domingo, 30 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

Estava ainda entretendo tempo quando senti uns passos cautelosos junto à tenda. Relanceei o cadeado e continuava quedo. Quando julgava que seria um pescador a passar e a minha atenção se desviava, voltavam em cautelas, próximos, próximos. Ainda pensei que fossem uns dois ou três pescadores em fila indiana, mas a teoria começou a tornar-se insustentável pela proximidade que mantinham, alguém rodeava as tendas. Atentei melhor e verifiquei que eram sempre os mesmos pés, passada nem muito curta nem muito longa, o pé assente com a mesma falta de força, como se um cuidado na forma de calcar a areia molhada. Intrigada, retirei o cadeado e corri os fechos. E, mesmo na frente dos meus olhos remelosos, entre as duas tendas, o pai da minha amiga, capacete na mão, meio atrapalhado. Quando me viu respirou fundo e disse, Ah, menina! Sempre são vocês que estão aqui. – e um sorriso alargou-se-lhe pelo corpo.  
Nesse preciso instante, correram-se os fechos da outra tenda e a minha amiga toda caracóis dorminhocos, olhos a piscar surpresas, o que é que tu estás aqui a fazer pai?! E em cenário, os estremunhados ponto de interrogação  da minha irmã e do rapaz. O senhor virou ligeiramente o tronco para o lado da tenda dela e ficou a sorrir à filha e a rodar o capacete nas mãos entre o desajeitado de nos ter acordado e a satisfação de saber que estávamos todos bem e adiantou, estávamos preocupados a tua mãe e eu, a trovoada foi tão grande que subi para a lambreta e vim até cá – e num desabafo - . Não sabia se eram vocês…e depois a brincar com os meus irmãos, então, não tiveram medo? As mãos da minha irmãzita numa pressa, apalpadelas cegas junto ao varão de trás da tenda onde deixara os óculos, e o meu irmão a ignorar a pergunta, curioso, veio numa lambreta? Onde é que ela está? A garota com o tempo da resposta esgotado, apenas sorrindo, olhinhos minúsculos por detrás das lentes,  os óculos a remoer, é sempre o mesmo, nunca nos encontras à primeira.
E depois ficámos por ali a acordar e responder ao que perguntava, a minha amiga, talvez constrangida, sempre a instá-lo a deixar-nos. Mas o pai não lhe fez caso, aproximou a lambreta e só foi à sua vida quando se convenceu que estávamos bem. Pensei no meu progenitor, nunca a sua preocupação o faria deslocar. E tive inveja da minha amiga e da atenção que merecia. Terá o meu pai pensado em nós nesses dias?! Creio que sim. Do que não se sabe, é preferível escolher o melhor.
Entretanto, descobrimos que o restaurante só reabria no verão e o suposto pequeno-almoço esfumou.  Os nossos vizinhos da frente foram lá acima comer e trouxeram depois  alguma coisa à tenda das crianças.

Pela tarde, a chuva regressou em força. A essa altura já destináramos o jantar, tínhamos água potável e estavam marcadas as bacias de abluções matinais, no em baixo e no em cima, e o lugar da retrete que não havia. O mar quase só o espreitávamos pela janelinha de plástico em que o meu irmão fazia gala, o rostozinho moreno e miúdo a assomar-se.
Nessa tarde, resolvemos ler, cada grupo em sua tenda para criar mais ambiente. De notável só o nosso amigo, que era - e ainda é - um rapaz divertido e resolveu colocar um sutiã da nossa comum amiga na cabeça, atá-lo debaixo do queixo e aparecer-nos à tenda naquela figura atraente. Quando enfiou a cabeça no interior e, boa tarde!, eu tinha mergulhado fundo. Olhei e nem o reconheci, parecia-me o Sacadura Cabral ou o Gago Coutinho com o equipamento de vôo que devia ser um capacete com os óculos a encimar. Retirada ao meio das letras estava ainda mais obtusa que normalmente, embora estranhasse a figura. Depois, e para meu espanto, o Sacadura Cabral trouxe também o corpo para dentro da tenda numa confiança de pernas que achei um despropósito, atirou uma gargalhada e, num alentejano arraçado de algarvio,  atão... não me digam que já não me conhecem. Os meus irmãos desataram numa risota e eu idem. Porém, desatendida do sutiã, arrematei, é pá...parecias-me mesmo o Sacadura Cabral, onde é que tu arranjaste isso? E ele, tás a falar a sério? Eu, sim; é tão engraçado, compraste? E ele, tão mas afinal quem é que vê mal, não é a tua irmã? Eu, mau, então isso é o quê. Ele puxando os pontiagudos do sutiã sobre a cabeça, como se fossem umas orelhas, ainda não viste o que é? Os meus irmãos riam a bandeiras despregadas e ela benemérita, por entre gargalhadas, não vês que é um sutiã? Eu numa admiração de riso, ah, pois é, vira-te lá, levanta o pescoço. E etc. Mas sem abdicar da primeira impressão, é que pareces mesmo o Sacadura Cabral. Palavra.

Para Lá do Mar

Desembocámos na praia sem tempo de olhá-la, aflitos de chuva e tralha, olhos e mente numa avaliação do melhor lugar para as tendas. Escolhemos a entrada mais perto do restaurante à beira mar, onde faríamos abastecimento de urgências, eu a formular mentalmente votos para que os dez minutos de montagem não excedessem. E lançámo-nos todos a cumprir ordens do orientador experiente que decidira armá-las face a face, tradição que respeitámos durante os nove anos em que as férias mais nos uniam.
Depois de armada a primeira barraquinha azul-laranja, a nossa, agasalhámos pertences e resolvemos almoçar. Limpámos cabeças molhadas a toalhas de banho, eu a apalpar os braços dos meus irmãos, é melhor tirarem os casacos. Depois, sentámo-nos em roda e almoçámos. Divertimo-nos tanto ou mais que os cinco nos seus petiscos de que as nossas sandes escarneciam, alegres de tudo. A chuva no pano soava a maravilha, sentíamo-nos secos e em segurança e tínhamos três dias pela frente que, em futurologia optimista, seriam de sol.
Enquanto o céu se desfazia, jogámos a tudo que sabíamos e ao que que inventámos. E, quando o aguaceiro abrandou, gestos munidos de prática, montámos a outra tenda. Entretanto, fizéramos a partilha do pessoal pelas barracas: eu e os meus irmãos mais novos numa, os meus amigos e a minha irmã mais velha noutra, cenário que vigorou até ao meu casamento.
À medida que entardecia – mais cedo do que esperávamos -, nós duas avaliávamos o conjunto de necessidades. A fim de lhes pôr cobro, os ocupantes da outra tenda decidiram fazer uma viagem de reconhecimento: precisávamos descobrir uma fonte de água doce, saber onde comprar pão, leite e fruta, e adquirir os alimentos necessários ao jantar.
Demoraram eternidades e já escurecia quando divisámos, descendo para a praia, as silhuetas da nossa preocupação. Pareciam meios desanimados, mas sabiam qual a torneira mais próxima para recolha de água e traziam um projecto de jantar. Tinham calcorreado ruas do sem fim para encontrá-lo. Deitámos mãos à obra de cozinhar dentro da tenda deixando para trás o romantismo de um fogo ao ar livre, lenha das árvores a crepitar sem fumo, nós sentados à apache, a beber chá em púcaros, como víamos nos filmes do oeste. Não havia tempo para sonhos cor-de-rosa, a fome e o mau tempo ameaçavam. A ementa há-de ter sido semelhante a batatas cozidas com alguma coisa e salada. Para nos animarmos, fazíamos fé na minha amiga, amanhã vamos todos tomar o pequeno-almoço ali ao restaurante, é a refeição menos cara, e já está. Comemos o mais que pudermos para não termos muita fome ao almoço.
Não contente com a tarde que nos enviara, o céu resolveu atirar-nos uma senhora trovoada nocturna. Tínhamos comprado um cadeado que prendia interiormente os três fechos das tendas e nos dava a falsa ideia de segurança. Mas nessa noite em que pouco dormi e abençoei vezes sem conta a blusa polar do meu namoradinho, os ladrões nem me lembraram. Enquanto os meus irmãos dormiam, sentia o mar a aproximar da tenda e a trovoada a estrondear e pensava parvamente que a tenda estava debaixo de uma árvore meia morta e que podia atrair um raio. Então, tapava melhor os meus irmãos, a tactear-lhes pernas e braços no escuro, auscultando em simultâneo a distância do mar. Talvez por serem crianças, porque as emoções do dia os esgotassem, ou porque se tinham levantado antes das seis para apanhar a carreira das seis e vinte, não pareciam sentir falta de colchão nem a frigidez do chão que me trespassava.

Durante a madrugada o céu aquietou a estrepitosa casa. Desceu-lhe a adrenalina de jacto e limitou-se a uns pinguinhos suavemente cansados que cessaram com o sol. Deixei-me ficar, esgotada de preocupação, junto aos meus irmãos adormecidos, o dia a clarear no azul-diáfano da tenda. A supor que, na outra tenda, a tempestade também adiara o sono, aguardei a alvorada dos mais. 

