terça-feira, 31 de maio de 2016

Olívia

Quanto tempo!  Penso-te a vaguear nessas ruas sem poeira. Ou talvez nem haja ruas e tenhas perdido a alma vagabunda, tingida agora no ópio da indiferença. Tanto mundo de permeio entre vida e morte. A vida compraz-se no acontecer de que a morte se guarda. Uma é ebulição efervescente e faz-se pública; a outra concentra-se em frieza jacente que incomoda e desinteressa à euforia das horas.  
Mas deixemos as minhas reflexões sempre a chinelar que não foi o que me trouxe. Conheces-me. Sabes que não aprecio grupos grandes, que gosto ou já me habituei a estar só, que o silêncio me faz bem à cabeça e lhe dou hoje outro quilate. E também sabes que se o tempo passa e me deixo ficar quietamente, começa aí um período de urgência de escrita e voz. Que ainda não chegou. Mas quem sabe se aproxima. À tua sombra.
Por vezes penso em ti – muitas vezes. Não em ti morta e amorfa. Em ti a olhares-me, interessada no que digo. Ou entusiasta, contando as tuas idas e vindas, os desaires, as pequenas alegrias da profissão. Os teus desconcertos que são desconcertos de toda a gente, mas só em ti têm halo de verdade intransponível. Se fosses objecto, por certo serias lâmina de arado. Revejo as tuas revoltas de corpo inteiro, uma força de ânimo que é lâmina onde os torrões são manteiga. E ainda assim a morte te levou e quando te escrevo é comigo que falo. Escrevo de mim para mim em monólogo interminável. Tão estúpido. Mas não aguento pensar que é inútil.
Talvez tu não me existas. Talvez só eu me exista. Mas existo por nós duas. Podes crer.

Fica bem. E guarda-me. Guarda-me sempre.

domingo, 29 de maio de 2016

Um Sábado Como Outro Qualquer

Ontem alguém que posso ter sido eu acendeu uma lâmpada no sótão e não apagou a luz. Como a lâmpada pendura sobre os tapetes de inverno que já arrumei, aqueceu-os quanto pôde e quando subi ao sótão havia um cheiro a fibras queimadas que galgou mal abri a porta. Por via disto, dormi mal. Os tapetes arderam e arderia o resto se não tenho subido naquela hora; apesar de janelas e claraboia  escancaradas, o pérfido cheiro parecia colado a tudo. Acordei antes das oito para um sábado de pouco apetite.  Levantei-me e estava estranha e meia zonza. Tomei o pequeno almoço que é o meu remédio de fazer passar tudo e arranjei o do filho mais novo que saía cedo para um fim de semana com a namorada. Lavei-me, vesti-me, fui estender  a roupa a aproveitar que não chovia (as máquinas, por serem máquinas, trabalham de noite sem canseira); arranjei e temperei o frango para a cabidela, fiz a salada, cortei a cebola para refogar. E fui varrer a rua que o vento e a chuva nocturnos tinham enchido de folhas. Voltei a casa e fiz a cama do rapaz, engraxei-lhe os sapatos, deitei a roupa suja ao cesto e abri a janela a arejar o quarto. Como ainda estava zonza pensei medir a tensão: 9,3-7,2, pareceu-me estranho e fui fazer o almoço e a gelatina do pudim para amanhã. Entretanto, fui virando a roupa e apanhando a que enxugava; dobrei e arrumei o que não é de passar e guardei no cesto a que tem de levar ferro; separei a que amanhã terei de passar a ferro para o filho levar. Subi e arrumei o meu quarto.  O outro filho acordou, tomou banho, desceu e pôs a mesa. E almoçámos mal o pai chegou para voltar a sair. Pus a loiça na máquina, lavei alguma e arrumei copa e cozinha. Eram quinze horas quando terminei. Levei um garrafão de lixívia para o carro e mais umas luvas de latex e roupas velhas e fui para casa de meu pai. Até às 17, 30 esforcei-me por branquear alguma coisa na casa de banho e cozinha, enquanto a minha mana limpava a sala de esfregona e balde, e muito convicta aconselhava: limpamos só ao de leve que isto está uma sujidade. Ao de leve para mim não existe. Esfalfei-me e ainda trouxe o enxugador da loiça para deixar na lixívia de um dia para o outro e levar amanhã já desencardido. Mas às 18,30 era a missa por alma de. Ao quarto para as seis cheguei a casa, lanchei e sentei-me 15 minutos. Dei-me mal com a igreja e passei a maior parte do tempo sentada por causa das tonturas. No caminho para casa passei no super a comprar as faltas para o pudim. Cheguei eram 19,50. Comecei dois jantares distintos  e às 20,30 estávamos à mesa. Às 21 levantei-me e fui pôr o escorredor da loiça na lixívia. Escurecia. Voltei e ajudei a levantar a mesa. E fui fazer o pudim de morango que deve ficar de um dia para o outro no frigorífico. Quando terminei, lavei a loiça que sujara, fui buscar o portátil e subi. Antes, ainda fui ao quintal a virar o escorredor que felizmente já estava regressando à cor natural.
            E enquanto isto os homens?
Oh, por ser fim de semana têm de descansar. Os homens fartam-se de trabalhar durante a semana. Coitados. Portanto, levantam-se tarde, tomam o pequeno almoço descansadamente – não têm nada para fazer, é fim de semana ufa, a semana foi complicada - têm de ir beber café com os amigos e ficar à conversa, ir ver o jogo de futebol que nos canais do desporto passa à hora mais conveniente que é a todas as horas. Transigem em pôr mesas e levantar, lavar a loiça do almoço ou do jantar se não tiverem de ir a qualquer lado que os impeça. Entretanto, perguntam se não preciso de ajuda. Se digo sim e distribuo uma tarefa, logo a prontidão se lhes esvai e se lembram de uma coisa para fazer; ou, não podendo fugir, fazem mal e com má vontade o que peço.

