terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Coisas

Há dias de porta fechada e sentidos  embotados. Os olhos continuam a olhar mas perdem objecto, entregam-se ao fastio, vivem no pega e larga,  saltitando de uma coisa a outra. E as letras são hieroglifos paralisados nas teclas incógnitas de dedos. São dias dementes, sem um aceno de ideias,   sem o afã de frases que se desenham e redesenham a apurar o pensamento em  acinte de modista que ajusta tecido ao corpo, afunda aqui uma pinça, alarga ali uma costura. Nesse tempo, definitivamente, pareço outra.
A outra tem um lado experimental. Arruma, compra, lima arestas e dá um embalo na vida. Às vezes, queda-se a vê-la girar na ilusão de estar fora do movimento. Os sonhos têm nela a amplitude do momento seguinte, nada projecta e pouco pede. Essa mulher pré histórica e meia bicho, que me habita com força de raiz, é calma e talvez submissa. As mãos são-lhe tenaz operante e julgo que habita um mundo dextro e antigo, que não adivinha o advento das máquinas. É muito velha, ela.
Mas quando as letras me regressam e aos dedos apetece a artimanha das palavras, é nessa raiz de simplicidade tenebrosa que bebem. Ela é o meu esqueleto pobre e minguado. Tudo que vem depois, vem sobre ele.
Esta conversa toda surgiu a propósito das mulheres que o mundo me ofereceu ontem – o mundo gosta muito de mim e vai-me assim oferecendo uns bombons. A bem dizer o assunto nem sou eu nem a minha raiz australopiteca. Ora vejam e concluam o que bem entendam.
Ontem voltei à ginecologia e a consulta deslizou, a médica foi simpática e não zarpei para o lugar dos horrores, os exames estavam nos trâmites... a senhora entretida a digitalizá-los e pergunta, quem é o seu médico? Eu estática e meia atrapalhada, qual médico, o clínico geral? E ela impaciente, como se eu criança pequena, não, o seu ginecologista. Eu apanhada de surpresa e palerma de todo, a minha ginecologista é a doutora. Ela, ai sou eu, pois não me lembrava, está bem, sou eu.  A enfermeira parada, a olhar-me fixamente.  Claro que saí ainda mais convicta, tenho de mudar de médica. É verdade que não costumamos  tomar chá as duas, mas sou sua doente há uns dez anos e é mais velha que eu. No comments.
Bom. Mas a minha experiência com médicas ainda não estava concluída. À tarde, depois de uma consulta que me reatou com a classe - era a segunda consulta e a senhora cometeu a altíssima proeza de me conhecer -, passei na Gulbenkian onde havia a apresentação de uma associação de voluntariado para maiores de 55 anos, coisa da minha faixa etária. Eram só crianças de cabelo branco, todas muito bem comportadas e tal.  Estavam assim umas figuras conhecidas, mas na Gulbenkian é normal, eles e elas não me conhecem e eu também pouco lhes ligo. Eis senão quando abrem a perguntas na assistência – chego quase sempre atrasada e só oiço as perguntas – e salta uma médica a dizer que não há direito – usou termos mais adequados ao lugar -, quem tem mais de setenta anos deseja trabalhar e vê-se a braços com a reforma. E deu exemplos: o professor Sobrinho Simões (o meu quase herói, está só um degrauzinho abaixo do Lech Valesa do antigamente), o professor Daniel Sampaio que tem aquele olhar esquisito que a gente sabe, o professor João Lobo Antunes, que até morreu quase a seguir e só faltou a garota deitar culpas à reforma. Estes três coitados – ela não se lembrou de outros -  foram compulsivamente empurrados para a reforma; e eu, Beatriz, fiquei com uma peninha deles desgraçada. Afirmou a ex.ma médica que estavam envolvidos em projectos e tiveram de abandonar e regressar a penates. Só porque cometeram o pecado de terem para aí uns setenta e tal anos (mas então o meu semi herói já é tão velho?! Mau Maria). Imagino que a esta hora andem a aspirar, limpar o pó, ir às compras. Não contente com este petardo, acrescentou a dama que aos setenta as pessoas são muito válidas e deviam continuar a trabalhar porque querem trabalhar, estão cheias de vontade de fazer coisas. E de trabalhar (voltou a frisar). E toda a gente a abanar a cabeça que sim.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Escrito na Areia