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

No autocarro, nós quatro a estrear o caminho e a renovar surpresas. Passámos Albarquel, a única praia que eu conhecia; depois a Figueirinha e Galapos; então a subida tornou-se mais íngreme, todo o motor a arfar, em esforço, vencendo a elevação quase a passo. Nós perros de mente por osmose, a inventar a má sorte, temendo que a protecção de rede que envolvia o muro de rocha fosse inútil, que desabasse e a coincidência de um pedregulho desabalado lá de cima a esmagar-nos como parasitas. Observámos do outro lado a incomensurável placidez azul, viva, móvel. Tão bonito o mar! Depois, o veículo internou-se no arborizado da serra, ganhou algum alento na respiração e calculo que os olhos dos meus irmãos como os meus, derramados sobre a surpresa verde de copas a perder de vista. Ao longe e abaixo de nós, um convento no meio do arvoredo, instalado em seu descanso solitário, a instigar-nos a perplexidade. Ainda hoje quem passa na estrada, como é que se faz para chegar ali, a curiosidade rendida ao silêncio rumorejante dos pinheiros e à religiosidade imaginada em homens que o habitaram em denso mistério. Por entre as reviravoltas da serra, os meus olhos no céu agora terrível e a certeza implantada, vai chover. O optimismo da minha amiga, só chove depois de armarmos as tendas, vais ver. É o nosso batismo, deixa; ficamos a saber que são mesmo impermeáveis.
            No final da viagem, o autocarro pertencia-nos por inteiro, os meus dois irmãos mais novos saltitavam de lugar para lugar, indicadores como agulha de bússola tonta, a ver isto e aquilo por entre exclamações e ós e ás que lhes saiam sem querer e ficavam a pairar no escuro do dia sem saber onde poisar – graças a Deus ainda não havia cintos nem restritas exigências a pregá-los a lugares. Enquanto isso, os dois funcionários arriscavam olhares enviesados ao grupo como se não nos quisessem deixar na Arrábida e preferissem levar-nos para sua casa e dar-nos almoço. Confesso que comecei a simpatizar com os dois apesar de também me parecer que nos julgavam meio amalucados. Descemos perante o ar desasado de revisor e motorista, os olhos deles para nós, desculpem lá o tempo, e uma pergunta na ponta, não querem mesmo voltar para trás? Vai chover. E, incompreensivelmente, como que ensimesmavam nos meus dois irmãos. Mas nós como se estrangeiros, a ignorar pontos de interrogação virados a pálpebras, ou reticências que as mãos exclamavam a demorar-se nos sacos e tendas, a minha amiga impaciente, o homem nunca mais se despacha a dar-nos as coisas.
Quando já tínhamos tudo e o autocarro fez a inversão de marcha, o motorista de cabeça de fora, têm a certeza que não querem vir, e nós um gesto apressado, a mandá-los embora com a mão enquanto distribuíamos os últimos cacarecos, agarra bem este saco, não percas a caixa que é do fogão, cuidado com esta que é do candeeiro e a chaminé é de vidro, e etc, etc. Finalmente, encetámos a marcha vila fora com a minha amiga à frente a comandar as tropas, coisa em que tem gosto e faz bem. Eu e a minha irmã mais velha seguíamos agarradas à tenda e quase a soçobrar de sacos e traquitana, os manos à nossa frente para os podermos ver e orientar. Lembro-me do princípio de uma rua estreita e da minha amiga, bora andar lá para baixo que devemos ir bem, e em peremptória certeza, o mar é sempre lá em baixo.
Mal iniciámos a descida, as nuvens desataram-se devagar e a chuva começou a cair em pingos grossos e espaçados. Parámos e distribuímos os alguidares e a bacia de zinco que virámos e pusemos na cabeça. E continuámos descendo em procissão, numa tonta alegria que em mim era entremeada de avisos, põe o alguidar mais para a esquerda, sai do meio da rua e não deixes o alguidar tão junto à cabeça que te tapa os olhos e ainda és atropelado, olha lá esse senhor, desvia-te. O que melhor recordo é o sonoro dos pingos de chuva sobre o zinco Ping, ping, ping. Não creio que algum de nós os tenha esquecido.

Depois de muito descer, quando já quase chovia a sério, a praia do Portinho da Arrábida. E agora?!

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

Não sei se me apetecia ter de novo vinte anos, é que viver cansa e a vida é mais difícil que fácil. Mas na casa dos vinte tive um amor inocente e muito adolescente – sou assim, sempre atrasada em relação à idade - que não me importaria de repetir. Talvez todos os primeiros amores tenham essa aura de irrealidade, comunguem de igual ternura, assumam a descoberta de um eu sepultado não se sabe onde e que prestes se levanta, a nossa admiração agradada, que é isto. E, isto, é o corpo aos acenos, estou vivo, existo. Mas é sobretudo sentir o coração a crescer. Isso mesmo, o coração expande, alarga tanto que temos até medo que os pulmões sufoquem dentro da caixa torácica. Eles num fio de queixa, estamos entalados, não conseguimos respirar, os nossos alvéolos parecem balõezitos furados. E nós aflitos da novidade, não querem ver que toda a gente ouve o galope do estoira-vergas do coração. Nós a aquietá-lo com a mão como se ele faça caso de alguém que não a pessoa por quem assim corre na maratona do amor. Foi pois um primeiro amor de funda ternura, pobre de mim, incapaz que sou de o transformar em texto.
Pois esse adolescente, ao ouvir-me projectar, e mais atilado  que eu, levou-me uma blusa sua bem encorpada,  que achei um despropósito – era Abril -  e recusei terminante. Ele não repontou, mas quando à porta de casa nos despedimos, esperou que a abrisse e pronto a atirou para o corredor, posto o que saiu em passadas de longo alcance, surdo a qualquer chamamento. Fui apanhá-la a meio do ímpeto, quando ainda escorregava passadeira fora, assarapantada da queda em meio estranho, onde é que eu estou. E num desvelo de alma a guardei no saco que pensava levar, a correr-lhe a mão pela lã, no encanto de um pedaço dele comigo.
No dia 25, levantámo-nos antes do sol e apanhámos o comboio a antever a claridade que havia de surgir quando chegássemos a Setúbal. Morosas, pesadas de apetrechos e felizes. Chegámos a Setúbal e o dia aborrecia na sua carranca escura e húmida. Eu a arriscar, se calhar chove. E a minha amiga, chove agora, o sol é que ainda não nasceu. Vamos mas é esperar os teus irmãos e o resto do pessoal. E de novo os nossos braços pendurados como ramos de árvore ajoujada ao peso dos frutos.
Na estação de camionagem que nos pareceu a léguas da CP, aliviámos sacos e tenda – a minha - e pouco esperámos os meus irmãos que desciam cuidadosamente os degraus da camioneta – ela porque a miopia lhe impedia pressas, ele por ser pequeno e os degraus num exagero de altura. Tão satisfeitos como nós. Eu, não esqueceram os fatos de banho. E eles contentinhos da aventura na carreira e de trazerem tudo, o caçulinha a inchar na proeza de cumprir, queres espreitar o saco? Trazemos um cobertor como tu disseste. Tudo nos servia de diversão e, ao vislumbrarmos o nosso amigo, o riso desatou-se-nos. A sua  figura descendo do autocarro munido de tenda, mochila e uma bacia de zinco azul pintalgado mais os alguidares plásticos tinha qualquer coisa de castiço que predispunha quem o olhasse. E a seguir, no que se havia de tornar um ritual de grupo, os três mais velhos foram ao café e aproveitaram para fumar enquanto eu e os meus irmãos mais novos  tomávamos conta da bagagem que nesse momento já era bastante. Na eventualidade de alguma coisa nos ser necessária, seriam os nossos moços de recados.
Entretanto, matando tempo e receios, fui à rua espreitar o dia e desanimei, a coisa estava negra. Porém, regressado o grupo do café, logo o ambiente desanuviou, isto é em Setúbal; Setúbal é assim, vais ver quando nos começarmos a aproximar da Arrábida... E marchámos de armas e bagagens – uma catrefa delas -  para o autocarro que nos levaria ao porto seguro e soalheiro do nosso destino. O revisor franziu-nos o sobrolho por ter de carregar no porta bagagens tanto material de peso. Enquanto isso, eu séria para os meus irmãos, tu só tens nove anos, ouviste? E tu ainda não fizeste seis. Agora vejam lá o que é que fazem. Os meus olhos fixos no tagarela do mano mais novo, não te esqueças que ainda não fizeste seis, tens só cinco. E ele também de olhos  muito abertos, tá bem.


