segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Divagar com os óscares

Desta vez não houve grandes surpresas na cerimónia de entrega dos óscares. Mas houve um memorável engano. Contudo, creio que foi ano de boa safra, há reconhecida qualidade na  selecção dos candidatos. Como tanta vez, o filme mais publicitado ganhou menos estatuetas do que aquelas a que concorria; La la Land é um dos filmes que já vi e o realizador – o melhor deste ano - cometeu a proeza de pôr dois bons actores a cantar e dançar (Emma Stone, melhor actriz principal) como se pertençam ao meio. Mesmo para quem não aprecie o género, desenrola uma história com interesse e interpretações de talento; o que mais apreciei foi a forma verosímil como o filme evolui. E o que saliento na série de fitas que aí estão prontas ao entretenimento, é a actualidade de temas e a novidade na abordagem. Porque, na sua maioria, são questões  quotidianas e tão carregadas de drama que nos prendem ao écran (Manchester by the sea). Quão longe estamos dos finais felizes. The end já não remata em felicidade, embora ainda possa acontecer. A harmonia que antes  fechava os filmes, agora surge a meio  e sufoca antes do desfecho (La la Land). Ou nem surge. Beiram a realidade, dilatam-na, empolam conflitos e pequenas rasteiras. E terminam iguais a cada um de nós, ainda sem fecho, carregando fardos uns mais voluntários que outros.  É como se a fábrica de ilusões, o real em sobredosagem, tenha perdido a lisura ingénua com que as histórias escorregavam écran fora. Agora são ásperas, raspam na pele (Fences). Ainda não vi Moonlight, o filme vencedor. Mas hei-de. Viola Davis mereceu bem a estatueta de melhor actriz secundária com o desempenho em “Fences”, uma mulher-pilar, igual a tantas que existem.

            Mirei os adereços e actores na passadeira vermelha. Gente bem vestida e penteada. Em pose. E eu sei, tenho preferência por Alicia Vikander, mas foi das poucas mulheres que não deitou a perna fora da abertura do vestido. E fica tão mais bonita e natural. Os decotes até à cintura e as aberturas de saia até ao quadril fogem à sua natureza e estética originárias. Sem puritanismos oblongos, deviam ter outro nome.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Confidências

Por vezes solta-se-me a corda que ata um monte de queixas de estimação e desato aos soluços verbais. Não amofine o leitor, é função higiénica e toda mental. Não usa lenços de papel, não funga. Mas vinca. Aferra-me o plissado na carcaça. É pena que não faça moda, o desenho tomou algum interesse. Em tais momentos, o meticuloso mundo das coisas penetra-me em tão desdenhosa  mudez que um mindinho de confidência me soa a delação.  Atardo-me pois nesse pasmo amniótico e de pouco crédito que rodeia os objectos e rói a paciência comum.  Quem sabe um dia acordo e sou uma jarra plantada sobre um móvel a fazer cócegas a um naperon. Ou um canapé que se expande voluptuoso, vem cá (seduz-me ser canapé). Ou um bengaleiro (um bengaleiro de madeira a que nascem folhas e flores, alongo os braços por dentro dos casacos e dos chapéus e boinas, e crio mãos que entregam às pessoas o que me deram a guardar).
Enquanto não chega imobilidade que nos irmane, a rigidez atenta das coisas  aponta-me olhos sérios em cara inteira. Coisas que eu  sobrelotei de outras coisas sem uma delicadeza a interrogar, posso?; móveis que envelheci de papeis e fotos, sorrisos que não existem ou são outros, petrificados e cheios de dentes a cariar por dentro dos vidros. De súbito, soam-me todos dentro da cabeça, invadem-me de queixas. A estante desfigura de livros, o que eu aguento de enciclopédias e como me pesam as histórias dos romances, carrego o mundo que existe e mais o que os escritores inventaram, aquilo é gente que escreve  histórias sem medida e não avalia o peso das palavras, e tantas há que me pesam e doem, e gritam nas prateleiras que é um dó. Tu porque as compras se as lês uma vez só e a mim me pesam toda uma vida?! As cadeiras de braços choramingam a sacudir o torpor de anos, estamos dormentes, fartas desta posição e do carrêgo e moíção de tanto osso humano; queremos pôr as mãos nos bolsos e deixá-las lá, faz-nos esta mercê. Perfilados na sua prateleira, os cds irresolutos, já não nos ligas, qualquer dia saímos por aí a tocar e cantar para quem nos queira ouvir. E até a janela risonha, amua queixosa, não sou a mesma, já não gostas de mim, há quanto tempo não me abres ou floresces...qualquer dia caio do cortinado de tanta tristeza em mim haver.
E eu que vinha de corda lassa, pronta a deixar cair de cabeça uma data de tristementes, dou com este sururu. E está visto que não posso. Não vou agora deitar-me a enfastiar ainda mais a mobília. Talvez um chá príncipe os acomode. Ou um sol de dia inteiro temperado com atenção.