            É por estas e por outras que aborreço os fins de semana. 

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Friends e eu

Tenho quase 62 anos e repasso a série Friends pela quarta vez.  Sinto na vergonha que não tenho que vou estar com 100 anos a ver o Friends. Emendo, é uma grande maçada ter 100 anos e portanto abdico do número, mas vou continuar vendo o Friends enquanto possa. E se a TV do outro mundo não passar a série, de duas uma: ou desisto de vidas eternas e outras bugigangas, ou empreendo uma luta reivindicativa que não cessa na morte por já ser cadáver e promete não dar folga aos eternos. Sendo necessário, crio uma sindicância do relax.
Ora a mim mesma me intriga esta desrazão de repetir o que já sei e ainda assim me diverte. Eu. Que detesto rever filmes e séries ou reler livros. Que pode ter a série de especial para me conquistar o espírito - dou-me conta que a expressão não é conquistar o espírito, o Friends enquistou em mim. Bom, admito que as séries bem humoradas, vulgo cómicas, me agradam. Mas é insuficiente justificativo. “Uma família muito moderna” não me faz o mesmo efeito; “The office” também não; “Conta-me como foi” ainda menos (a mais fraca das três). Mas vejo Friends e começo a desaparafusar; se fora um desenho animado havia porcas e molas em hélice a saltarem-me da cabeça logo no genérico. Pavloviana, desato a gargalhar às mesmas imagens. Parvamente. Será a série assim tão engraçada?! Para mim, É. Acorda tempos mortos em que também eu encadeava num grupo de amigos e vivíamos diferente, mas com emoções e sentimentos semelhantes. Aquela gente vive por nós e em modo de ampla liberdade, o que todos gostaríamos de ter experimentado. Não pensam senão em si mesmos. Há como que um separador a isolá-los no seu mundo de preocupações  juvenis estacionadas no presente. Pensar em futuro cheira a velharia. À juventude basta a hora que passa, ela é em si mesma tão rotunda que não sobra espaço.
É bem verdade que aprecio o tipo de humor que percorre cada episódio – fácil e ancorado em situações divertidas  -, os diálogos a condizer e medianamente inteligentes, e o bom desempenho de actores. Até aqui nada de novo, são ingredientes próprios deste tipo de séries. Mas não só. Creio, sobretudo, que lhes amo a situação: são cinco jovens independentes e amigos que vivem em andares contíguos. Isto e mais o terem a sua idade, ata-me a eles. Quem sabe vivo neles o que não consegui, lhes invejo a possibilidade, me anima a amizade que os une e só eu sei não ser eterna. Porque me revolvo e evolvo naquele saber crente de ingenuidade feito. Certo é que desvaneço quando Ross diz “it’s alwais you, Rach”; porque a gente farta-se de saber que o amor é efémero e mutável, mas, em faz de conta, continua a querê-lo eterno e um. E não há como a certeza convicta de Pheebs, “She’s her lobster”.