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Para lá do Mar

(continuação)
Naquele fim-de-semana o assunto foi a tenda. Falei das espias como se as conhecesse de longa data e estivesse habituadíssima a espetá-las na terra; da qualidade da lona azul forte do chão, impermeável a mais não poder; do azul diáfano do sobretecto; da descoberta que entretanto fizera de que os varões metálicos eram de encaixar – nunca tinha visto uma coisa daquelas – e que só a frente da tenda era laranja, ou seja, lá dentro, quando acordados, os olhos só viam azul (fazia toda a diferença ver azul ou ver laranja, podem crer). Uma maravilha. Não faço ideia das vicissitudes que povoaram o imaginário dos meus irmãos face às minhas empoladas descrições, mas esperançávamos todos a desejo do nosso primeiro feriado de Primavera, o dia 25 de Abril, quinta-feira. Ora o governo – belos tempos – concedera a ponte de sexta-feira. De modo que, na posse de quatro dias, começámos a combinar onde estrear as tendas. Cabendo-me a factura, o meu pai ouvia sem retorquir.
Dado o meu estado virginal em águas salgadas e costa portuguesa em geral, foi ponto de honra para a minha amiga iniciar a aventura campista numa praia bonita. Acenei um consentimento. Escolheu a Arrábida que me era estrangeira por inteiro, mas anuí de olhos fechados, a confiar no rigor do gosto. O ponto de encontro seria Setúbal. Nós duas iríamos de comboio e depois, já na estação de camionagem que ainda era dos Belos, esperávamos os meus dois irmãos mais novos que vinham de casa pela primeira vez sozinhos, o que me inquietava ligeiramente. A minha outra irmã e o nosso amigo também ali desaguavam. E depois, Arrábida! De autocarro. Claro que verificámos precisar de um fogão e um candeeiro que resolvemos adquirir no final de mês, cabendo a cada uma seu utensílio.
Depois, marcou-se o fim-de-semana de experiência para a montagem da tenda, ela de olho na  proximidade de um eucaliptal. Nesse domingo  – estávamos hospedadas juntas –, eu em ânsias para saber se estava tudo, se ele sabia mesmo como era, e etc. Mal poisou as malas, cravejei perguntas como quem pendura quadros a eito. Ela a tirar os óculos de sol, descansadamente, ó pá, ele está encantado, diz que é fácil e em dez minutos monta-a; experimentámos no quintal que não deu para ir aos eucaliptos e fizemos tudo, só não enterrámos as espias por ser acimentado. Virando-se para mim num êxtase sorridente, é que são mesmo bonitas as nossas tendas. Não te preocupes, tá tudo bem, ele vai levar um martelo para bater as espias, pode fazer vento ou assim, percebes…
Também eu vivia de enlevo. A única coisa que possuíra era uma viola que me custara anos de poupança e uma prenda da irmã directora dentro de um envelope e que me apressei a partir na primeira semana em que me existiu e nem o tempo dos meus dedos a treinar acordes. Portanto, comprar uma casita de pano azul-laranja com uma janelinha, que podia carregar debaixo do braço (não era bem assim, tínhamos que ser duas e ela deitada entre nós), era a coisa mais estrambólica e maravilhosa que podia acontecer-me aos vinte e um anos. Ainda que a casa de pano, acho que me sentia um dos três porquinhos, quer dizer, o mais velho e assisado. Mas as minhas histórias, como já devem ter entendido, não têm lobos. Se têm, são uns amores de boca grande e que não andam por aí a engolir tudo que lhes aparece ou ainda lhes dá uma diarreia das compridas. Os meus lobos são bons e cuidadosos. Uns doces animais.
            Depois, e à medida que o 25 de Abril se aproximava, acertámos panelas e tachos, toalhas e fatos de banho. Dispensei-me de pensar em roupas, sacos cama que eu ainda nem sabia o que fossem e friúra nocturna. No meu imaginário, cujo modelo eram os livros dos cinco, passávamos o tempo a chapinhar em fato de banho e durante a noite dormíamos muito quentinhos e sem o Tim, que não seria necessário. À época, o povo português andava contente, éramos todos amigos uns dos outros e não havia ladrões.

E a minha perene e quase ilimitada confiança no próximo, aliada a uma  juvenil inconsciência, desanuviou o resto.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Sodoma e Gomorra ao Portador

Bem sei, Sodoma e Gomorra eram cidades bíblicas, licenciadas na perversão da carne e no deboche. Não será o caso das meninas indianas, mas o mundo, dando-lhes as costas, tornou-se tão escandaloso como então. Sem estátuas de sal. Que aliás hoje não nos serviriam, quem é que ia querer, por exemplo, o anelar da mulher de Lot para temperar a sopa. Ninguém. Se a ASAI a apanhasse ainda a autuava por estorvo na via pública e incumprimento das condições de higiene, visto que não se tem notícia de que tenha ficado empacotada. For instance.
As duas cidades estavam-me encasquetadas, talvez porque abri o word para escrever sobre assunto diferente, mas as garotas firmaram-se sobre as teclas e saiu o que saiu, que até foi contra a minha vontade e os objectivos primeiros deste blog: postar só o que me apetece. Propósito que tem algumas involuntárias falhas, reconheço. São situações análogas à de ontem, que me perseguem os dedos como sombras e só descansam se as escrevo.
O que me tem andado a dar volta ao miolo é a pornografia caseira, suposta inspiradora de não sei que momentos escaldantes de sexo. Hummm…claro que não estou a pensar em donas de casa (ou donas de outras coisas e donas de coisa nenhuma) e seus apêndices masculinos que resolvem filmar-se no sexo – ideia que até encontro um bocadinho hilariante para além de ligeiramente estúpida. Mas pronto, é um ponto de vista meramente pessoal e se a reportagem reunir o consenso dos interessados…não acrescento. Portanto, abandonemos os filmes caseiros.
Falemos por exemplo daquilo que a net permite. E estou a dizer isto com conhecimento de causa que vi, por inteiro, um dos seus filmes, suponho que pornográfico. O que a net dá, ou pelo menos o que vi, é o acto sexual entre duas pessoas (se calha também há outras variantes) filmado em detalhe e alguma morbidez. Poderia escrever que fiquei confrangida com a visão. Mas não. O género não faz parte da minha lista de interesses. E não é puritanismo, é mesmo não dar importância, desgostar, pensar que mal empregado o tempo, e outros assins.  Mas ontem resolvi ver um, pronto, afinal nem sabia como era e treinei o meu ser de voyeuse a fim de não andar por aqui a mandar bocas sobre o que não experimentei. E nada de ficarem a pensar que escrevo apenas sobre objectos experimentados. Bom, mas, se for possível e não me venha mal nem ao mundo, tento.
Minha gente: impressionei. Mesmo. Porque, a crer que os filmes sejam todos parecidos, quem os vê, perde o espírito do amor. É que, por ali, nem lhes chega a nascer, é como um beco, entra-se e tem que se voltar para trás, não é nada arejado (nada de confusões, aquela gente anda ao ar livre e com tudo ao léu). O que observei cinge-se ao domínio da técnica de sexo entre dois corpos bastante atraentes, mas, meus deuses, é uma gente perdedora poro a poro. Fiquei a pensar nos garotos que ali aprendem, nas pessoas de qualquer sexo que os usam para descarregar pulsões pelos mais díspares motivos, em quem busca ali a excitação ou o que seja. E tenho vontade de um aviso a quem não experimentou: Atenção, muita atenção, aquilo não é igual a fazer amor. Parecendo a mesma coisa é uma coisa toda outra, que não tem nada a ver. Como não sou – felizmente – homem, não arrisco para o lado deles (acredito piamente que tenham uma bolha de água salobra bem maior que a das mulheres; se é histórico ou congénito também não me interessa). Mas que, qualquer mulher saudável de mente – pode até de corpo ser um pouco doente que no problem – prescinde daqueles vídeos, é limpinho. Garantidamente. Ou então andarão à procura de qualquer coisa que não sei o que é ou para que serve, mas já agora gostaria de saber para não morrer estúpida. Morrer estúpida é do pior que há. Sinónimo de nos apostrofarem de  galináceos quando o nosso neurónio não é nem parente longínquo dos seres de penas que cacarejam.
Uma vez, num livro de Inês Pedrosa, li que não fazemos amor, ele desce sobre nós já feito (o par, o trio, o que se queira). Discordo. O amor faz-se mesmo. E nem se faz apenas no sexo e para chegar ao climax, ou para ser bom, ou experimentar sei lá o quê. E agora são tudo orgasmos para aqui e para ali e como lá chegar, até parece que é uma montanha qualquer e tem que se chegar ao cume e assim. Ora esta. Que moenga.  
Então já ninguém sabe que o amor é bom do princípio ao fim porque é estar o mais intimamente que os homens sabem estar, com uma pessoa de quem se gosta de maneira especial porque a gostamos por inteiro e o nosso corpo pede o dela tão naturalmente como ter sede ou fome e saciá-las. Se bem que, é verdade, o prazer do amor que se faz e me recuso chamar sexo por me parecer uma ofensa ao amor, pois o prazer e o desejo de amor têm tonalidade e intensidade diversas da fome ou da sede, mas acontece que é coisa que não se explica e melhor se sente. E, portanto, não sei dizer mais nada sobre. Além do mais, o sexo não tem nada que subir de escalão, deixemo-lo no lugar que até nem está mal posicionado no ranking, na medida em que quase sempre acompanha o amor embora o inverso não seja verdade.

Não se aprende nada aqui? Ora! Também não disse que ia ensinar.

domingo, 16 de novembro de 2014

As Meninas Indianas

Li esta semana sobre a morte de crianças de oito a doze anos, na Índia (não estou segura das idades). Sim, não são jovens mulheres de vinte ou mais anos, embora o crime exista pela sua natureza e não pela idade das vítimas. Mas é mais violenta a brutalidade que se exerce sobre crianças por serem indefesas, nossa esperança de mundo, futuro. Estão a esterilizá-las por decreto. É determinação estatal. Provavelmente, a ausência de condições mínimas de higiene estará na origem das mortes. E o mundo que somos nós tolera o intolerável, deixa. Deixar é um bom termo para dizer a situação de porta fechada dessas crianças abandonadas ao arbítrio de um governo obtuso, e o tal mundo global – que é o nosso -,  imperturbável. Nem um aceno. Morrem? E depois, eles são muitos, qualquer dia não cabem lá. Nós mundo apertámos a mão ao legislador que mata meninas ou lhes retira a possibilidade da maternidade. Entendemos burramente, e à semelhança do governo indiano, que a sobrepopulação baixa à custa da vida dessas muitas pobres que já morreram e das outras que irão morrer. Para quê educar?!
 Na Índia, ter filhos deixou de ser um direito. E acenamos que sim a esta pusilânime barbárie. E assistimos impávidos, mãos abertas, à violação estrondosa dos direitos humanos, neste caso, das mulheres. E é como se por ser das mulheres e ser na Índia o fragor da desgraça não haja, não há som deste lado, isolámo-las na sua campânula. Estão sós. Elas e quem ordena e pode, que é sempre assim a força dos fortes, pulveriza pessoas e fica com números e funções. Pelas nossas brancas mãos escorre a vida e o sangue quente, vermelho, dessas meninas que, se sobrevivem, nunca poderão ser mães. Olho as minhas, inertes, e penso na angústia que as invade sem aviso.  
Uma frase apanhada num salão teima em andar dentro de mim, para cá, para lá, que o pensamento baralha e dá sem que o queiramos: “ a minha Aurora não pode ter filhos, ainda pensou em adoptar, mas dissuadi-a, as adopções dão sempre mau resultado e eles estão tão bem assim…”. E depois a filha entra com passo elástico, elegante e vaporosa e está mesmo bem assim, que parece uma jovenzinha, e faz massagem para o stress em spas de luxo, e viaja, e conhece, e.
Ora Deus sabe que aceito qualquer opinião e estilo de vida desde que não prejudique terceiros; e toda a gente tem amigos que não têm filhos, por opção e sem ela. É um direito que lhes assiste. Mas não posso deixar de o dizer, a maternidade/paternidade é uma experiência única. Quem a não vive, quaisquer que sejam as situações que prefere, perde oportunidades de crescimento pessoal inimagináveis. Claro que encontra outras. Outras. Porque, tal como um primo ou um amigo não é um irmão por maior que seja a proximidade, os filhos dos outros não serão nunca nossos filhos. E ninguém pense que me refiro aos rebentos pensando na continuidade ou baboseiras afins; tais pormenores, como a extinção do nome familiar – apelido – ou o seu inverso, pouco me dizem. Mas as noites que passei aflita com as suas dores, o que sofri com o receio que tinham dos exames, o que trouxeram de novo e constante à minha vida enche-me de júbilo o coração (é mesmo isso, júbilo). Não. Os filhos não gostam de nós como nós deles, não imaginam quanto nos doem as suas palavras às vezes duras e outras apenas desleixadas. Querem ser eles. E como nós somos alegres de assim os ver.
E eu sei de fonte segura que o coração dos pais dilata e se torna poço sem fundo de amor. Que os nossos meninos nem espreitam, empenhados que estão em marcar o seu lugar, não raro o mais distante que conseguem.
Mas as meninas indianas são como as cadelinhas que levamos ao veterinário para esterilizar. Não são, não. Porque as nossas cadelas não morrem da esterilização, são operadas em clínicas, anestesiadas e tratadas a antibiótico e carinhos no pós-operatório. Gostamos delas. As meninas indianas não chegam à condição dos nossos animais domésticos. Porque morrem por estupidez e ausência de assepsia. Porque têm idade de brincar com bonecas e lhes retalham as entranhas. Porque a desumanidade singra neste mar de sargaço.