Vamos ver.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Pruridos e Comichões

Este mundo de subalternidade feminina irrita-me. É isso, i-rri-ta-me. Não sei se já repararam, mas a fonia da palavra irritar é ela mesma uma provocação.  Descende do termo latino irritare e sintoniza com o estado de briga à flor da pele que invade o ser humano em algumas situações. Senão vejamos, a repetição da vogal i com dois erres a dar a mão a cada um (irri), é conjunto  pior que unha a riscar no vidro (e depois ainda dizem que a vogal i é uma vogal doce; é, é). Bendito seja quem assim a inventou para definir o temporário estado de deflagração iminente das nossas boas maneiras. E ontem as minhas vísceras ficaram nesse alvoroço de trovoada que me escureceu o humor. Vou contar.
            Razões pessoais levaram-me a requisitar um serviço numa unidade industrial da minha terra natal. Não era a primeira vez que tal acontecia, a gente do balcão atendeu-me com cortesia e chamou-me pelo primeiro nome antecedido de dona. Ali, sou a D. X; ou Y; ou Z.  Não tenho nada contra. Mas eis que, enquanto esperava a satisfação do pedido, surge um senhor  conhecido.  Que beneficiou de atendimento diverso. Ele não foi o senhor X; ou Y; ou Z. Ele foi  “o senhor professor”. Estava o meu desconcerto já a aquecer, mas ainda em lume brando, quando entra uma professora que toda a gente conhece, a solicitar serviços. E eis que a irritação desbordou. Não surgiu a mesma deferência, “a senhora professora”, antes, tal como eu, foi nivelada pelo nome. Ela foi a D. X; ou Y; ou Z. Mas porquê???! 
Entretanto, aventurei uma desculpa: há muito mais professoras que professores e fazem, por isso, a distinção. Mas então a diferença é numérica e sem relação ao respeito pela profissão exercida... acontece que todas as profissões são de igual respeito desde que bem desempenhadas. A matutar em todas estas questiúnculas,  já estava quase a preferir o costume do norte português que chama doutor a todos que tenham um canudo e acabou. Ora,  não pactuo com isto, sou contra doutores, professores e mais títulos de deferência cheios de “se faz favor” e “vou de recuas para não te dar as costas e de seguida varro o chão que piso”,  que lembra  os indianos da classe mais baixa, os ditos impuros e por isso designados  “intocáveis” (as outras classes sociais não podem  tocá-los sequer). As castas indianas, meus amigos, são uma maldição hereditária.
Mas o que é que queres afinal – pode um leitor mais desprevenido perguntar. Quero tratamento igual entre masculino e feminino e respeito pelos bons profissionais, tenham que sexo tiverem e sejam cavadores, torneiros, professores ou médicos.  Ou et cetera. Entre dois professores presentes, por que razão só o homem é chamado professor?! Por acaso algum professor trabalha mais ou melhor devido ao sexo que lhe coube?  Ou será que só a anteceder o nome masculino a profissão ganha chama?!  Mau, mau. A experiência com  os professores e professoras que tive ao longo de anos, ensinou-me que  a qualidade de ambos vem de outras paragens.
Afinal, ainda que sem prática em tanto caso, vivemos num país maioritariamente católico. Mas Cristo era do povo, tinha pai e mãe humildes, discípulos pescadores, amigos sem estirpe ou linhagem. Ao longo da curta  vida prometeu a todos os homens o mesmo e jamais afirmou ter vindo para salvar alguns.  Que me recorde, não há passagem dos evangelhos onde um sexo se superiorize ao outro. Portanto, nada de imputarmos o mal à religião, o erro é humano. Fomos nós, homens e mulheres, que o criámos e mantivemos por séculos (com a ajuda da instituição igreja, sim; dos homens que a constituíam, quero dizer). Hoje, dá pelo nome de preconceito e muita gente pensa que está erradicado. Colossal engano, as mentalidades resistem à mudança como os portugueses de antanho aos castelhanos. Todas as mulheres, de uma forma ou de outra, sentem e sofrem a lonjura da igualdade homem-mulher. E há ainda quem,  no século XXI, em Portugal, lhes crie um inferno na terra. A violência doméstica é abuso, causa muito dano que se não vê e só a própria avalia.  E mata. Pensem nisto, no primitivismo que ainda existe dentro da espécie.