Portanto, sem pensar muito, sem pensar nada: Friends é a minha série preferida. It’s alwais you, FriendsJ

domingo, 15 de maio de 2016

Os Modernaços são uma Lástima

Admito: por vezes sou atacada por uma virulência de nulidade.  Não é uma anulação total, mas é sem dúvida parcial (como os eclipses). O mesmo é dizer, continuo existindo, mas não faço coisa que se aproveite. Contudo, esta obnubilação parcial, tão enganadora como um quarto minguante, nasce de um impulso para a escrita. E hoje aconteceu-me. Em revistas semanais sou adepta confessa de certa evidência clean, da discrição de cores, de holofotes apenas no escrito. Mas hoje os olhos têm de ferir-se nos amarelos e laranjas, nos textos a azul (muito mais difíceis de ler; será que a ideia é não ler?!), pretensa vitalidade que descamba em evidente mau gosto. Bom. O que me chamou a atenção foi mesmo um texto a azul que precisei aproximar da janela para leitura integral. O título, convenhamos, sem ser de todo original, é apelativo, “O meu amor é um robot”. Havia uma canção dos extintos  Salada de Frutas que se chamava “Olh’ó robot”. Mas  só considerava o andróide, não havia amor. E no entanto já vi um filme interessante com um escritor de cartas, profissão do futuro (nasci demasiado cedo, está visto), apaixonadíssimo por um robot todo voz e sugestão; e que, caldo dos caldos, acaba por deixá-lo e partir para outra relação. Não esquecer: o robot é só voz, mas vive com ele a horas certas: responde-lhe, sugere, conversa. Insinua-se, vá. Eu que sou mulher achei o filme delirantemente íntimo. E agora leio em letras azuis e difíceis que a ciência e a indústria robótica estão engalanadas porque vendem caro umas meninas biónicas com nome abusado de x: sexbot roxxxy. Pois esta garota supersónica está à venda online. É cara, mas como deve sobrar andróide, não há referência a desgaste de uso, e está à disposição sem dores de cabeça ou mazelas que se conheçam, compensa (?). E depois há um escritor que fantasiou num romance as futuras interacções privadas com robots e anda eufórico com a premonição. E gente entendida que refere que as pessoas se excitam na mesma a tocar as partes íntimas das garotas artificiais. Ora bolas. Então mas eu sou maluca, ou esta gente é que não é humana?!  O senso comum sabe que as pessoas se excitam só a pensar; qual é a descoberta se isso acontece também quando tocam algo parecido, ou mesmo muito igual a uma mulher?!
Ah! Pronto. Está resolvido o problema dos homens execráveis e que toda a mulher delega; os de exagerada timidez e que não se mexem para nada, ficam a ver passar o cortejo toda a vida; os da taradice e perversão sexual; e outros que não sei nem me apetece saber, mas existem. Dizia o Álvaro Cunhal e eu apoio, “Olhe que não, olhe que não”.
Não queria dar cabo da felicidade do escritor David Levy e mais da sua bola de cristal; nem da indústria com suas esperanças palermas que cirandam nas letrinhas cor de céu. Mas esta gente vai acabar por enlouquecer-nos. Ai vai, vai. Acham que há poucos problemas na cabeça das pessoas, estão tratando de acabidar mais uns. Qual será o parvalhão do homem que prefere uma boneca?!  Como o que é que lhe falta. Tudo. TUDINHO. Uma boneca, cuja pele artificial consta de polímeros flexíveis e outras manigâncias, é ainda e sempre uma coisa. Ora o mais primário encontro com o outro, é com um eu outro. Não é com um objecto. Estaremos a prescindir do confronto que nos é tão salutar. E depois, não há depois. Um boneco é coisa sem futuro, não pode dar a satisfação, o enorme prazer, de estar com alguém, de ter aspirações comuns, lutar pelas mesmas coisas, viver o dia a dia a seu lado no bem e no mal, no assim assim, com o seu cheiro e as suas manias, com todo o caudal de rio sem fim à vista que uma pessoa comporta e nem sempre se aguenta, mas pertence. Não entendo. Juro que não me entra.