E isto, para mim, é Sodoma e Gomorra.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Conversa Doce com o Meu Avô

Avô, se tu soubesses! Ao contrário da maioria das crianças não me lembro de querer crescer, crescer não teve sequer grande piada, mas estavas ali, a entalar-me uma notinha pequena nos bolsos, toda a ternura derramada no teu sorriso;  e era verdade que a nota não me fazia falta, que apanhava a carreira contigo no pensamento e me custava menos a partida se surgias inexplicável. Tanto te custava andar e nunca te senti aproximar da paragem. Por vezes penso se os outros netos terão de ti igual lembrança, se lhes guardavas o mesmo amor. Eras um coração grande, todos te gostávamos. Te gostamos. És um coração grande. Pergunto-me agora, numa quase certeza, era desculpa, não ias a nenhum outro lugar, ias propositado para ver-me partir, mansamente, no teu esforço de tudo, apoiado na bengala de tanto ano. No tempo de teres casa tua, chegavas do trabalho e deixavas o cajado à entrada da porta; ou eu to tirava e ia lá pô-lo sem arte, que caía de imediato. Corrigias-lhe o encosto com um pé calçado e outro descalço, a rir para mim, o avô ajuda. Era um pau grosso e leve, polido de uso, alguns nós salientes. Se perguntava a minha mãe, é um pau de quê, ela, não sei foi o avô que o arranjou; eu a recordar um santinho de S. José também com um pau na mão que floria lá em cima – era um bordão, mas eu não sabia - e a mãe na sua paciência, ou talvez para me calar, é um gamão, então eu segura, o cajado do avô é um gamão, não é?   A minha mãe, sim, chata. Eu, e porque é que não tem a flor? O avô cortou-a, não foi? E passeava contente a descoberta de o meu avô um cajado igual ao do santo. Não passeava só, contava a todas as minhas vizinhas de escola, o que me apunha logo uma certa aura de glória. Tinha imenso respeito pelo teu bordão mesmo que não florido e ofendia-me que a avó, aí não se mexe, como se eu fosse capaz de estragar alguma coisa tua por querer. Desculpa não dar pelas tuas pernas a pararem, a juventude pouco vê e inda hoje as coisas me passam. Mas nunca te faltou o infinito da minha alegria ao ver-te, a saudade que me levava onde estivesses, as balholhices que sempre te disse e gostavas de ouvir quando rias baixinho a sussurrar, esta neta, esta neta, e ficavas por ali. E tanto me dizia quem tão pouco falava.
Oh, mas comecei esta conversa para te contar que hoje comi a minha primeira filhós de Natal. Comemos nós dois. Pois foi. Grossa e polvilhada com muito açúcar como gostavas, lembras-te? Tive de sacudir o açúcar, mas tu tiravas torrões do açucareiro às escondidas da avó e sempre preferiste o doce, a diabetes a milhas, portanto, adoraste. Quando eu sabia fazer filhós, deixava um pouco de massa no alguidar para tender as tuas: mais grossas e com mais açúcar e canela. Depois levava-tas onde estivesses a desejar que as provasses logo para me confirmares o gosto. E fazias-me a vontade, a mastiga-las contente. Bem sei que a princípio eram meio desenxabidas, a boa vontade não faz tudo, e em coisas de filhós não é sequer o meio caminho andado, só a prática nos faz a mão (agora também já a perdi, vê tu). Mas tu comias uma e depois ficavas a partir bocadinhos pequenos e a dizer, assim é que é, não gosto daquelas filhós que as tuas tias fazem e parecem papel, a partirem-se todas nas mãos…e eu a inchar de contentamento.
Fazia-te bolos e depois só pudins, já que pouco mastigavas. Tens de me desculpar aquele pudim de ovos. A intenção era que gostasses demais. E para que ficasse melhor, em vez de uma casca de limão pus a casca do limão inteiro - ó santa inexperiência - e fui levar-to contente. Na verdade fomos nós quatro, a imaginar um pudim de sabor incrível. Sentei-me um bocadinho contigo, mas havia o jantar, e as galinhas e mais não sei quantos animais à espera antes de ser noite. Deixei ficar os meus irmãos para o lanche e rumei ao destino. Chegaram à noitinha e perguntei a uma das garotas, provaram o pudim? E elas, não, mas o avô e a tia comeram. Eu ansiosa, o que disseram? E a mais velha, a tia disse, hum… é bom é, sabe a cachola de porco. Eu a abismar da conversa, o quê?! A que é que sabe a cachola de porco?! E como é que a tia comparou um pudim que é doce com carne de porco.  Virei-me para ela, queres ver que o pudim estava estragado… E salta o meu irmão, o teu pudim sabia mal, até amargava, não gostei nada e olha quase ninguém comeu. A mais nova contristada, olhos no chão, eu provei um bocadinho e não prestava, mas não te queria dizer, ias tão contente com o pudim e estava tão bonito. Pois é avô, nem sempre é verdade que a intenção…
E olha, já que estou em maré de sinceridade, aquele bolo de bolacha de que gostavas muito, era barrado com a manteiga que tu não comias. A gente não te disse para não te envergonhar. Mas agora já podes saber.. Não acredito que nunca notaste o gosto da manteiga. Vá…admite, sabias, mas fingias que não e pronto. Eu para ti, avô mais uma fatia, e os teus olhos, pode ser. Ou quando era mais nova a minha mãe, amanhã o avô vem cá almoçar, eu, vou fazer o bolo de bolacha.
Por vezes carpinteiravas de lápis atrás da orelha e eu cirandava a teu lado que nem carraça a copiar-te o que podia. Mal te ajoelhavas numa medida mais exacta, tirava-te o lápis e tentava uma imitação, mas o pobre do lápis acabava-me dentro do ouvido, único lugar onde conseguia equilibrá-lo. Envaidecia no gesto, avô olhe, eu sei, não sei? E tu tiravas-mo com um beijo, dá cá, agora o lápis faz falta ao avô.  Nunca me disseste que não sabia, que estava mal, não te assustavas como a avó, tira lá o lápis à gaiata senão ainda acontece uma desgraça, tão parvo é o avô como a neta.
Olha, estás além do espelho e não te vejo; apenas te sei a presença, mas espero que estejam os dois, tu e a avó. Se tanta vida não vos separou, é assim que tem de ser na morte.