Maduramente pensei na questão.  E sobre ela anoiteceu e a madrugada sorrateira engenhou um dia de sol anémico, cheio de receios e adeuses de vou-me embora e não sei quando volto. E depois anoiteceu outra vez e do breu nos veio um dia que abriu em chuva, feito bebé com marca de água e passinho cinzento, muito dado à melancolia e reflexão. E nós, que horas serão isto, ai que falta me faz o sol,  desoriento com o dia, quem sabe se anoitece e inda não almocei. Coisas assim que surgem ao espírito que desocupa de maiores males.
Portanto - é proibido fingir -, ainda não descobri se vale a pena fazer propósitos que depois se esquecem. Tudo acena que não. Mas este é só um ângulo de visão e ordenamento. Vamos virar a realidade de outro lado, só para ver no que dá. Sim, porque a mania que temos de atingir objectivos e chegar a um fim determinado, faz-nos esquecer o caminho. E no entanto conhecemo-nos como “seres a caminho”. Somos largados na vida e, mesmo sem nos movermos, ficamos caminhantes. Vou pois virar a pergunta – ok, é mais favorável ao meu ego, mas já disse que para o masoquismo dou por obrigação e nunca de vontade -, assumir a importância  do caminho e investigar, por exemplo, se, em algum momento, fazer propósitos me mudou o comportamento. Ora aí está. Mudou. Muda sempre. Enquanto não me esqueço deles até cumpro (ainda que agora, neste preciso momento, não me lembre). Cumpro um mês? Cumpro dois? Não sei, mas tenho certeza que cumpro durante algum tempo e alguma coisa deve surdir. Porque cumpro de boa mente, com ganas de continuar até ao dito fim. Só que depois mete-se uma doença, um trabalho extra, um problema imprevisto e tudo se me varre da memória cuja empreende noutras paisagens.  Sem inversões ou marchas atrás.
Eh lá. Não pensem que estou a fazer-me inocente. Nada disso. Mas a verdade é que a culpa também não me pesa. Enfim, será da minha natureza habitar este limbo de intenções e fins. Estou um bocadinho inclinada para isso. Mas, lá está, pode não passar de desculpa para a falta de perseverança em que navego. Provavelmente, já gastei a perseverança toda que tinha. Que, podem não acreditar, mas já fui perseverante qb. Logo, também me inclino para me ter despovoado dela.
            Mas é que 2017 já me amanheceu com ranço, tinhoso, e a ilusão dos propósitos não rima com anos terminados em sete. 
            O que eu gostava de saber se esta fraqueza de carácter  me altera a visão e é toda velhice....  