Mas há situações em que as mulheres são, de hábito,  inadvertidas, elas mesmas sobrepõem os homens, os carregam no colo.  Como aconteceu ontem com o mulherio do balcão.
Oh, bem sei, não havia motivo para tal amargor. Mas apeteceu-me.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Desgovernos de Família

Num certo pressentir, atrasei-me para o curso de filosofia. Espreitei e deparei com um mar – seria mais um lago - de cabeças brancas e olhar mortiço. Invadiu-me um prenúncio de agastura. Mas pensei em preconceito, malevolência retorcida do meu ser. E subi a um lugar vago. Sentei-me a correr fechos que rangiam no silêncio cortado pela voz que perorava lá à frente. A incomodar, portanto. Atentei na figura e não me pareceu grande coisa o que dizia. Mas, acabada de chegar, fiz tábua rasa do momento. Ajeitando o bloco de apontamentos, circunvaguei a minha vizinha da esquerda, uma das poucas cabeças em caracóis castanho natural, lábios vermelhíssimos e em coração, olhos piscando ao sono. Para não incomodar, abandonei-a àquela luta semi-consciente de pestanas e pálpebras que parecem às vezes perseverar em fechar-se e nos invadem de desejos estrambólicos de, ai quem me dera uma cama, cinco minutos e adormecia como um anjo que não há nada de maior apetite que um plano horizontal, mesmo aqui, à vista de todos. E enquanto a minha vizinha estava nisto, desviei para a conversa da oradora. Sem proveito. Inibo-me de citar nomes ou assunto, mas sempre acrescento que do filósofo em estudo, ao fim de duas horas certas conheci nomes de obras na sua temporalidade e em power point. O resto foi o descalabro das relações pessoais do autor em análise, amizades porque sim e porque não, das curiosidades sobre ele; e de si mesma, oradora, com a matéria em causa. E confinámos: uma salganhada entre o que pertencia à individualidade pessoal do autor e à da própria oradora.
Tratava a sessão de analisar a importância de um filósofo complexo e que, portanto, não estudara durante o curso. Pensava eu que, mercê de quatro horas em que alguém mo explicava, podia haver uma iniciação ao seu vocabulário específico que talvez possibilitasse um depois com a obra. Qual! Arredondei a vista pelo silêncio e, lá à frente, mesmo na primeira fila, uma senhora loira e bem posta, fina de tudo quanto há, pendulava ora à frente, ora atrás, com intervalos de esforço na vertical que, mal se percatava, descambavam a repetir oscilações. Pobre pescoço. É certo, a oradora merecia o involuntário mas evidente despautério. Porém, o meu outro vizinho, agarrado a um molesquine todo pipi, afincava em escrita de nem sei o quê, que assunto não chegou a haver. Pensei, é um poeta que aproveita e verseja. E deitei olho à página. Eram frases corridas, em letra feia de mais e a entortar em diagonais disfarçadas de linha. Nenhum poeta escreve assim. Entretanto, a oradora lançava-se a mostrar fotografias de férias pessoais próximas ao lugar de trabalho do pensador em estudo, e entremeava com afirmações do género, não digam que não são bonitas; ou relatava as peripécias que viveu quando lhe visitou o lugar de trabalho; ou outras virtualidades sem qualquer virtude ou relação com aquilo que ali nos levara. Incapaz de versejar, dei com um senhor cheio de tiques, não sei se adensados pela má sessão, se por ser mesmo assim. Entrou depois de mim e, logo após sentar-se, esticou quanto pôde o indicador e com o médio e o polegar em pinça rigorosa, empenhou-se a tirar caspas, dedos embrenhados em cabelo farto. Era operação digna de filme, meticulosa, exacta (um bocadinho nojenta). Quando mudou de lugar e se aproximou de mim reparei que na gola e mangas do sobretudo até ao cotovelo havia um  mar de películas brancas. Mudou de lugar, mas não de actividade. Talvez um linic e mãos amarradas atrás das costas resolvessem o assunto. Duvido. Os tiques são uma respiração nervosa, não será assim tão bom pará-los.
Entretanto, passou um tempão em que o autor em questão e a questão do autor, ausentes. A oradora empreendia agora a falar de editores com quem ela se dava como Deus e os anjos e a importância de ambos e outros berloques bons para ela só. Então, corri os fechos de novo e guardei o material. Soube entretanto pela boquinha em coração que por acaso tinha também lindos olhos castanhos, que a senhora era professora convidada e pertence à Universidade de Évora. Ai Alentejo, as pessoas que tu albergas, não tens vergonha?!
E quando uns garotos da última fila saíram  mortos de riso, apressei o passo atrás deles. Já ao fecho da porta, ainda a ouvi, estão a sair mas eu vou já acabar...