Um abracinho 

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Pégaso

Pégaso. Gosto deste cavalo desde os treze anos, quando a professora de história me falou dele. D. Maria do Céu usava óculos redondos e chamávamos-lhe “a biotex”. Ninguém gostava daquela professora que gastava parte das aulas a mandar sublinhar os livros. Ninguém excepto eu que também era alguém. Ela para mim, a propósito da continuação dos estudos, “dá Deus nozes a quem não tem dentes” e eu sem entender que era um provérbio, nem se eu tinha as nozes ou tinha os dentes ou se aquilo não tinha nada a ver comigo. Pedi-lhe que repetisse e ela fez-me o agrado a bater as pestanas encompridadas com rímel e um traço negro sobre os olhos que tento imitar mas fica sem jeito nenhum, que pelo menos num olho está sempre torto e a vontade de hoje lhe perguntar, D. Maria do Céu como é que se acerta um olho com o outro.
No entanto, alguém me disse que a senhora deixou o marido, descasou do ex senhor presidente da Câmara da minha terra. De modos que a D. Maria do Céu hoje só Maria do Céu porque o nome do marido também o jogou fora, quero lá saber do teu nome para alguma coisa, pensas que és importante só por seres presidente duma vila simplória onde detestei viver, tanta hora, tanto minuto naquele lugarejo, santo Deus como o tempo pode ser lento. De modos que vive sozinha num andar em Lisboa, o filho já casado. Quem sabe se ela com as mãos a tremer da idade e os olhos sem riscos nem pálpebras azuis claras que faziam a inveja de toda a gente, mesmo das senhoras da igreja que usavam banana e pintavam os lábios ao domingo para a missa, e se desagradavam publicamente do cabelo à Malvina num tempo em que a Malvina de cueiros. Elas num esgar para a franjinha que lhe bordava os olhos ou escorria um nadinha para as lentes redondinhas que nem Ós maiúsculos, tché! Olha bem para aquilo, não tem mesmo gracinha nenhuma.
            Mas, quanto mais desfeiteavam a D. Maria do Céu, mais eu gostava dela. É que amava tudo que os outros desgostavam. Assim mesmo. O meu pai se a via no jornal – vinha sempre em todos os jornais que o senhor  presidente era careca e mais baixo que ela e gostava de mostrar a mulher - , tem umas pernas piores que as da nossa mesa da cozinha, mas o meu pai era suspeito, porque dizia que uma mulher sem cabelos nas pernas não tinha encanto, e por isso sempre desconfiei dos seus critérios de beleza. Eu ouvia aquela obscenidade a soar-me a grossa asneira e ficava possessa, mas fui educada a não contradizer o chefe de família, coisa que parece que até aprendi muito mal porque na juventude me passei dos carretos vezes sem conta e lhe gritei as revoltas todas da infância, os deslargue-me do Lobo Antunes tinha-os eu todos atravessados e alguns disparei-os com tanto ânimo que abriram buraco na porta da cozinha. Ainda lá estão as marcas, quem quiser pode ir confirmar.
Pronto, mas eu vinha para falar de Pégaso o cavalo alado que fez o meu imaginário a partir dos treze. Não que tenha visto algum desenho do animal, alguma pintura, nada. A professora apenas disse que era um cavalo com asas. Achei magnificente. Pégaso. Palavra mais bonita! Foi bem mais tarde que descobri a mitologia grega e rejubilei, lá estava Pégaso o cavalo alado. E a comparação ao imaginário. Mas eu o gostara por ter asas sendo apenas e só um cavalo, eu a perguntar à professora, existiu mesmo? E ela, que é que tu achas, eu a dilatar numa certeza absurda, acho que pode ter existido. E ela a rir – a turma a rir -, não há cavalos com asas. E eu para dentro, quero lá saber, para mim há e pronto. Pégaso é o único cavalo que monto, que sou doente das costas e não me dou com solavancos. Mas Pégaso voa e é com ele que ainda hoje venço os caminhos. Os ínvios caminhos do Senhor. Pronto, já custo um bocado a subir, mas se consigo, damos umas voltinhas bem boas. O que gosto deste cavalo não tem nome nem palavra.
Certa vez, num dos tais caminhos ínvios com que o Senhor nos presenteia, por sinal um dos bons, uma via larga onde perdi a bagagem, mas isso não conta, pois ali, no alto esquinado de um edifício público, um museu, vá, o meu Pégaso e eu novinha e de folha a alimentá-lo, um rabo de cavalo às três pancadas e as saias compridas que tanto me agradavam na época do tal rabo de cavalo. Parei parvamente no meio do caminho e logo as gentes me tropeçaram na figura porque eu de nariz na esquina, hipnotizada. Eles a desculparem-se em linguagem desconhecida, julgo que a desculparem-se mas pode ter sido a chamar-me nomes feios que escuso de estar aqui a alvitrar, isto é um texto para ser lido por pessoas com mais de seis anos de idade e não é com menos porque a malta abaixo não costuma saber ler. Sorri-lhes num intervalo da contemplação e arredei-me para o lado a pensar que   não levara a máquina fotográfica porque se pagava mais e às vezes sou um bocadinho parva com preços, mas recusei entrar no museu antes da foto tirada. Fui buscar um amigo que gosta de fotografar e andava a surpreender instantâneos por ali, eu a apontar no rebordo do telhado as figurinhas airosas, por favor, fotografa-mos, please, please. Ele olhou-me como quem não entende a importância, disse, aquele é o Pégaso, e clic, fez-me a vontade.  Delirei de contente, mas só do lado do forro, por fora normalzinha.

Não sei se Pégaso tem segundo nome. Estou capaz de usar o apelido do Pégaso e infringir a minha regra: nunca usarei o nome de um homem. Ah! Cabeça a minha, não infrinjo nada, não me proibi de usar o apelido de um cavalo!:)) Tá feito e não mexe mais.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Sem Paisagem

Alguém me aconselhou uma vez, depois de fortuitamente me ler, “põe paisagem”. Fui a correr ler-me, investigar se era verdade que me faltava paisagem, que era claustrofóbica, encerrada nas pessoas e nos sentimentos, a borrifar-me para os ambientes, como se não existam. E é que existem. Só depois deste reparo notei que pouco descrevo do que não é humano. Se o faço, ponho-me logo a imaginar conversas das coisas, sensações, sentimentos. Que narciso! Outro dia, só para treino, resolvi escrever uma coisa situada, onde não esquecesse a paisagem. O resultado foi fraco e nem me reconheci. A verdade é que, se eu pintasse, a única escola que me servia era a de Van Gogh, já que vejo as paisagens sempre animadas, incapaz que sou da beleza fotográfica. Vejo os rios refastelados no leito, adormecidos; ou angustiados a precipitarem-se nos declives com a pressa de quem corre por um médico se uma mulher em parto difícil; vejo árvores transidas ao ruído sanguinário das motosserras; vejo folhas em remoinho, entontecidas de vento, as árvores a despirem-se sem sex appeal, numa orfandade de troncos cinza; cheiro o pêlo molhado dos cães às portas fechadas, prontos a seguirem-nos os passos que vá-se lá saber porquê parecem conhecer de outras vidas, nós em estranheza, a mirar os pés, terão vindo de quem antes de mim, uma vontade de experimentar se desatarraxam das pernas, será que desenroscam; vejo esta humidade nevoenta que desce da serra a envolver a terra em lágrimas silenciosas, que escorrem a engordar no amarelo das folhas e tombam devagar em baque adiposo; vejo amarelos e vermelhos garridos que pontilham pela encosta a exibir vaidosa moda da época, as mães árvores inchadas de orgulho, agora é que ninguém me agarra, estou demais neste vestido. E isto não é paisagem, sou eu ainda e mais a minha visão de mundo que não cola.

Um dia, fui pela tardinha até ao rio. Fiquei pouco tempo porque um carro estacionado junto à rocha, abrigado no escuro das árvores. Evitei olhá-lo, quem sabe se no interior um par de namorados a matar saudades ou apenas o amor de asa aberta, a boca a subir lábio a lábio, a tornear o queixo, a linha do rosto, aportando a pálpebras e sobrancelhas para descer depois pelo nariz até se perder miudamente noutra; e as mãos, não sei onde as mãos que elas têm caminhos desconhecidos do resto do corpo, talvez quem sabe, subindo pelo pulso e a seguir onde a pele é tão fina que quase seda ou mais que ela porque a seda fria e a pele morna, viva, um calor que apetece no vagar do ombro. Entretanto, ponderei que seria de bom-tom abandonar o lugar e subi até casa ainda com a imagem do que não quis ver se havia, entre outras coisas  porque se me desmanchava o encanto. Quem sabe era apenas um pescador que lá em baixo tentava a sorte, ou um amante da natureza que escolhera o crepúsculo para esticar as pernas
Mas para que hei-de acrescentar paisagem em coisas destas? É que não consigo. Pronto.

domingo, 9 de novembro de 2014

Diletâncias

As pessoas são todas iguais?!  São todas iguais o tanas. A primeira vez que frequentei a estância termal alojei-me no hotel das termas em cinco dias resumidos, que o bom tratamento tem custos. Desse tempo, guardo a distinta ideia de pessoas discretas, educadas e bem-falantes, inscritas em programas mistos de massagens de relaxamento e tratamentos específicos. Algumas crianças estavam com os avós enquanto os pais se passeavam pelo estrangeiro ou gozavam o seu tempo a dois. Eram famílias como toda a gente conhece, notava-se-lhes a naturalidade dos laços, os garotos portavam-se normalmente à mesa e obedeciam aos avós, julgo que por amor e respeito; lembro-me de uma garotinha que sempre vi de mão dada com o avô pelos jardins e ruelas, naqueles pulinhos felizes que só as crianças sabem. O hotel tem várias salas e recantos onde nos juntávamos por vezes. Falava-se baixo e pouco. Não tenho memória de apartes intimistas, relatos de doenças ou coscuvilhice, as relações entre os hóspedes pautavam-se pela discrição. Parecia haver um acordo tácito, estavam para esquecer o ano de trabalho e melhorar a saúde sem aflições desnecessárias. No ar, um meio espírito de festa que o hotel instigava a partir de novidades elegantes, repartidas por passeios e refeições. É verdade que ninguém me pareceu seriamente doente, mas dir-se-ia que esse era um domínio privado e que o hotel cumpria sobretudo o papel de uma estância de férias.
E este ano voltei. Para a mesma estância e noutro hotel. Mas não é o espaço que me confrange. É o espírito das pessoas. Não que tenham propósitos diversos. Vêm também para retemperar forças enquanto se tratam. E não é porque o salão é menos acolhedor que fugimos de estar. São pessoas que tudo contam e tudo perguntam. Que não supõem nem por um momento que são indiscretas ou aborrecidas. Os temas de conversa são as casas e os naperons e as toalhas de bainhas abertas que aprendem na universidade senior que parece ser a coisa melhor do mundo. Depois, enfileiram sem aviso pela moradia ou andar que possuem e passam tudo que lhes merece consideração a pente fino, contam o desenho da sala, os tapetes e candeeiros e descambam para as peles e cabedais que vestem. E tudo isto com preços, lugares, lojas e considerações infindas de amizades em todo o lugar. Em seguida, tomam balanço e descrevem o roteiro das viagens: conhecem Portugal de lés-a-lés e passearam mundo fora. Meus deuses! Não há um extâse, um enlevo a prendê-las, não se lhes para o pensamento numa recordação de beleza. Correm países no afã de marcar uma cruz, este já está; gabam restaurantes, pratos típicos e não há uma referência a um arco, uma rua, um museu, uma paisagem, um palácio, salvo para o mortífero, também lá estive. Lêem livros em fotocópia, que publicitam e emprestam, sobre os benefícios do vinagre e as técnicas brasileiras para melhorar a saúde. E massacram os interlocutores com doenças exaustivas e tantas que nem se sabe como ainda continuam vivas. Se por educação ainda resistimos calados, há as perguntas de filhos e marido e lugares e profissão e tudo que lhes importa ou passa a importar no momento, não se sabe para quê.