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Escrito na Areia

Mal o novo ano atira braços ao mundo,  ataca-me a febre de me propor a fazer coisas. Agir. Neste ou naquele sentido. Pura ideia de mudar alguma coisa que pouco exija ou corro risco sério de nada fazer. Não tem a força de um objectivo, antes é seta apontada a projectos parados, futuros comprometidos por preguiça ou entupidos de imprevisto, pseudo-urgências que dilataram no desinteresse de anos. E talvez que, enraizada no espírito judaico-cristão, eu tenha uma ideia difusa de bem pessoal, o propósito meio inconsciente e egoísta que visa actualizar o que me facilita a vida ou a torna mais agradável. Que ninguém projecta para ter vida mais danosa e escura. Essa filosofia  dirigida à intenção e fins últimos da acção cristã, que a define pela natureza egoísta que visa sempre e em primeiro lugar o bem pessoal, tem a sua razão, mas parece-me mais abrangente: desconheço ser pensante que assim não proceda nas linhas gerais de coser-se. E até uma qualquer alimária instintiva lá chega. Ah. Grande coisa, dizem-me, a esse raciocínio chega qualquer pessoa. Ok, desculpem. Bem sei, sou atrasada por natureza e feitio, se chego seja onde for, já todos lá estão. Sorry.
Os tempos vão estranhos. Ele são cataclismos na casa da Europa e noutras. Há depois as misérias mundiais que ameaçam e comprometem o mundo como o conheço.  E eu sem paciência nem saúde para conhecer outro ou ter-lhe assim um interesse espevitado. Embora o tal mundo outro se imponha e, com interesse ou sem ele, eu vá a reboque nem sei bem de quê, que por mais que leia e tente informar-me - ou sobretudo por isso -,  cada vez me aparece menos futuro. Que, à parte a velhice a talhar-mo curto, os homens - sim, esses seres desastrados, que não há bicho mais estranho à face do mundo conhecido – parecem apostados no mal. Pois. Isso mesmo. No mal. Perversidades umas atrás das outras, seres mesquinhos empoleirados como galo em galinheiro, gente néscia a mandar no que não entende e apenas atenta aos seus ódiozinhos particulares. Chegámos a isto, um irrazoável Quero, Posso e Mando.  Ou a banalidade do mal, diagnóstico de Hanna Arendt que se acentua como praga.
Mas, dizia eu lá mais acima, “os tempos vão estranhos”. Também os meus (será influência da conjuntura). Que este ano, só agora me dei conta, não houve nada de coisíssima nenhuma. Quais propósitos, quais quê.  Doenças para a frente e uma mudança de vida que não idealizo – ninguém idealiza estas coisas. Num foguete, os dias devieram uma mescla de horas sem etiqueta que não consegui ainda aquietar. O meu tempo de sossego foi para o galheiro. De modos que é en retard que tento propositar. E porém. Para quê propor o que a seu tempo, no ano seguinte, nem averiguo se cumpri e nem recordo.  Ah, pois é. Sou prestes a identificar e propôr, cumpro alguma coisa e, de seguida e sem remorso, apago tudo. Portanto, mais uma vez, estou a zero. Que me propus no ano passado e  quanto cumpri, é material incógnito.

Assalta-me a dúvida, valerá a pena delinear propósitos?! Vou pensar nisso enquanto tento encontrar o tempo que me pertence e desenlear as horas do imbróglio em que se meteram que não há ponta por onde se lhes pegue. Ó senhores! Que vida! 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