Só me faltava esta. Francamente! Sempre há gente muito obtusa.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

"No Tempo da Escola"

A maioria das crianças  entusiasmou nas calças do Luís, mas foi encanto de um dia só. À noite, a mãe sovou-o gritando revoltas que se ouviam em minha casa, malvado gaiato, quem é que te deu ordem de as levares para a escola, este filho é a minha perdição, as calças são só para sair meu estupor, pensas que tenho dinheiro a correr por uma telha, pensas. Especada  na rua de casa, ouvi as pancadas e arrasto de móveis que julgava serem cadeiras e mesa. Supus que acontecia o que Luís chamava o jogo do gato e do rato na porrada: se ela começava a bater antes de o agarrar, ele fugia em volta da mobília da cozinha com a mãe no encalço, cada vez mais enfurecida,  até que ambos se cansavam. Do meu amigo não ouvi palavra. Mas o dia seguinte foi lapidar, voltou aos calções agora demasiado curtos, pernas e braços a desmedir como se não pertencessem ao tronco. Trazia um olho negro, as pernas com vergões e olhava em frente sem desfitar. Respeitámos. 
À tarde, depois da escola, Luís pousou a mala, pegou na bicicleta e desapareceu. Voltou a casa pela tardinha, sentou-se à mesa e fez os deveres. Com ligeiras alterações, no resto do tempo de escola primária seguiu padrão idêntico. Continuava bom aluno e era a muleta da professora, dá-me isto, estende-me aquilo; compra-me assim, compra-me assado; rega-me as flores, muda o vaso mais para lá.  A mãe na sua obtusa gabarolice de mercearia, o meu Luís, desde que apanhou umas arroxadas por mor de vestir as calças do irmão, está manso que nem um borreguinho. E minha mãe com simpatia, não sei como aquele garoto consegue ser tão atilado.
Entretanto, Lídia vegetava noutra classe. Ocupava outra fila de carteiras, mas juntávamo-nos a todos os intervalos e continuámos a fazer-lhe os deveres de que se desleixava cada vez mais, parecendo punir a professora em todas as pancadas que recebia. Fazia da escola uma penitência e  assoberbava no sobrinho a massacrar-nos com pormenores do crescimento que nos desinteressavam. E Maria Laura, minha parceira dilecta e pelos vistos tão precoce como Luís, deu-me a novidade ao ouvido, já tenho maminhas, vamos à casa de banho e mostro-te. Mas eu indecisa no fedor, não pode ser noutro sítio? Enrugou a testa e depois num repente, tá bem, amanhã digo ao meu pai para me vir buscar mais tarde e mostro na tua casa, a tua mãe não está lá pois não? Neguei e confirmou, vou contigo à tarde. Pareceu-me um pouco como Luís, orgulhosa. Espargia satisfação.
Maria Laura cumpriu. Foi a minha casa e, mal corri o trinco na porta, puxou blusas acima e exibiu os mamilos cor de canela a entumescer, vês, vês. E depois a descer a roupa com desembaraço, a minha mãe diz que estou a ficar mulher. E tu? Neguei. Mas ela animadora, vai-te acontecer. Lembrei a lisura das minhas auréolas encostadinhas nas costelas e duvidei em voz alta. Ela segura, acontece a todas as gaiatas, tem de te acontecer - e para me descansar -;  eu era como tu. E quando porfiou de insistir nas pilosidades, perdi a paciência para ver mais coisas que não tinha nem me interessavam, espreitei o caminho pelo postigo e apressei, o teu pai está a chegar. E ela saiu disparada, lápis e livros a sacolejar dentro da mala, a criança vencendo a rapariga de uma assentada.