Eis uma doença portuguesa: provincianismo exacerbado. E, depois de tanto parafuso fora de sítio, pergunta-se a gente se isto terá remédio.

sábado, 8 de novembro de 2014

Depois da Chuva

Apesar do arroz doce sobre a mesa é o cheiro a maçãs assadas que ciranda no ar. Imagino que se alguém lá fora – mas claro que ninguém lá fora, talvez eu sozinha neste andar, bem noto ao escurecer que as luzes acesas em todos os andares excepto aqui –, a pituitária agradada, atardemo-nos, cheira a maçãs. É um bom aroma o cheiro a maçãs assadas; as minhas desculpas ao paladar, mas é o cheiro do fruto que impressiona. Vou à varanda e a cadela que não distingo se cadela se cão, espera-me em baixo, paciente. Os bichos solitários conhecem-se uns aos outros, atraem. Saio e logo ela avança contente, na alegria de abrir presentes de Natal, ou, sendo mais canina, roer um osso recheio de carne. E nada disso. Seguimos pelo passeio até à ponte. A cadelita avança na frente, a parar árvore sim árvore não – deve ter um problema na bexiga maior que o meu – e a apanhar-me de seguida. De repente para, orelhas fitas para o outro lado do rio onde três ou quatro pessoas varejam oliveiras, azeitonas pretas a cair em pés de lã, meio zonzas e desasadas no trambolhão, upss, aleijei a cabeça, devo ter batido num tronco, ou, oh, que violência é esta a desprender, logo agora que estava a conversar com a comadre. Golpes de vara atiram-nas sobre panais azuis onde depois as mãos se fazem galinhas bicando milho pressuroso. Aproximo-me da atenção do animal, chamo-o. Entrega-se em contentamento, deixa-se afagar. O que todos os seres gostam de festas, as árvores a rir se uma mão lhes passeia o tronco, as couves galegas que reverdecem a um toque dedos, as flores a imporem-se em nitidez se as acarinhamos com os olhos. E mais. O mundo precisa desse modo relativo para rolar no seu eixo.  
Mal eu, vamos, logo me precede  em passinhos certos. Chegamos e pára num olho cúmplice. Aproximo-me a meio da amurada sobre a água a ajuizar, diz-se amurada numa ponte ou não. Ela, púdica e educada, atravessa para o outro lado. Fico a sós com o fascínio aterrador e escuro da água. Medito, se eu caída lá em baixo, chegaria a sentir o choque frio ou desmanchava-me toda antes do mergulho final. Decerto me desmancharia sem graça, as vértebras do pescoço a dar de si, desistimos. Não o meu corpo em parábola, gracioso, mas uma rodilha de roupas e limos comigo que já não era mim no interior. Sem cor, que os afogados vêm lavados à tona, a água sabe o que faz. Mais que lavados, desbotados. Lívidos, lábios roxos, pernas hirtas, uma aspereza de corda desfiada nos cabelos, as miudezas todas à mostra, até que alguém um casaco, um cobertor, como nos filmes. Volto-me e espio a cadela. Observa-me expectante, nos olhos um pedido, agora tens de ir ver do outro lado. Corre na minha direcção e adianta, nem tudo é negro, vai, anda mais um bocadinho. Obedeço-lhe e a espuma que se eleva da queda da água antes aprisionada, encanta. Lembra antigas lavadeiras a baterem lençóis na pedra, remoinhos de barco no mar, liberdade de brancura em tardes abertas e soalheiras.
Contudo, não faz sol e um vento frio encana sobre o rio a varrer folhas, cheira às árvores depois da chuva e nem um grão de poeira no ar. Não sei se há Deus. Mas estou aqui, leve, no meio desta nitidez deserta de gente. Eu. E todos os meus sentidos intensos e puros, a percepção numa agudeza que comove.

Subimos de novo e serpenteamos junto à estrada; passamos ao largo dos restos da Casa Maial sobre que ainda hei-de escrever para firmar este desgosto ainda etéreo, que as palavras vão fotografar à luz que me coube. Olho os longes da serra. Escuto-lhe o silêncio, o ruído das motosserras ausente.  O sábado poupou-me a visão confrangedora das árvores a cair em rapidez, uns anõezinhos maléficos a correr de um lado a outro. Os socalcos estão sozinhos. Oiço-lhes a conversa silenciosa. Enfim, repousam. Só o esporádico de um ou outro automóvel que circula na preguiça do dia interrompe o descanso natural. Imagino que os bichos campestres, num fuge-fuge de chuva, se refugiaram em casa. Quem sabe bebem chá por cálices de flor, sentados em sofás de folha. Perdi entretanto a minha companheira. Regresso por humidades incógnitas e benfazejas, casa fechadas que o rio rodeia em quedas de água pequeninas. Olho-lhes as pálpebras cerradas, como será viver com a água por companhia? Estugo o passo que ressoa, marquei encontro com um bule e uma chávena, não quero pô-los em espera:) 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Pesos Insustentáveis

No fim de uma estrada a descer em caracol, plantado a meio de um terreiro de árvores, sua majestade o hotel a impor-nos a  brancura elegante e discreta dos seus dois pisos austeros. Tem uma traça de recantos que lembra coroas e grandes senhores, olhos empertigados e  longilíneos a toda a volta, sublinhados de pequenos frisos e gradeamentos verdes. Se o olhamos com atenção, as linhas puras em traço recto  dominam o conjunto e apenas em algumas janelas uma ogiva pequena. Guardou tropas na época das invasões francesas e é compreensível o rigor despojado e militar da sua traça arquitectónica. Diferente de tudo o resto, mas enquadrado na paisagem. Puro acontecer de si, ergue a sua linhagem sem ostentação. No interior (será ainda o mesmo?), uma certa velhice camuflada, aqui e ali ainda o brilho da qualidade. O bom gosto. Contudo, o chão dos quartos em linóleo a apoquentar-nos os pés, canalizações gorgolejando desditas paredes fora a impedir-nos o recreio do pensamento, casas de banho só parcialmente remodeladas. E nem sempre é possível escutar o silêncio que a noite traz no ventre.
Este ano não resisti a espreitá-lo. Na aparência o mesmo. Igual. Como se os anos não signifiquem na cal e no vidro e o granito de portas e janelas uma santa Bárbara das intempéries. Não me reconheceu. Eu a rodeá-lo a toda a volta e ele, não sei quem é, são passos novos. Entrou-me um  desgosto fininho, um frio de alma, pois tu não recordas as horas paradas na janela a olhar a copa das árvores; não tiveste saudade dos meus olhos líquidos a escorrer-te paredes abaixo, nem da tristeza que me cavalga por vezes sem licença quando toda me pergunto sem me saber, este braço serve para quê, eu para que sirvo e quem é isto a que chamo eu e não existe, caramba. E ele num sopro de vento nos áceres das traseiras, que os da frente estão ocupados em não deixar cair folhas outoniças sobre automóveis de estirpe, desculpe mas não sei quem é. E num remoque, a desviar conversa, deve estar a fazer confusão, não aceitamos quem não sabe quem é. Já viu a frota automóvel dos hóspedes? Ponha ali os olhos. E isolou. Embrulhou-se num manto de outono a despedir folhas lanceoladas a amarelar por tudo quanto era sítio, acendeu luzes exteriores e interiores que é como quem diz, despediu-me, porta aberta, faz favor, passe bem.
Doem-me estas coisas das casas a despedirem-me sem mais. Mas acontece, nem todas me recebem. Ainda julguei ser um amuo. Quem sabe ouvira das árvores que este ano mudei de poiso. Que as árvores têm longas conversas sussurradas e sabem tudo de nós, a largura dos troncos nasce do esforço para aguentar o tanto que guardam. A alegria mais leve, sim, mas também conta no peso. A dor humana pesa arrobas e o desgosto que se arrasta molemente na seiva, peganhento, viscoso, mói mais que uma enxadada à raiz. Só elas sabem o mistério da dor que devém folhas, flores e frutos. Esta é a verdadeira história das árvores que a noite em silêncio disfarça de susto e habitação de duendes que silvam desgraças de vento. Mas não. É tão somente a nossa voz calada, enraizada de anos e estações a perpassar. A Voz de todos os homens. Sem tempo ou diferença.  Enquanto a noite vela sobre o mundo, as árvores relampejam o eterno. E nelas te hei-de encontrar sempre.