No Tempo da Escola

As crianças de tudo criam imagem. Assentei que a prisão era uma casa branca com grades nas janelas, vigiada por guardas iguais aos GNR que conhecia, as mesmas polainas pretas brilhando na lisura da farda cinzenta que a barriga empinava um bocadinho,  a largura impante do cinto a destacar a arma, colarinho duro ajustado ao pescoço e, no poiso do ombro, galões em cama de azul e verde. Rosto sisudo, a rematar o quadro. Contava que meu pai viesse para nós e eu correndo a dar-lhe o abraço apetecido depois de  ausência tão rara. Mas a realidade suplanta o sonho, a palavra, a escrita. Por ser de uso, esgota, rasga, envolve.  E todas as tentativas de dizê-la são cautelas da sorte só com  a terminação, um quase nada. É neste quase nada que se jogam a memória e a palavra. A realidade apresenta-se sem fuga, exige-te sem mediação. És tu e ela. Tu, assarapantado. Ela, na sua factualidade.
Quando minha mãe inverteu a marcha, pensei que voltávamos sobre os passos seguindo por rua diferente. Mas aproximámo-nos ainda mais do mar e fomos seguindo outra gente carregada de cestos e trouxas, o marulhar em fundo. Mulheres gordas, lenços na cabeça e saias a varrer o chão como a mãe de Lídia; outras mais novas e magras, crianças pela mão e ao colo; Uma ou outra rapariga a amarguçar o viço à vista do que as outras tinham perdido; algumas senhoras a destoar, casacos de boa fazenda e corte moderno, embrulhos cuidados em mão enluvada, ladeadas por homens de sobretudo e chapéu; crianças como eu, mais velhas e mais novas, os olhos da fome um íman redondo, adesivado à merenda esquecida na mão de alguns; homens curvados, tristezas velhas trepando pela  bóia do cajado, pés negros e descalços ou aperreados em sapato de missa. E em todos luzia a mesma pressa de saudade, o mesmo arrepio de cuidado e temor. Vozes que se erguiam sem direcção, Deus mo defenda das doenças que isto aqui é um coio e não há uma alma que avise a gente dos perigos em que estão. Meu São Bernardo o guarde, que lhe acendo uma velinha pela noite a ver se não me sai de cá amortalhado. E faziam um sinal da cruz deslaçado, a lembrar à trindade a dívida por conta da devoção ao santo. E outra, que ajoujava com a criança de colo e mais o carrego à cabeça, num lamento, só sabemos deles se morrem, isto é pior que o degredo. E cuspia no chão, canalha esta! E minha mãe a quem de súbito nascera uma inteligência nova, num sussurro, chegando-se a endireitar-lhe a cesta na cabeça, cuidado que podem ouvir, não vale a pena fazê-los penar mais, já basta o que basta. E eu cá em baixo, muda. A intuir alguma coisa de malévolo que não entendia. Sem compreender para ou por onde íamos, as perguntas a secar na garganta. Seguíamos  entre muros e o som do mar clareava a bater nas pedras. Tentei uma guinada e a mão de minha mãe aprestou-se a puxar-me para si, não espreites que  podes cair. E a do saco à cabeça, que nos tinha perfilhado, a agitar peremptórios diplomas de desgraça, quem cai aí, morre. No ano passado caiu um menino e ficou todo rebentado, coitadinho, os gritos da mãe eram um dó de alma. Pensei na água do paredão e agoniei a entrever a malévola indiferença  das ondas batendo a criança contra as pedras. Quando minha mãe estacou, ousei, parámos porquê. E o lacónico dela, chegámos. Mas os meus olhos apenas alcançavam as pessoas mais próximas. Curiosa, solicitei que me erguesse.  Suspensa pelas axilas, meteu-se-me pelos olhos um castelo de pedra escura que me parecia nascer do mar e uma enorme porta fechada. Balbuciei desanimada, é um castelo. Minha mãe corrigiu, é um forte, o muro de pedra é a muralha. Vamos passar por aquela porta. Lá dentro, está o pai,  acrescentou. E o meu coração contraiu.

Ao abrir da porta, outra surpresa: em fila vagarosa, os guardas passaram revista a cada visitante, as dádivas a anoitecerem sobre uma mesa para escrutínio antes da entrega.  Sujeitas à aspereza e mau modo dos guardas, as pessoas transmutavam, perdiam voz e vizinhança, estendiam a tibieza de mãos pedintes, a despojarem-se de ofertas em cuidados de cristal. Cada um a sós com o despotismo. Muita gente ansiosa e em monte, que as visitas eram contadas e curtas. À ordem dos guardas e divididos em grupos pequenos, os visitantes,  minguados no tamanho, seguiam recolhidos em visível temor, na certeza lumínica, não interessa, vou vê-lo.  Chegada a vez de mudamente nos internarmos, mirei as paredes sombrias, falhas de um claro de cal, sem largura de janela virada ao sol ou traço de calor em objecto mínimo. E, mal passámos a porta, o ressoar de pés no lajedo tornou-se tão distinto como o frio de neve que se infiltrava no corpo e arrefecia o rosto.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Nevoeiro