Entretanto, minha mãe alternava os serões de escrita com o afã de tricotar para meu pai. Peça atrás de peça, à luz de petróleo foram surgindo blusas e gorros, luvas e cachecóis, meias, e até uma manta rectangular que fazia os meus encantos coloridos. Quando os olhos se me perdiam nas malhas que passavam de uma agulha a outra, a obra  a crescer certamente por encanto  -  à revelia de minha mãe, experimentara mudá-las de agulha e além da extrema dificuldade, nada acontecera -,  perguntei se a prisão era fria. Assentiu desditosa. Nessa noite custou-me adormecer,  a resposta de minha mãe roía-me como sapato apertado no pé. Pus em dúvida a minha imaginação e desejei visitar meu pai, certificar-me. Mas só quando Dezembro se apresentou na sua vulgar frialdade,   o carteiro trouxe a autorização para duas visitas ao preso 274 no dia de Natal. 

quinta-feira, 12 de maio de 2016

"No Tempo da Escola"

Com os dias a encompridar e assistidos por vagas de calor e luz, a fertilidade das árvores ajoujava exalando o cheiro adocicado da madureza, íman de insectos que zumbiam em descarado poderio. Tacteando com suas patas peludas, buscavam nos frutos invisíveis frestas, ou aprestavam diligências em exercício de micro cirurgia, para depois se concentrarem num sugadoiro exibicionista. Lá no alto, as cegonhas, leque aberto no azul, circunvagavam molemente zanzando sem direcção, inconsciência feliz que fazia tempo para a noite. Foi nessas horas lassas e a desgarrar que a nova imagem de Luís se me impôs. Aos poucos, apercebi-lhe a falta de vontade em se apequenar a estar comigo. E emudeci a vê-lo chegar e desaparecer, moída de saudade, reconhecendo-me completa aselha para competir com a liberdade da bicicleta, a mãe parada à porta e aos gritos, uma mão inquieta de gotas, a revirar e enxugar no avental, ó gaiato de um cabrão, tu não vês que a bicicleta é muito grande para ti; se me chegas a casa com algum escalavrão vais ver, levas uma coça de cinto e dou-te banho em álcool puro. Mas na loja adoçava a voz a gabá-lo, o meu Luís tem um jeito de mãos que só visto, arranjou sozinho a bicicleta do irmão, o pai não lhe pôs um dedo. E aprendeu a andar num ai, nunca caiu. E se ela é alta...
Aprender a viver faz-se assim, quase sempre a contragosto. A nova aprendizagem imiscui-se na nossa vida a empurrar hábitos e saberes antigos, a encostá-los à parede numa pressão de ou tu ou eu, de que sabe o resultado. Em decisivo  impudor, o novo cria o seu espaço sobre a violação da ordem fixada e apresta-se à estocada final enquanto,  zonza, desnorteia sem lugar. Foi assim que, durante as férias, aprendi outra forma de dar espaço. A alegria do meu amigo com a bicicleta era tão genuína que, apesar de alguma tristeza, não me ocorreu zangar-me. Imaginava que Lídia voltaria igual no fim das férias, ou que, pelo menos depois de uns tempos, seríamos quase as mesmas. Mas intuía que já não havia o mesmo Luís de antes. Borboleta a lagartar no casulo, culpava a bicicleta. Desconhecia a sedução do chamamento irisado do mundo. Incapaz de pensar que Luís era um garoto precoce e chegara sempre primeiro que eu a todas as mudanças da idade. Mas sabendo com segurança, porque lho lera nos olhos, que dera entrada ao  mundo. Esse abrir portas despertou nele uma ânsia de liberdade tão expressa e fremente que eu lhe temia a força como se teme um ciclone em dia de vendaval. Se em Lídia receava a arrebatação paradoxal, Luís luzia um prazer tão desmedido que me atrofiava. Que, na minha inépcia, invejava. O meu amigo  descobrira que tinha asas e voava sem cansaço.
No mês de Outubro, voltámos os três à escola e observámo-nos uns aos outros, ocupados a expulsar sentires envergonhados, tecidos no comprimento da ausência. Lídia espigara e estava da minha altura.  Eu tinha as tranças mais compridas, caiam-me dos lados quais cordas de puxar caldeiro de poço, as mulheres na rua, o cabelo é que lhe tira a força toda, assim ela está, só pele e osso; vai tudo pó cabelo, essa é que é essa. Mas quando Luís saiu de casa, mala na mão, quase julgámos ser outra pessoa. Tinha crescido mais de um palmo, estava muito mais alto que nós e vestia calças compridas. Olhámos uma para a outra atónitas e exclamantes, se calha já não quer andar com a gente. Mas ele veio vindo a balançar a mala e quando chegou perto sorriu do modo antigo, os olhos contentes  e ocupados, a gastarem-se por inteiro nas nossas figuras. O sorriso só não era bem igual porque denotava a vaidade nas calças. E nós desvanecidas, a contemplá-lo como se fora uma senhora de Fátima em aparição, tás tão bonito. Ele de súbito acanhado, pondo uma mecha de cabelo no lugar, olhos a desmentir a indiferença das palavras, ahnn...a minha mãe diz que já posso vestir a roupa do meu irmão.
Chegados à escola foi aquela alegria do reencontro de todos com todos e a curiosidade acerca dos novos alunos. As garotas mostravam as novidades de malas e cabelos. Algumas, felizes, deitavam as mãos ao pescoço e abriam o fecho dos fios com crucifixo que as mães tinham autorizado nesse dia introdutório, só para mostra. Exibiam-se e comparavam-nos entre elas a passá-los de mão em mão, a avaliarem a diferença de peso, verificarem inscrições de medalhinhas, saboreando a vitória da posse. os rapazes procediam de modo semelhante mas discutindo arcos, piões, berlindes, carrinhos de plástico.  