Regressei devagar ao meu sítio, tentando não desmanchar a canção das folhas a rolar sobre si e a terra. Tão bonito surpreender o outono desgovernado! Deitei um olhar displicente ao parque automóvel do hotel. E as folhas numa queixa, quem me dera um vento de liberdade, mandava os cadillacs logo a um sítio. Olhei os meus pés solados e sorri: a vida não é igual par todos.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

Hoje, uma revista de bom papel e má qualidade foi taxativa no signo: “o rosa torna-la-á mais bondosa e amável”. Devastei! Como não tenho nada rosa - não é cor que sobre para saldo -, vou continuar igual. Penso, será que a minha bolsa rosa choc serve?! Agora preocupei com isto de uma cor conferir qualidades, como é que nunca tinha colocado a mim mesma esta hipótese. Ó Pá…eu podia neste momento ser um poço de qualidades. Sem fundo. E não. Que coisa! Qual aperfeiçoamento, qual quê. Cores e pronto. Já está!
Bom, mas esta é a história de um amor marítimo e não dos atrofios de uma revista que – juro que não li o nome de quem ali trabalha – se destina a ser lida por mulheres de outro sector. Aquelas que eu duvido sempre que existam – acho que são inventadas e não respiram, nem lavam loiça, nem passam a ferro, nem fazem contas para esticar o ordenado para as coisas essenciais. Sim, que as mulheres normais, hoje, não se podem dar ao luxo do supérfluo, suas dondocas (se é que existem). Bolas, já escrevi mais um parágrafo à conta da bodega da revista (e não, não a comprei)
 Ora, o meu amor à maresia foi nascendo. Aconteceu-me o que acontece num campo agrícola: há a semente, a rega o adubo; das sementes vão brotar plantas que se deixam crescer e amadurar e só depois se colhem no vagar do tempo certo. E a nossa relação aquífera muito deve à minha amiga de juventude. Ela, que hoje quase não o frequenta, tinha-o na mira e sempre tratou da vida por objectivos. Pragmática. O que é tão bom como mau. Na altura, eu detinha profunda admiração pelo seu pragmatismo, fortemente direcionado para a nossa diversão. Foi, pois, um amor que me chegou por interposta pessoa.

A primeira coisa que ela decidiu foi que tínhamos de comprar uma tenda para podermos acampar na praia, expressão contraditória em si mesma.  Era bem mais espevitada que eu e falava de adormecer a ouvir as ondas como se fora o jardim das delícias no Éden. Eu ignorante, e como fazemos, pedimos uma aos ciganos? Na minha cabeça as tendas eram dos ciganos ou do circo e as do circo pareciam-me altamente improváveis pela enormidade do tamanho; além disso tinham aqueles baloiços dos equilibristas que deviam dar pesadelos, pendurados lá tão em cima. Porém, as tendas dos ciganos eram sujas de não se lhes saber a cor e deviam cheirar mal. Ora não sou em nada esquisita salvo com maus cheiros. Como diz o meu pai, “toloro” tudo menos cheiros de sujidade; os alentejanos são isto, comem carne de porco mas não “toloram” porcaria. Estava eu achando que a empreitada era maior que nós, quando ela a rir, não é nada disso, compramos uma tenda cada uma. Eu com as minhas admirações parvas, compram-se?! Onde? Ainda nunca vi nenhuma (grande coisa, ainda hoje que já estou quase à morte vi pouco, que faria naquela altura). Ela paciente, olha, se tu quiseres, no sábado vamos as duas com o meu amigo ver umas a Lisboa; já andei a ver algumas e são bem bonitinhas. Mas levamos o meu amigo para nos aconselhar, ele deve saber melhor que nós. E eu a estranhar, mas ele não tem só quinze anos? Ela indiscutível,tem, mas os rapazes sabem dessas coisas; além disso ele é amigo de um cigano, tem prática de tendas. Apresentados em pano cru à minha ignorância, tais argumentos convenceram-me. Marcámos o sábado e lá fomos os três para um armazém que o fogo do Chiado havia de levar. Achei o máximo haver tendas. Palavra! Vim tão entusiasmada que fui logo ver onde poderia poupar mensalmente para comprar uma no princípio do Verão e ainda a experimentarmos antes. Foi uma tarde muito produtiva. O amigo da minha amiga tornou-se de imediato meu amigo e andou também ele muito entusiasmado por ter quinze anos e estar a dar conselhos a duas brasas na casa dos vinte. Esclareço que a nossa trempe também era sui géneris, ele era muito alto e magrinho – o meu pai achava-o parecido com uma louva-a-deus, epíteto que muito me ofendia –, a minha amiga bastante bonita, alta e gorda e eu baixa, muito magra e mal encarada, com um cabelão rebelde que quase me engolia, mas me servia de muro protector. Um espanto. Mas passámos a andar todos como corda e caldeiro e aquela velha sabedoria grega de que o triângulo não sei quê e que o número três em grupos não deve…faliu. Ele, um mosqueteiro autêntico. Enquanto eu olhava para as cores do sobretecto e do interior a minha amiga via coisas como quantas pessoas caberiam, onde colocávamos os sacos cama. O nosso amigo – passou a ser “nosso” logo que se interessou pelas espias cujas eu olhei com muita atenção a tentar comparar com a Mata Hari, mas nada – interessava-se pela facilidade ou dificuldade da montagem, que, está visto, o acto de levantar a casa era com ele; pela fortaleza das lonas e dos suportes, pelo peso das tendas, tínhamos que as carregar em braços até ao lugar onde acampássemos e outros pormenores que a mim jamais ocorreriam. Claro que tudo nos levava para tendas simples e só de uma divisão. Escolhemos duas iguais com o interior em laranja e o sobretecto azul. Lindas, lindas, lindas. O nosso medo maior era que as vendessem antes de conseguirmos juntar o dinheiro. Já não me lembro bem, mas é possível que a minha amiga me tenha adiantado algum para a compra. Porque a febre era intensa e a carteira dela mais espaçosa. No dia em que fomos os três buscá-las  eu vinha tão contente que só pensava que tinha de estreá-la com os meus irmãos a quem contara da novidade e que estavam empolgados a mais não poder. Entretanto já levara a minha amiga a casa várias vezes e ela gostava dos meus irmãos (graças a deus, graças a deus). Ia tudo correr bem.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Para Lá do Mar


Logo que nos sentámos no  lugar e acabidámos as barbatanas abelhudas, o meu saquinho de compras perdido dentro da mala, a reclamar numa vozinha pequena, também quero ver, tirem-me se faz favor, e nós duas a fazermo-nos surdas, empenhadas em calendarizar a data do nosso Dia Um. Alheia ao esforço da locomotiva que transpirava nuvens de diesel, ela, como se minha mãe ou tutora, quando sou a mais velha das duas, a decidir, toda ponderação, vamos a x que é a primeira praia, mas só depois de almoço; se te sentires mal, estamos perto da cidade e levamos-te ao hospital. Não te preocupes, vai correr tudo bem; precisas do ar do mar, estás muito amarelinha.
Mal cheguei a casa, experimentei a compra e achei-me linda de biquíni: à parte o embaciado doentio da pele, a magreza que vestida me tirava graça, aparecia agora graciosa. Pensei que bem podíamos  passar a vida de biquíni. Mas logo emendei o desejo a lembrar-me que tropeço em tudo e passo a vida cheia de nódoas negras. Se sempre em biquíni, ia-me desgraçar em todo o ângulo agudo, estatelar-me ao comprido até nos ângulos rasos, e sabe-se lá que mais da geometria que não me convém.
 Na data aprazada, o mar decerto se riu de nós. De mim, seguramente. Éramos quatro, ela e um amigo mais jovem, eu e a mãe dela. A pé. Até x, que eu não sabia onde era. Iríamos a meio do caminho e a minha amiga cortante, ó mãe, tu trazes duas malas para quê? Só então notei a senhora, uma mala de mão em cada braço. A minha amiga a azedar, mas por que é que tu vens assim para a praia, para que queres tu duas malas?! Desconhecia-lhe o lado áspero e pareceu-me mal tanta erva azeda para cima da pobre senhora entretanto parada no caminho, as malas de súbito uns trambolhos. mas não acrescentei, receando aumentar-lhe o embaraço. Afinal, tínhamos acabado de nos conhecer e ela gaguejava justificações numa atrapalhação de dar dó, os óculos em escorrega para o nariz, olhos de pássaro sem ninho, mãos aflitas a titubear gestos, vim ao médico, uma mala tem os papéis do médico e a outra é a da carteira… Mas a juventude impiedosa, olha para ti, mãe. Já viste bem a tua figura, já? A senhora, ó filha, desculpa, mas agora tenho de carregar com elas, trouxe-as…. E virou-me a fatalidade por detrás das bifocais, a boca entretida a contar o que trazia numa e noutra. A minha amiga adiantou-se com o jovem e eu a atrasar o passo para lhe acompanhar a mãe que seguia em balanço de navio, a menina assim a menina assado, desditando-se. A claridade feria no calor da tarde e junto ao asfalto o calor  subia em ondas, encaracolava. E o grupo pesado, lento, eu a pensar, se voltasse para trás, a apontar o incómodo de cabeça, que ideia a dela, para que trouxe o amigo. O à vontade a sumir, eu para ele, então…, mas ele chauzinho, tens de te arranjar sem mim. E eu, mau…e agora?! E de repente a minha amiga a sorrir, olhem, é já aqui. E começou a descer para a calma do imenso azul rumorejante. Ou o que me parecia, porque efectivamente ficou-se pela areia. Seguimos atrás deles por uma vereda arenosa e estreita,  os pés da senhora assustadiços, não me aguento no plano inclinado, a areia escorrega demais, socorro. Então, a filha mostrou o lado que eu conhecia e veio ter connosco. Estendeu as mãos à mãe e amparou-a até ao fim da vereda indicando-lhe onde e como pousar os pés, eles gratos, ai muito obrigadinho, estava a ver que não éramos capazes de chegar cá abaixo. E já eles em fato de banho, barbatanas prontas a entrar em acção. Então, a mãe veio vindo devagar pelo areal e sentou a sua exaustão junto de nós. Depois, pousou as malas e deitou as meias abaixo para dar descanso à brancura de pernas siamesas enquanto limpava as lentes suadas. Aquele gesto de cansaço despretensioso chamou por mim. Enchi-me de coragem e despi-me como se fosse a coisa mais natural do mundo, apesar dos meus dedos enleados nos botões, das roupas a pegarem-se-me às mãos, eu a achar-lhes um volume desusado, o que é que faço a isto agora, enquanto, pronta para a cópia, observava pelo canto do olho os meus dois modelos.
Nem nas orais dos meus exames suei tanto como naquela tarde em que não me lembro se me virei na toalha. Mas aguentei-me. Foi um amor cigano: de princípio atribulado.