Subi a persiana e a fita enrolou a cumprir o calvário dos dias, em esforço e má vontade. Mas acordá-la assim cedo é dar-lhe direito de irritação. Convenhamos,  não é apenas acordar, ela sabe que vai ficar suspensa o dia inteiro. E estar assim representa, numa persiana, esforço de bailarina em pontas. Bem sei, não é graciosa, mas dançar em pontas não quadra com persianas. Emendo, dançar não é para todos. Creio que a persiana ficou com os orifícios em bico ao abri-los para o dia. Que eu olho em frente abismada, a realidade a tardar-me.  O largo voga dentro da névoa.  Maravilha-me esta espessura do ar, gotas minúsculas sem intervalo ou malha caída. A prenderem na roupa. Pesam nas pestanas e sobrancelhas e agarram-se desvalidas aos cabelos que encontram. E por ali ficam. Fiadas de colar de uma menina gnomo. Edifícios e pessoas encerrados, fechados dentro da neblina, e a cidade goza esta barreira de ziliões de gotas e aproveita para afirmar o seu ser secreto, comedido. A nuvem densa formou-se durante a noite. Agora está feita um volume de formas arredondadas que se espreita de qualquer avião a perder altura. As gentes a extasiar, oh, nuvens tão bonitas e baixas. E apontam o pescoço de girafa curiosa nas torres que espreitam o sol, bom dia! De súbito, a nave mergulha na névoa e o vidro da janela parece baço. Flocos correndo de mão dada a uma velocidade louca; ou os viajantes a atravessá-los num turbilhão veloz. Agora também o avião se queixa, estou sozinho. Mas lá à frente, destaca-se a linha luminosa da pista, halo atrás de halo, irrealidade nebulosa que cola na terra. Há algo de fantasmático numa aterragem feita com nevoeiro. Atracção de temor. Também.
Mas eu estou apenas à janela de casa, na tentativa de encontrar as copas das árvores, imaginando a idiotice dos automóveis lá em baixo, isolados pela névoa. Próximos, mas ignorantes uns dos outros. Murmuram desconsolados, estava ao amparo de um vizinho mais gordo que me segurava as correntes de ar e agora estou para aqui sozinho e a tiritar de gotas. E arrepiam-se a sentir o friozinho que escorre em listas pela carroçaria e faz poça no chão, uma covinha de nada que apara as gotas que deslizam, meninas ordenadas em obediência que não se desvia do caminho. Todos sozinhos, os automóveis. Imagino os passageiros dentro do avião que ronca perto. Antevejo-lhes o receio, e se chocamos, se o piloto não vê o sinal e enfia no espaço de um avião que sai?!  Mas também há gente mal acordada, de costas para a névoa. E gente que apenas quer chegar ao aconchego do lar, de um lugar quente, seco, terrestre.
Saio maldizendo a falta de pontaria, gavetas cheias de gorros, chapéus, bonés e nem um no carro. Mergulho no nevoeiro agora menos denso, a paisagem por detrás da cortina de gotículas, em silhueta graciosa. Que é tudo bonito se mal se vê, à luz da  possibilidade, quando ainda pode ser outra coisa. Passam as horas, mas não a névoa.  Perto do rio, a humidade condensa e revigora. Não sei bem como, descubro sem procurar uma loja de roupa usada. Tudo a três euros (saldos, saldos). De casacos a cachecóis. Deve ter estado sempre no mesmo lugar, a menina simpática do balcão disse que tem anos ali, mas foi o nevoeiro que ma trouxe. Sou-lhe grata e faço-me cliente. Ser roupa de outra gente, é-me indiferente. Precisava um agrado, sentir que algum trapo me assenta e posso comprá-lo. Saio com um casaco de ganga fora de moda, mas tão queridinho, duas saias, uma pacata, rodada e escura; a outra de garota de desenho animado, tão rocambolesca que me admiro  de mim metida numa mescla de castanhos, amarelos e roxos vivaços, mas tenho um lado meio louco que não abafo de todo e nem pretendo. Olho-a melhor, é uma saia de tendeira de mau gosto. Duvido. E compro. Apesar de a preferir noutra cor, eu sei que vou vesti-la, presa de amores por um lacinho quase invisível a meio da perna e por quem desprezo as cores de holofote ambulante. Viva! Contente, ganho a rua  sobraçando o meu saco plástico de haveres. Tomara que chegue a primavera para luzir o meu casaquinho fora de tom que vai ser moda em mim. Eu. Je. A luzir-me nem que seja no tanque da roupa (no tanque não, que dá pouco jeito, é bem capaz de a ganga me prender os braços). E ainda ganhei um vale de três euros para a nova colecção, que é como quem diz, a nova leva de roupa usada que chega dia 16. Isto é que é sorte de mulher.