segunda-feira, 9 de maio de 2016

"No Tempo da Escola"

              À tardinha, depois de minha mãe esperançar na missiva e a prantear lendo-a vezes sem conta, soube que meu pai estava no forte de Peniche, lugar de estranho nome. Fiquei ciente de que ninguém podia saber da carta ou de quem ma entregara e a mãe esclareceu que nos tinha chegado por correio pessoal, através de ignotos amigos de meu pai.  Por isso, não trazia carimbo ou selo. Atardei-me um bocado a matutar como teriam conseguido vê-lo se estava preso. Restava-me a imaginação. Talvez um desses amigos morasse perto e ele lhe tivesse passado a carta pela rede de capoeira que circundava a prisão. Entretanto, a minha lamentosa mãe acrescentou, vamos a ver se pelo Natal nos deixam ir visitá-lo; agora não podemos. Intriguei com a conversa, faltavam  vários meses para o Natal, por que razão poria dúvidas na visita. Porém, à vista da tristeza que a prostrava, engoli a pergunta e assenti em silêncio.
            Entretanto, os dias foram correndo e, na escola, o quotidiano impôs a sua força de hábito. Por vezes ouvia cochichos, “o pai dela está preso”, afirmação que não me abalava senão por me perguntar quem teria revelado o segredo. A verdade é que o facto de não ter quebrado a promessa, mas haver gente que sabia do meu herói familiar, me agradava. Dava-me certa aura de diferença, eu era a única que tinha o pai preso sem crime que se visse. Além disso, Lídia mostrou-se à altura e desenvolveu um muro protector à minha volta acudindo mal alguém entredentes, “comunista”, e assim dispensava respostas que eu não podia nem sabia dar. Quando, anos mais tarde,  quis saber se o fizera instada pelo avô ou por amizade, olhou-me no fundo dos olhos, a ironia a despontar no meio sorriso de monalisa e virou costas. Julgo que juntou os dois motivos, mas a romper caminho estava o coração feito enxada. Na altura, nada vi. Quem sabe, nesse momento a monalisa pensou que eu não valia a pena, desejou não ser minha amiga. Em quantas circunstâncias a descoberta da verdade se atrasa. Demasiadas vezes, o sentido permanece oculto enquanto vivemos e decidimos. Mais tarde, quando um acontecimento já é arquivo, a memória compraz-se em rectificações e leva-o pela mão até ao lugar certo. E deixa um peso no coração, um amargo de boca, um mau estar sem direcção.
Quando a escola acabou  e chegaram as férias grandes, fiquei em casa com a mãe, esquecida de ter pai, a imagem a esvanecer, reavivando se chegava notícia. Em cada mês, madrinha Carmelita era novidade que nos chegava pontual.  Por canseira da idade e maior liberdade em minha casa, ficava para dormir e regressava passados uns dias. E, durante a estadia, minha mãe reanimava. Gastei os três meses das férias num angélico egoísmo filial que se fez desumano de tanta impiedade. Usufruí sozinha do caudal de ternura materna desejando que meu pai se eternizasse na prisão de Peniche e, para me desculpar, imaginava-a cheia de distracções. Fui impermeável ao semblante doloroso de minha mãe, aos olhos lacrimosos que usava em manhãs mais difíceis, à sua magreza escanzelada que flutuava pela casa. Em tempos de penúria, jamais me perguntei como sobrevivia sem o ganho de meu pai. No meu prato nada faltava de habitual e a minha vida era céu sem nuvens. Tinha-a só para mim. Suprema felicidade. Passados tantos anos, hesito em me desculpar com o egoísmo infantil. Era apenas o egoísmo que me acompanha passo a passo, ao longo da vida, e me impede a visão desapaixonada do mundo.  O mesmo egoísmo que me põe antes de tudo e me venda e veda o entendimento das coisas na sua crueza.