Mas esta gente da filosofia que tanto apregoa a reflexão não tem consciência de si?! Em que mundo vive tanta incompetência chapada?! Bem sei, a senhora tem mais duas horas para a redenção. As minhas, não vai ter. 

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Amadeo 1 - Filosofia 0

Oh! A filosofia. Corrijo: oh! Os estudiosos da filosofia! Os que dela se enchem como sapos e não conseguem um percurso definido sobre o caminho de outros. Que, por contingências internas e externas, na flor da vida, também eu aterrei sem pára-quedas no campo dos pensadores. E é claro que me estendi ao comprido. Mas com alguma graça,  dizem-me agora  (há gente assim, gosta de oferecer brasas apagadas).  Em horas exaustas de curta intimidade, tive o ensejo de conhecer uns certos filósofos, privar com eles, desapertar-lhes os cordões das camisas (mas só os de cima, não antevi mais que a linha do pescoço e um ou outro pêlo).  E, submersa nas vagas do saber, jamais larguei o avental de servi-los, incapaz de  me alçar a outra dimensão.  As aulas semelhavam campo demasiado vasto onde a caça tinha mais pernas que a minha aflição de peças soltas, inábil  a juntá-las em coesão. Foi mais tarde, a sós (éramos três, eu, mim e um pensador), que me acertei a entendê-los. Relativamente. E a explicá-los, se é isso possível. Um pseudo trio que deu certo. Ora, de tempos em tempos, gosto de voltar ao local do crime. Sabendo de antemão o resultado: não paga a pena. O que vou contar é pois mais um encontro gorado entre o eu de mim e os espíritos que, iluminados pela filosofia,  pululam faculdades fora. Avante, pois.
Naquela tarde, já me perdera no Museu de Arte Contemporânea. Perder é figurativo sinal da minha desorientação façanhuda perante as telas de Amadeo. Sim, fico criança pasmada nas explosões de cor em tela repleta. É uma amálgama pensada, que sobrepõe e conjuga hastes e linhas orientadoras da percepção. Amadeo puxa-nos o olhar até onde deseja, manda em nós sem darmos conta, conduz. A mim, comove-me o convite, esse inadvertido movimento do olhar que ele trabalhou, a condição criativa que oferece ao contemplador e acompanha as obras. Ajoelho à centelha de  eternidade que reluz no pintor. Olhá-lo em silêncio e osmose, a entrar devagarinho dentro do quadro e da tinta, a ser verde que desmaia no pincel, morango que conjuga sem época, linha que se impõe feita coluna vertebral de máquina, é matéria escassa para nós dois. Embasbaco no artista desde as aulas de Rui Mário Gonçalves. Mas quis o destino e a minha falta de pontaria, que pode ser destino na mesma, que  encontrasse visitas guiadas em excesso e o vocal dos guias a sobrepor. E velhas senhoras, para aí da minha idade, gumes de perfume a entontecer os arredores, todas embonecadas como no “chá dançante” de que falava o Ary e Tordo cantava como só ele. Linguarudas que depenavam tudo que viesse. E, lógico, uma barulheira que os guardas do museu nem tentavam apaziguar. Pelo visto, os guardas cingem-se à tarefa de não deixarem o visitante ultrapassar os riscos no chão que velam a segura solitude  das telas; mal extrapolei um deles para deixar passar uma cadeira de rodas, fui alertada de que, hélas, era chão sagrado, ali é que não podia pisar. Ora bom. Com tais guardadores - contaram-me que a maioria são pessoas requisitadas ao Centro de Emprego, o que não me parece desculpa para o desleixo -, e portuguesas de meia idade empinocadas e palradoras que não chega a entender-se por que ali estão, até parece que a osmose entre nós dois  era impossível. Mas é que o ser humano a si mesmo se surpreende. E embasbaquei tal qual. E sei lá eu porquê, comovi mais que das outras vezes e às tantas tirei os óculos e pronto. E contudo nenhum dos quadros me era novo, aqui ou ali já os tinha visto. Apreciara em tempos o langor meio cubista dos desenhos a tinta da china, a delicadeza quase terna e pueril dos traços de carvão que tanto me surpreendem. E, lá está, comovem.
Começo a preocupar comigo, estou ficando demasiado idosa nisto da comoção. Será doença?! Ora esta.
E afinal não falei da filosofia. Ora, pois não. Pareceu-me mais grato reviver Amadeo. A bem dizer, gratíssimo. Mesmo.

Comigo, a filosofia vem sempre a seguir. 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Pascoaes na Biblioteca Nacional