E à medida que as horas correm no relógio, a névoa, que mal pôs um pé fora de casa, regressa em força. Às dezoito afoba-se em bancos de nevoeiro atrasados para um encontro, agarrando-se uns aos outros para se puxarem melhor e sussurrando sugestões,  anda, olha ali aquele espaço, aninha-te que é lugar de recato. E os automóveis num vagar de sonho, viajantes em câmara lenta. Caminhos inteiros pejados de veículos sem ninguém que se veja, que por dentro do nevoeiro as pessoas apenas se adivinham. Cartesianos, podemos pensar, não há vivalma, hoje são as máquinas a guiar-se descansadas, livres de ordens ou irritadiço disfarce de pontapé calcando pedais. Na ponte, seguimos o halo das luzes dispostas no céu para nós, espécie de estrelas fixamente aristotélicas que desdenham da iluminação normal, cuja, nesta noite de atmosfera saturada, sumiu de todo. E eu queria uma ponte infinita. E eu nela. A ir. Só a ir. No possível e impossível.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

No Tempo da Escola

Hoje, com Portugal entregue à orgia turística como antes à padroeira, imagino que Peniche tenha sofrido mudanças apreciáveis  e divirja  da miséria que então assolava o país. A verdade é que acordei no autocarro para ruas de casario estremunhado e semelhantes às da minha aldeia; entrei numa taberna mais pobre que a do meu lugar e ao balcão estava uma mulher parecida às que conhecia; e agora percorria uma rua que desembocava numa parede maciça que segurava o mar de galgar sobre as casas e escangalhar ruas e praças, impedindo-lhe rotundas de água a toda a largura.
Junto ao paredão deambulavam vários homens encarapuçados e vestidos de escuro, e enquanto a mãe se preocupava a perguntar a prisão, abeirei-me temerosa da ventania marítima e da força da água que batia lá em baixo, recolhia a tomar balanço e estrugia parede acima numa fúria que me respingava o rosto. Verifiquei que se podia descer até ela por uma escadaria rente à parede e que agora tinha quase um lance de escadas submerso. Lá em baixo, decerto ancorado e, para mim, mistério incompreensível, um barquito pequeno aguardava sem se afastar, o mar a lambê-lo aos estremeções, para cá-para lá, para cá-para lá. Emudeci a observar a mole de água que é o mar, fascinada por não lhe ver fim. Envolta em cuidados e arrepios tenebrosos, ousei espreitar o fundo de água avaliando para mim que, se acaso caísse, ninguém seria capaz de me trazer à tona. Tinham-me contado que o mar era azul e assim o desenhava e pintava. Pensava-o transparente e, em caso de queda, todos saberiam onde buscar. Mas, lá em baixo, a água era escura, suja, e  a parede escorria limos verdes que oscilavam a cada bordoada aquosa. Pensei que cair ali seria o pior e dei um passo atrás sem desgrudar do barquinho que chapinhava indiferenças. 