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

Por razões que não interessam à história, o meu primeiro emprego não oficioso aconteceu num lugar marítimo a borbulhar de gente, com praias de renome. Tudo diferente dos meus hábitos campestres e sonhos pequenos. Se saía à rua, vogava a apreciar os passantes e, por comparação, a sentir-me marciana. Tinha vinte anos e era o tempo da confiança. Portugal abria as portas e saia para a rua mal acreditando que a ditadura passara. Não me lembro de rostos tão contentes, nem de ouvir piropos tão bonitos, atravessados de uma fraternidade que esfumou. No primeiro de Maio de setenta e cinco fui abraçada por desconhecidos, chamada para entrar em casas pequenas de mesa posta, cantei com grupos de rua que terminavam aos abraços e palmadas nas costas.
Contudo, não fora uma amizade que enraizou e floresceu, não arriscaria um passo até à água de que, aliás, desconhecia caminhos. A essa amiga de tanto ano, corpo e alma de curiosidade indómita, devo as primeiras incursões sem tutela, por entre os baixios que a vida teima em semear. Acompanhámo-nos respeitando diferenças estruturais. Ela entendendo a limitação dos meus possíveis e salvaguardando-nos algumas descobertas como dupla. Encontrou sempre novas amizades – que não beliscavam a nossa – para voos conjuntos do que me era vedado. Alegravam-me as suas incursões estrangeiras, as passagens de ano exóticas, os dias no Algarve em grupos pequenos e jovens. Dava-me prazer ver-lhe as fotos, acompanhá-la no fazer das malas que nas mulheres mete sempre compras e roupa nova, saber após os passeios como eram as suas novas amizades, o que mais a divertira, refeições típicas e outras mesquinhices. Paciente, relatava-me com fidelidade e bom humor tudo que fosse contável.
Portanto, só voltámos a ver-nos – eu e o mar -  nos meus vinte anos. Em contramão. Um encontro proibido. O médico a olhar-me sério, nada de praia, ouviu? E a minha amiga recente, não vais fazer férias na praia, só respiras aquele ar umas horas, três ou quatro, vá, o médico é parvo, não faças caso. Eu indecisa na doença, achas? E ela, ó pá não te faz mal, pensas que os médicos sabem tudo?- e sem transição -  Vamos comprar um fato de banho para ti e umas barbatanas para mim. Ancorei de boamente naquela decisão a antever azul sem fim e sol quente. Corremos várias lojas e desaparecia nos fatos de banho. Ela expedita, por que é que não compras antes um biquíni, tem tamanhos mais pequenos…Saímos com um castíssimo biquíni castanho escuro. Eu a duvidar de tanta pele à vista, não achas escandaloso? Ela a varrer-me a castidade num ápice, tás parva ou quê, é do mais tapadinho que há. Depois, numa olhadela satisfeita ao negro das barbatanas que espreitava no saco, vamos apanhar o comboio e marcar o nosso primeiro dia de praia durante a viagem.

(Cont.)

domingo, 2 de novembro de 2014

Escapadelas Sem Crime

Ai o supremo enleio das viagens de comboio! É a paisagem a mudar, o verde a fazer casa como se alguém teime na cor, bisnaga de aguarela entornada em verdura. Gosto do abrandamento na corrida, da chiadeira a fazer nascer passo vagaroso nas pontes sobre os vales,  céu de casinhas de brincar que são manchas pequenas a branquejar na distância desprotegida. E nós dubitativos, e se o verde as engole. Mas a alma imersa, de joelhos, em contemplação e certeza, a murmurar, é um presépio de natal ainda deserto, só o musgo, casas, caminhos… Porém, sou uma mulher também prática, retiro os óculos, folheio novidades(?) e rostos de revista com trinta dias de atraso. Atento nas fotos e nada de envelhecerem, mantêm a frescura dos sorrisos ou grandes tristezas e estão nisto há mais de um mês. Para mim são novos e são agora por ser o momento de vê-los, a primeira vez de os meus olhos derramados. Não obstante o continuum da pose, tolhe-me um pouco este meu espírito de devassa en retard, sobre vidas que desconheço e nem me interessam, se alguém me pergunte, o que leste, eu, não sei. Penso em tanto dia de permeio, quem sabe os amores de Verão já não duram, as tristezas eclipsaram por magia, as casas com interior de revista onde um casal ou uma dama em pose que eles pensam de felicidade mas apenas sorrisos, maquilhagem, cabeleireiros, pedicura, manicura e mais outras curas que não curam nada, só disfarçam. Cozinhas que não conhecem cheiros de comida, habituadas a perfume caro de passagem e com rasto, um avental nunca usado, as dobras de ferro e o duro da goma a protestar, tiraram-me do sítio para quê, já não sei para que sirvo. Uma linda de colher de pau na mão, a fingir que vai mexer uma panela reluzente sobre a placa que nem sabe acender porque as mulheres agora são profissionais como os homens, deram o grito do Ipiranga e a cozinha fica para quem. Soa a ininteligível, se deram o gritinho, por que diabo teimam em estar de colher de pau na mão, em função que abandonaram? Não se sabe. Ou sabe-se. Talvez seja porque às pernilongas – são todas pernilongas – envolvidas em matas de cabelo sedoso (não vou aqui esmiuçar se delas ou não, se lhes está na cabeça pertence-lhes e pronto), fica bem o avental. Pois imagino  essas casas varridas por um ciclone mal-educado que levou para longe as figurinhas de papel, as pernilongas a esticar braços pequenos, agarra-me, mas o papel a subir na brisa forte, elas a tremer num susto, tenho vertigens, ai de mim se caio num charco, antes a morte súbita. E os parceiros desemparceirados, num salve-se quem puder que as revistas não anunciam. O vento escancarou janelas, afastou cortinas, partiu e misturou descompondo a mise-en-scène, flores expulsas de jarras de cristal, a aguçar carpélios pelo chão depois de danças loucas de aqui e ali, ora numa parede ora noutra, onde todas se esfolaram, num atropelo de pétalas em carne-viva de flor, encharcadas, e agora? 
A fotografia é assim esta oposição entre o momento fixado e o seu devir imaginário que empurra para o movimento e tende a contrariar a inércia. Mas também nós. Por vezes, inertes fotografados. Que pode interessar se cristalizámos em sorriso?! A fotografia mortaliza-nos, reduz-nos ao momento da objectiva, é a sombra da caverna de cada um. Olhá-las afaga-nos a saudade sem lhe tocar a dimensão, mesmo que um afã de beijos nos suba à boca, mesmo que os olhos de papel nos recebam, vem, a gente para o papel, isso é o quê; e ele não tem resposta senão de papel. Como as pernilongas.
Ainda dentro de ser prática, enjoada de tanto papel, verifico a contracurva do meu interesse. Procuro na mala o tricot e lanço-me no mundo artesanal e concreto enquanto olho a paisagem de soslaio. A cimentar o propósito, digo para dentro, nada de pensares palermices, e começo a contar as malhas da trança, uma, duas, três…. Então um golpe de vento cola no vidro da carruagem uma pernilonga insistente, as pessoas, e esta quem é, donde saiu a boneca de papel que ainda há bocadinho o vidro estava limpo, e olham umas para as outras a tentar descobrir fraquezas, quem será que brinca ainda com estas bonecas? Alheia a pormenores, a minha veia maternal abre o vidro para lhe recolher as amolgadelas, a puxá-la pela saia ou por uma alça qualquer para junto de nós. Depois, compor-lhe a blusinha rasgada e animá-la  que já lhe basta uma casa desfeita e sem parceiro de sorrisos e outras coisas. Mas o comboio vira ligeiramente, o vento abandona-a e ela cai sobre as pedras levemente, em gritinhos abafados de papel que mal se ouvem, que, que, que…. Debruço-me para verificar se vive e noto-lhe o breve agitar das pernas cada vez mais pequenas, a parecer uma tesourinha de cortar as unhas dos pés. Respiro, está viva. Uma criança que se debruçou comigo, a mãe se cais rebento-te a cara, e ela para mim científica, olho clínico, aquilo pode ser o vento a bater-lhe nas pernas e ela estar morta. E depois, em morbidez infantil, deve é ter batido com a cabeça numa pedra e morreu logo. A mãe, anda cá que já te dou o arroz; sentenças tens tu muitas. O casal em frente já enjoado do assunto, os cabelos dela num vendaval desfigurado, pode fechar a janela se faz favor.
Fechei o vidro e sentei-me a enrolar o tricot que abandonado a si mesmo rolara sob o banco e dera uma voltinha no corredor, o novelo numa euforia, viva, estou livre das agulhas, vou dar uma curva. Entretanto, a mãe que não era era eu assoava o nariz ao filho resmungando entre dentes, sais ao teu pai, andas sempre todo ranhoso, mas que martírio o meu. E logo eu involuntária a topar um homem todo ranhoso e sem lenços de papel.
O garoto a piscar-me um olho matreiro por detrás da enormidade do lenço. A mãe numa pedrada macia, moncoso. Resolvi que era chegado o tempo da leitura e arrumei as agulhas. Elas em obediência canina, a escorregarem no entardecer do saco, mansamente, amanhã há mais. E adormeceram.


Nota: Que saudade dos comboios com vidros que desciam a hesitar perrices e nós cabeça de fora, a dar mãos e braços a quem ficava e nos seguia até sermos cabecinha de alfinete na distância.