No ritual de férias, os meus amigos debandaram. Lídia reprovara e  estava de vigia ao sobrinho enquanto a irmã fazia trabalhos sazonais, o marido levado para uma recruta em Mafra. Luís, depois de dias e dias que eu acompanhara  à esquina de casa armado em serralheiro, dá-me lá o alicate, tira daqui este parafuso, aperta com força o travão, arranjara morosa e amorosamente uma bicicleta velha de um dos irmãos e não parava em casa. Vivia arrepiado de vento, os cabelos da franja todos para trás, completamente fora do meu centrípto de ditados e cópias. Se insistia a chamá-lo, aparecia montado no seu cavalo, dava duas voltas ao monte a exibir-se, as pernas por dentro do quadro e o selim a descoberto, e anunciava com a voz a perder-se na aragem, tenho de ir ali. E não voltava.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

"No Tempo da Escola"

Lídia levou-me pátio fora e, debruçada no gizado artístico  das casas ganhas no jogo da macaca traçado no pátio, avisou, schiu, cala-te. Depois olhou-me nos olhos e disse alto, a apontar as bolecas, já viste as casas que tens de saltar? Vá, experimenta lá – meteu a mão ao bolso, tirou o pedacinho de tijolo raso que lhe servia de malha,  fez pontaria e ele aterrou certeiro no coração do pisa-pisa, os olhos a empurrarem-me, experimenta. Revejo-a nos seus caracóis escuros, pele branca e sardenta, o olhar em desafio. Lídia sempre foi e não foi da minha idade. Havia nela um lado de sabedoria autónoma e madura que inspirava confiança. A minha amiga conhecia-me a falta de pontaria e o gosto por saltar casas seguidas. Sabia que se atirasse a malha por mim, eu não resistia e ocupava-me a fazer boa figura, não pisar  riscos, saltar bolecas, apanhar a malha e voltar.  Sou forçada a reconhecer, nessa primeira abordagem, fui afastada do comunismo pelo jogo da macaca. Mas, na volta da escola, a dúvida picava-me uma vez e outra, interpelava-me redobrada, em comichosa atenção. Seguíamos os três na força de calor das três da tarde, quando renovei, o que é ser comunista. Lídia e Luís reagiram em simetria. Parados. Frontais. Os dedos suados a apertar o metal da asa das malas  esmorecidas. Então, Luís aproximou-se tanto de nós que me pisou os dedos que espreitavam a biqueira da sandália, pôs-nos os braços em volta e, num encosto de cabeças, disse baixinho, isso não se pode dizer, ouviste? Perante a minha intrigada mudez continuou, acho que ser comunista é ouvir a rádio moscovo e ser contra o governo; o meu irmão mais velho ouvia e teve que ir a salto para França; desapareceu que nunca mais soubemos dele. E quando eu ia a perguntar o que era ir a salto Lídia rapou do seu ar mais peremptório e apresentou-me o ultimato, não perguntas mais nada e acabou. Jura que não falas do comunismo a ninguém, mesmo que seja para perguntar. Jura, exigiu.  Jurei de pronto, sem pestanejar, e pareceu-me que descansava. Mas o compromisso não me envolvia o pensamento. Durante anos, imaginei o irmão de Luís a fugir aos saltos, à frente da polícia, até França. Sempre em passos à gigante como no jogo da mamãzinha dá licença, mas em corrida, erguidos ao alto. E avaliava se, de tanto saltar, não teria sido apanhado pelos guardas ou mesmo morrido no caminho. Acrescia ainda a dificuldade de “passar a fronteira a salto”, lugar onde muita gente “era apanhada” e que eu imaginava serem paredes muito altas e difíceis de escalar. Ali, bastava à polícia um estender de mão para agarrar os fugitivos. Portanto, qualquer fronteira era digna ratoeira montada às fugas. Quanto à rádio moscovo, por mais que girasse bem devagar o botão das estações no rádio de meus pais, nunca consegui descobri-la, minha mãe a sapatar-me a mão controleira, deixa isso, ainda estragas o botão. Na escola, os chefes de estado mantinham-se a ladear o crucifixo, mas deixei de lhes ser devota; antes os olhava num misto de relutância e respeito, semelhante a quando minha mãe chamava para me aplicar umas palmadas merecidas. Se meu pai lutava pelos mais pobres e era preso, antevia neles uma culpa ainda sem formulação. Os traços que antes me pareciam de rectidão foram mudando: outrora, considerava-os uns distintos senhores, agora eram dois homens sem compaixão pelos desvalidos; intimamente, fui-me recusando a rezar por eles como ordenava a professora. E se ela o fazia connosco, oferecia a oração por esses que eu desconhecia e, como o meu pai, lutavam no anonimato. Sabia agora que, tal como os pides, andavam disfarçados entre nós. Eu ignorava uns e outros, mas, nas fúrias religiosas e sacrossantas da minha mestra, que exigiam sacrifícios, terços e mistérios de joelhos e braços em cruz, pedia e pensava nos segundos, crente num Deus que me ouvia.

