Em
obediência à secura de eucalipto, os acompanhantes vão chegando à sala de espera.
Onde desesperam, cronométricos. Mundo sinuoso, este: sem os doentes e à medida
que os ponteiros do relógio se distendem num compasso de vagar e passinhos de
bebé, a preocupação cede à curiosidade. Olha-se em volta e o panorama é de
retalho: ali uma senhora desdobra, a apontar para o fundo de papel azul, as
instruções de uma toalha em croché com passarinhos; mais além, um homem ressona
sobre a barriga, queixo enterrado no peito. Na fila de cadeiras a meio da sala,
três ciganos destilam elegâncias de cavalo árabe. Espreguiçam-se de braços ao
alto e escancaram-se a bocejar até à epiglote, incapazes de quietude. Quando entram
os palhaços, riem os três com muito mais graça e naturalidade que os pobres de
nariz de morango. E, quer o lado masculino quer o feminino, passeia-se
flexível, no andar quase felino que lhes pertence e faz a inveja de qualquer
modelo de passerelle. Num dos cantos da sala, uma senhora de salto muito alto e
meia a condizer, cabelo preso com ganchos invisíveis e uma possível revoada de
laca, monta um par de olhos escandalizados quando o cigano mais jovem sai a
pingar da casa de banho, nu da cintura para cima; ela, baton em linha agastada,
a desaprovação pelo corpo a contrair, não me digam que ele tomou banho ali; e o
moço alheio, como se em casa, a sacudir a camisola antes de a vestir, caracóis
a escorrer - diriam os brasileiros que bem devagarzinho -, o corpo moreno a
reluzir de gotículas, estriados bem definidos. E depois, embaraça os braços
molhados nas mangas, a esforçá-los até surgirem vitoriosos na ponta do punho e senta-se
sem reparo à atenção que o marcou. A meio da sala, as máquinas, a incentivo de
moedas, cospem sumos, cafés, batatas fritas…E sobre os nomes anunciados ao
micro, a intermitência musical, quase sempre de mau gosto, de telemóveis
insistentes. O mundo dos telemóveis raia o obsceno. Porque a vontade portuguesa
de exposição chega a ser delirante. Magoa esta vaidade com defeito que
sobressai nas conversas em alta voz ou em voz alta, apetece mandá-los exibir-se
na rua, dar-lhes um piparote de boas maneiras. A dada altura, os ciganos agarram
os filhos com leveza e vão embora. Ficou fazendo falta no lugar aquela
naturalidade empática.
Hoje faz anos um dia feliz. Contudo, para ouvir as Canções de Abril, para recordar que a canção é uma arma, tive de recorrer à RTP Memória. No meio de desenxabidos discursos lacaios de interesses menores e onde poucos deram vivas ao povo português, ninguém lembrou a genuína alegria de há 41 anos e que devia repetir-se hoje. Mesmo que diferente, devia.
A "Grândola" comove. Que a tenho por uma canção tão triste como verdadeira.
Hoje faz anos um dia feliz. Contudo, para ouvir as Canções de Abril, para recordar que a canção é uma arma, tive de recorrer à RTP Memória. No meio de desenxabidos discursos lacaios de interesses menores e onde poucos deram vivas ao povo português, ninguém lembrou a genuína alegria de há 41 anos e que devia repetir-se hoje. Mesmo que diferente, devia.
A "Grândola" comove. Que a tenho por uma canção tão triste como verdadeira.