Quando minha mãe regressou, um velho inquiriu, minha senhora, um passeio até às Berlengas? E minha mãe já a dar-me a mão, a desviar-me da beira, olhando-o sem entender, Onde? Não, não, nós não viemos a passeio. E ele a insistir comigo apontando o barquito, o barco está à espera, levo-as até lá à frente, não vêem o outro barco maior, lá no longe? Aquele barco não chega aqui, o mar aqui não tem fundura e tem rocha a mais, têm de ir comigo no batel, eu levo-as lá. Minha mãe tão preocupada que nem deu por mim a responder, qual barco, não vejo nada lá à frente. Ela a puxar-me, Obrigada, a gente veio para a visita na prisão. E ele, olhando-nos a abanar a cabeça, bem vi, mas não custa experimentar. E depois de si para si, ou talvez para haver a compaixão de uns trocos que bem se via que não tínhamos, dia de Natal e frio como está, quem é que aparece para as Berlengas...ninguém. Mas eu e a família temos de comer todos os dias. Minha mãe condoída e sem resposta, a desviar-se do assunto,  puxando-me, anda, é por ali. E eu fascinada com a serventia do barquito lá em baixo, a puxar-lhe a manga, mãe como é que as pessoas lá chegam, o barco não encosta...e apontava o hiato de água a alargar entre o barco e o cais. Minha mãe sem grande interesse, mourejando contra a nortada, as pessoas têm de pular para dentro do barco, filha. E eu transida, num apontamento mental, nunca hei-de ir às Berlengas, não sou capaz de saltar. Um homem que por ali andava, talvez um pescador em terra, que em dia de Natal não se sai para o mar, a adivinhar-me o pescoço torcido, ou talvez só por hábito de crianças curiosas, o barqueiro pegava-te ao colo e punha-te lá dentro. Mas o pior da viagem às Berlengas não é aqui, é depois, no outro barco: toda a gente vomita, tal é a qualidade das ondas e das correntes que há lá mais para a frente...e suspendeu-se a olhar-me das reticências. A esta altura devo ter posto a minha expressão de repugnância porque acrescentou, descansa que há baldes debaixo de todos os assentos. E nesse momento, do meio do frio de Dezembro, em Peniche marítimo e  à beirinha de matar a saudade paterna, prometi a mim mesma que Berlengas nem pensar. Contudo, no tempo em que eu e Lídia nos pertencíamos, quase me convenceu no seu afã de tudo experimentar, anda, vai ser engraçado, são ilhas desertas, a gente nunca esteve num lugar assim. Antes, tomamos comprimidos para o enjoo e depois ficamos a ver os outros a afundar em vómito. 
Lídia não conheceu o Natal da prisão, não avaliou a tristeza de ver o pai a um vidro e sem um toque de dedos, não experimentou a estranheza dele se aproximar  trazido por um guarda que se queda em escuta de tudo que dizemos; Lídia nunca teve o meu tamanho nem no útero da mãe, nasceu destemida e maior, o hiato entre o batel e o cais só lhe aumentaria o interesse por saltar. E eu estive lá, no interior do forte, naquela espécie de parlatório que só me permitia ver e ouvir meu pai, que nos impedia o abraço. Meu pai todo outro, magreza dentro da farda de recluso, o belo cabelo ondulado desaparecido e ossos do crânio a assomar, olhos encovados em determinação, mãos ossudas e em ângulo que não podíamos afagar... Senti que continuava naquele cais de impressionante perigo. Olhava-o e ao guarda por detrás dele e sabia que era ali que precisava saltar sem ajuda. Batalhar contra o medo.

Passagem de Ano, Eu e a Bisa

E. Portanto. Passagem de ano a dormir. Não se ericem as hostes, calma, não vou dormir todo o ano. Mas entrei em 2017 com a mente desanuviada, no relax. É certo,  ajudei o sono a chegar. Que súbitos azares da natureza me acompanham e o arredam de mim. Andei por ele, ó tio, ó tio, e porque o chamo em alta voz tão pouquíssima vez (ou por ser a data que era), veio correndo e enleou-se-me de modo e maneira a escapar-me o completo do arraial. De modos que, se no dia seguinte não espreito a janela da tv, julgaria que nada houve. A acreditar na minha bisavó, digo que são tudo filmes, patranhas inventadas pelos homens para nos entreter e fazer crer que estão onde não estão. Passagem de ano na Austrália?! Que nada. Rio de Janeiro?! Aldrabice. Alemanha?! Mentira pura. Madeira?! Engano certo. Filme. Tudo filme. Aquela gentinha toda, uma data de actores pagos. Era assim que a minha ancestral resolvia os mistérios daquela caixinha estrambólica.
Portanto, posso pensar como ela, elidir o resto do mundo, dizer que ninguém o sabe senão pelo imaginário e só os filmes existem. A desconfiança da minha bisa com a TV era grandiosa, mas defendia-a firme e convicta, como se verdade segura. Suponho que se iludia na esperança de que alguém lhe pegasse na ideia e a trouxesse ao colo para a ribalta. Mas a minha bisa não sabia ler, tinha os dedos tortos de tanto trabalho pesado e ainda assim não os deixava desocupar. Por outro lado,  ninguém lhe desenvolveu o escrúpulo.  Morreu descrente das viagens à lua ou das notícias do estrangeiro que supunha existir tão longe que nenhum repórter lá chegaria.

Se talvez eu pudesse ainda ser como ela...mas não. E 2017 está aí, repleto de dias com muita hora, pronto a desfazer equívocos mundiais. Ou adensá-los. Veremos.