Em casa, a vida seguia a  norma. De extraordinário, só as descrições quotidianas que minha mãe somava em nocturno exercício de aparo  e minúcia de relojoeiro, eu a adormecer noite após noite com o seu perfil na retina, debruçado sobre a mesa, um cabelo ou outro fora do gancho a pendurar junto ao rosto. E a mão correndo sozinha ao longo da folha, como se as palavras em espera o dia inteiro, ansiosas por entrarem em casa e se porem à vontade. Tempo de tristeza que entranhava e lhe crescia colada ao corpo qual lismo em parede de poço, a turvá-la de olhos e figura, arrepanhando centímetros.  
E um dia em que comprava o milho das galinhas, o merceeiro chamou-me de parte. Tinha um papel branco na mão, dá à tua mãe e bico calado, e enfiou-mo dentro da blusa. Saí tremente e desabalada, correndo pela vala que ladeava a estrada e o cantoneiro limpara há pouco, ainda deserta de ervas e lixo, a apertar o braço sobre a blusa para não deixar cair o recado.  Entrei e coloquei-o sobre a mesa, encostado na jarra de flores. Assim, a mãe via-o da porta. Depois lembrei-me do milho e voltei atrás, vagarosa e pensativa, ajuizando sobre o assunto: era carta de meu pai, eu conhecia-lhe a letra alta e esquinada, traçada de ângulos. O que diria meu pai. Estaria quase a sair. Podíamos visitá-lo. Cheguei a casa e fui espreitar o carimbo do selo. Mas não havia carimbo nem selo. Fiquei cismada. Como é que o merceeiro me entregava uma carta sem selo nem carimbo, o meu pai estaria numa prisão tão especial que as cartas nem precisavam de selos?!

terça-feira, 3 de maio de 2016

O Incomparável de Ti

           As mães não se comparam. Não mesmo. Nem entre si, nem a outros laços. As mães são o nosso magma, erguem-se sozinhas a arder e desbravar horizontes. E, por mais humildes, têm nos filhos um orgulho de rainhas; se falam deles, nasce-lhes um pescoço de girafa altaneira, os olhos a engolir o espaço de repente pequeno, minguado para tanto amor. E quando a vida bole com os seus meninos, acendem lumes ácidos e atravessa-as um brilho de lâmina assassina. As mães são de gostar. Gostar desmedida e carentemente. Gostar desde o fundo do coração sem fundo. As mães destilam a nossa confortável comodidade que retiram de si mesmas, qual baba de caracol onde a nossa vida desliza. São assim as mães. Atapetam o nosso chão com pedacinhos de si, deixam-se consumir em horas e dias esquecidos em que inteiras voam – ou se arrastam - para e por nós. A maior parte das mães.
As mães vivem connosco até à morte. Ficam velhas. Enrugam. Perdem cabelo e memória. Adoecem. Morrem. E são sempre elas no seu amor jovem.  As mães deixam a sua marca pessoal e de carácter  a certificar a qualidade do amor.

Mas que ninguém ouse comparar-te. Que  ninguém ouse. Porque me falta paciência para a cegueira voluntária. Que há quem a si mesmo não se conheça.