E eu, que não sou pascoalina, dei por mim com pena e saudade deste homem que me merece respeito. Por ser uma lástima aquele colóquio onde pretensamente ele seria dito e grande. E afinal não cresceu e foi pequeno. E até me parece que o não retiraram dos cueiros. Pois foi ali, no meio daquele colóquio, que  criei um antagonismo periférico em direcção a Pinheiranda Gomes acerca de quem os meus professores clamavam, façam tudo excepto lê-lo.  Fugi-lhe na juventude e caiu-me no colo naquela hora. Ora esta. O homem já mal se entende, ou estaria afónico que a idade não dá para tanto. Mas ainda o move a linguagem da culpa e do pecado. Abençoado. Não debota nem nada.
O problema do colóquio nem foi a velhice física. Os calos mentais e a vaidade em livre curso é que  se imiscuíram. Desde a moderadora-comissária que acenava e sorria a todos os dizeres - era uma garota ainda verdurenga e airosa, mas nos trejeitos de cabeça parecia a miss piggy só que mais esguedelhada e receio bem que se tenha confundido e montado o seu private muppet show. Pois esta jeune fille interrompia lestamente fosse quem fosse para meter colherada e botar faladura. Observou-se que deixou um ou outro orador com hábito de colóquios a sério, a interrogar-se sobre abandonar a mesa. E que logo reassumiu o papel com alguns elogios imerecidos à abrupta interrupção. Quiçá compunha o ramo que ela desfazia de vez em quando para perplexidade da assistência; ou, por via da efeméride, vestia cavalheirismo pascoalino.
E depois havia a família que afinal fora convidada para estar, mas nada disse. Além de uma sobrinha-neta, senhora muito nervosa que levava o tempo a ir fumar para o exterior e vive na quinta de Gatão, não nos descobrimos uns aos outros.  E um artista plástico e caquético a contar pretensas graciosidades na casa de Gatão, e nem de Teixeira de Pascoaes, mas do irmão e do pintor D’Assunção. E o nosso Teixeira por ali à espera que o Pascoaes desse entrada. E Nada. Nada de quase nada. Que pena.
Mas amei que o senhor presidente da Câmara de Amarante tenha trazido o pessoal das secundárias até Lisboa, professores e alunos. Imagino que os garotos se tenham passeado o dia todo pela novidade lisboeta, e essa ideia que pode bem ser falsa, viceja e  faz-me alegre. Lindos de morrer, aqueles garotos. E consolou-me estar assim no meio deles, a comer os milagrosos bolos de Amarante. Esqueci Pascoaes que a passar por ali foi de raspão, e deliciei. Literalmente. Procurei a companhia dos motoristas dos autocarros que estavam numa mesa dos fundos e pouco davam nas vistas, pedi-lhes uma opinião ou outra e resolvi seguir o conselho do mais novo, hoje é para a desgraça, a senhora ataque aí esse pastel que gosta à confiança. Armada em pote de marmelada, voguei entre a garotagem, um sentimento pascoalino e saudoso a invadir-me a alma até ao cucuruto. O lanche foi regalo do autarca de Amarante para os lisboetas presentes.  