sexta-feira, 5 de junho de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

Do meio do desalento, suspirei de alívio. Estava em presença da fase terna; por assim dizer, a melhor fase de uma bebedeira, se é que alguma tem serventia. Nesse estádio intermédio, o bêbado trata toda a gente com apreço e tem coração de ouro que por norma abre em mostra de penas. Sem gritos ou implicância. Entretanto, o meu pai beijou o neto que embrenhava a ligar um ferro eléctrico a uma torradeira usando extensão e ficha tripla, e parou a olhar-me. Inquiri sobre o favor e ele, ó filha tens que me levar e mais ao Luís da Vitalina ao Velório da Laurinda, a gente tem que lá ir acompanhar, tão amigos que éramos da rapariga. Eu, muda e queda. Lamentosa. O pensamento egoísta, carraça fixa no automóvel, sem se deter naquela morte para que não havia hipótese, injusta. E ele a saltar tudo, catapultado por preocupação irreflectida,  como é que o tiro dali sem riscar mais. O meu pai atentando-me no franzido, que é que tu tens filha, aconteceu-te alguma coisa? Tás doente?  - e num amor súbito – Diz lá ao pai. Este tipo de discurso, tão a desábito no meu progenitor, fez-me sorrir. E, no embalo do interesse, contei-lhe. Com alguma dificuldade, o meu pai veio vindo e sentou-se a meu lado no cadeirão, a verga a ranger por todo o lado. Olhou-me com olhos estagnados e vermelhos e despediu o seu oráculo, ó filha, qual é o problema, o que entrou tem de sair - e rematou na lógica da batata -  tudo que entra, sai. Agora, fazes marcha atrás, tiras o carro e pronto. Concluí que o intelecto já lhe estava embotado e não valia a pena tentar. Mas, ainda assim, expliquei. E ele oraculou de novo, imutável. Então, agarrei o guarda-chuva e a chave do carro, ordenei à criança que não saísse e levei-o ao local do crime. Debaixo de uma tempestade com tudo que lhe pertence, o meu pai observou, avançou dentro da garagem até onde conseguia, avaliou o espaço com a mão a entrar entre veículo e parede e pespontou, tens razão, se fizeres marcha atrás, fica mais riscado. – e demonstrativo, a mão colada aos dois – é que encostou mesmo. E a Chuva impiedosa.
Sentei-me ao volante na disposição de riscos duplos, mas sem vontade para ligar a ignição. Gostava tanto daquele carro, como é que podia riscá-lo sabendo que o estava a fazer. E estava nisto, porta entreaberta, quando vi o meu pai lá atrás, encharcado, guarda- chuva à banda, ó pai, segure isso como deve ser, não vê que se está a molhar todo?! Mas, à medida que a chuva lhe escorria pelo rosto e os cabelos do arrepio colavam à testa aparecendo sob a boina como mortos, ele ia esclarecendo as ideias. O meu pai pensava. Pelo retrovisor notava-lhe o esforço de roldana perra a puxar uma ideia annnhhnnnn….annnhhhhnnn…., os olhos pequeninos, assanhados, a ganharem expressão em câmara lenta. A chuva quase vertiginosa e ele todo vagares. Sentia-o concentrado, a enxotar a nevoeiraça bacenta e sem vislumbre que lhe toldava as ideias, o intelecto preso, avançando penosamente no raciocínio. Tentava encadeá-lo e as ideias fugiam-lhe do laço, escorregavam. E ele recomeçava. Insistia. E eu para mim, a incentivá-lo de cabeça, não desista, não desista; força, força, força. Eis senão quando, num rompante, endireitou o guarda-chuva, veio até mim, segurou a porta e, ó filha, já sei, não precisas de riscar mais o carro. Ligas o motor e eu vou para a porta da garagem e empurro a parede em que ele encostou, não vês que isto é em madeira, há-de dar um bocadinho. E depois, faço-te sinal e tu sais descansada. E foi tal qual. O meu pai deitou as duas mãos e um ombro à parede da garagem e fez surgir um desenho animado (ou um milagre, como se prefira), por artes mágicas (ou força dele) logo ali se abriu o espaço que antes não havia e pude sair sem perigos. Por causa das coisas, não voltei a entrar. É indubitável: ainda que embotado e sem saber conduzir, o meu pai foi – e continua sendo -  bem mais expedito e perspicaz que eu, pessoa encartada e supostamente consciente de si e do mundo.  
Voltámos. Mas, enquanto eu regressava de alma nova, ele retomara o feed back e já mergulhava enovelado na morte de minha mãe, a misturar lágrimas com costas da mão e gotas de chuva. Sentou-se de novo na verga rangente, tirei-lhe o boné a escorrer e ali ficou em solilóquio, os pingos do cabelo  sobre as calças pesarosas, confessando tristezas e erros – nesta fase também despontam os arrependimentos - enquanto eu dava banho e jantar ao garoto meio intrigado do comportamento do avô. De onde em onde, atirava-lhe umas linhas de continuação, expressões de valor zero, pois claro; ou, então pai, que é isso agora, não chore…
Esvaziado o desgosto, o meu pai levantou-se, foi até à porta e, já venho, filha. Regressou outro, mudara de roupa e estava decidido, vamos?, assenti e saímos.

Não me lembro de ter conduzido em temporal maior, mas esquecemos tanta vida e tenho tal apetência para emparceirar com chuvas torrenciais que pode ter acontecido. O meu pai, ainda estacionado em sua fase sacrossanta, de filha assim, filha assado, inchava a meu lado. O vizinho, que apanháramos na curva do caminho e a quem tive de abrir e fechar a porta, seguia no banco traseiro em silêncio comatoso, um pivete atabernado dentro do carro que não se aguentava, os vidros baços e a escorrer, o limpa para-brisas num virote cheio de fernicoques. E o meu pai dando largas ao seu orgulho sem geometria por a filha saber conduzir no meio de tanto raio e corisco, a apontar ao vizinho os estragos do caminho como se voássemos dentro de uma nave espacial, a coberto de qualquer maldade  da natureza. E tudo era um achado, parecia-me estar a meio da primeira viagem de circum-navegação. Contudo, seguíamos apenas para o resultado de uma burrice médica: uma rapariga morta em cirurgia de carácá. 

2 comentários:

  1. Só mesmo uma avó dava com este blog. Uma avó Especial e muito Queridinha. E se eu a fiz sorrir já valeu a pena postar)

    ResponderEliminar
  2. Aquilo ali em cima era para ser um sorriso, mas ando um nadinha destreinada. Agora é que é:))

    ResponderEliminar