos, próximos. Ainda pensei que fossem uns dois ou três pescadores em fila
indiana, mas a teoria começou a tornar-se insustentável pela proximidade que mantinham, alguém rodeava as tendas. Atentei melhor e verifiquei
que eram sempre os mesmos pés, passada nem muito curta nem muito longa, o pé assente com a mesma falta de força, como se um cuidado na forma de
calcar a areia molhada. Intrigada, retirei o cadeado e corri os fechos. E,
mesmo na frente dos meus olhos remelosos, entre as duas tendas, o pai da minha
amiga, capacete na mão, meio atrapalhado. Quando me viu respirou fundo e
disse, Ah, menina! Sempre são vocês que estão aqui. – e um sorriso alargou-se-lhe pelo corpo.
Nesse
preciso instante, correram-se os fechos da outra tenda e a minha amiga toda
caracóis dorminhocos, olhos a piscar surpresas, o que é que tu estás aqui a
fazer pai?! E em cenário, os estremunhados ponto de interrogação da minha irmã e do rapaz. O senhor virou ligeiramente o tronco
para o lado da tenda dela e ficou a sorrir à filha e a rodar o capacete nas
mãos entre o desajeitado de nos ter acordado e a satisfação de saber que
estávamos todos bem e adiantou, estávamos preocupados a tua mãe e eu, a trovoada
foi tão grande que subi para a lambreta e vim até cá – e num desabafo - . Não
sabia se eram vocês…e depois a brincar com os meus irmãos, então, não tiveram
medo? As mãos da minha irmãzita numa pressa, apalpadelas cegas junto ao varão de trás da tenda
onde deixara os óculos, e o meu irmão a ignorar a pergunta, curioso, veio numa
lambreta? Onde é que ela está? A garota com o tempo da resposta esgotado, apenas sorrindo, olhinhos
minúsculos por detrás das lentes, os óculos
a remoer, é sempre o mesmo, nunca nos encontras à primeira.
E
depois ficámos por ali a acordar e responder ao que perguntava, a minha amiga, talvez constrangida, sempre a instá-lo a deixar-nos. Mas o pai não lhe fez caso, aproximou a lambreta e só foi à sua vida quando se convenceu que estávamos
bem. Pensei no meu progenitor, nunca a sua preocupação o faria deslocar. E tive inveja da minha amiga e da atenção que merecia. Terá o meu
pai pensado em nós nesses dias?! Creio que sim. Do que não se sabe, é
preferível escolher o melhor.
Entretanto,
descobrimos que o restaurante só reabria no verão e o suposto pequeno-almoço esfumou. Os nossos vizinhos da frente foram lá acima comer e trouxeram depois alguma coisa à tenda das crianças.
Pela
tarde, a chuva regressou em força. A essa altura já destináramos o jantar,
tínhamos água potável e estavam marcadas as bacias de abluções matinais, no em baixo
e no em cima, e o lugar da retrete que não havia. O mar quase só o espreitávamos
pela janelinha de plástico em que o meu irmão fazia gala, o rostozinho moreno e
miúdo a assomar-se.
Nessa tarde, resolvemos ler, cada grupo em sua tenda para criar mais ambiente. De notável só o nosso amigo, que era - e ainda é - um rapaz divertido e resolveu colocar um sutiã da nossa comum amiga na cabeça, atá-lo debaixo do queixo e aparecer-nos à tenda naquela figura atraente. Quando enfiou a cabeça no interior e, boa tarde!, eu tinha mergulhado fundo. Olhei e nem o reconheci, parecia-me o Sacadura Cabral ou o Gago Coutinho com o equipamento de vôo que devia ser um capacete com os óculos a encimar. Retirada ao meio das letras estava ainda mais obtusa que normalmente, embora estranhasse a figura. Depois, e para meu espanto, o Sacadura Cabral trouxe também o corpo para dentro da tenda numa confiança de pernas que achei um despropósito, atirou uma gargalhada e, num alentejano arraçado de algarvio, atão... não me digam que já não me conhecem. Os meus irmãos desataram numa risota e eu idem. Porém, desatendida do sutiã, arrematei, é pá...parecias-me mesmo o Sacadura Cabral, onde é que tu arranjaste isso? E ele, tás a falar a sério? Eu, sim; é tão engraçado, compraste? E ele, tão mas afinal quem é que vê mal, não é a tua irmã? Eu, mau, então isso é o quê. Ele puxando os pontiagudos do sutiã sobre a cabeça, como se fossem umas orelhas, ainda não viste o que é? Os meus irmãos riam a bandeiras despregadas e ela benemérita, por entre gargalhadas, não vês que é um sutiã? Eu numa admiração de riso, ah, pois é, vira-te lá, levanta o pescoço. E etc. Mas sem abdicar da primeira impressão, é que pareces mesmo o Sacadura Cabral. Palavra.