E o senhor foi supremo na parte que lhe coube. Não exibicionista. Simpático. Disponível. Vem a Lisboa num rufo de horas e desce com prazer.  Os lisboetas, lamentou,  usam outra medida e julgam Amarante a grande distância. 
Amarante marcou pontos na minha consideração. A verdade é que pensei ir cumprimentar aquele dinamismo actuante que disponibilizou materiais, os carregou, trouxe gente à exposição e ainda serviu uma refeição. Agradecer-lhe. Mas não fui. E devia. Os elogios com merecimento são dever do elogiador. Ainda mais quando se sabe em dívida. Às vezes sou um bocadinho para o parvo, pronto.
Pelo caminho, logo após o colóquio, alguma coisa de valor para amenizar: o grupo coral de Sintra (não tenho certeza se era de Sintra) que cantou divinamente e estreou um poema de Pascoaes no seu repertório. A estes não esqueci de elogiar e agradecer. Haja Deus. E momentos destes a regar-me o pé.


Há sempre alguém que faz falta...há...saudade (não fica bem com Pascoaes?)

Pascoaes na Biblioteca Nacional

Teixeira de Pascoaes não é poeta que me fale ao ouvido, digamos que lhe leio a crónica melancolia sem gosto particular. E no entanto julgo-o um vulto português que se salienta no mundo nacional. Um poeta de Amarante que abraça os seus mas a quem falta universalidade, o ressalto de génio. Mas sou permeável ao valor e extensão da sua obra e à transformação cultural que originou no país com a criação do movimento “Renascença Portuguesa”,  dinamizado através da revista A Águia, de que são cofundadores António Sérgio e Raul Proença. A vida decorreu-lhe, pois, maioritariamente em solidão, entre leitura e escrita, rodeado pelos montes do Marão, imerso em sua quinta de família. Solteiro, sem ocupação profissional senão durante dez anos, e sem prisões ou doçuras e enleios certos de mulher. Se olhamos os escritos que deixou, salta à vista que não foi apenas mais um poeta. Não. Foi cidadão empenhado em entender o mundo e a si mesmo, afirmação que se sustenta sobretudo nos trabalhos de prosa: conferências em que participou e de que também há notícia, interesse e achegas que trouxe ao conhecimento do peculiar carácter português na sua componente saudosa. Podemos ou não concordar com o que pensou e escreveu, mas temos de convir, foi homem que viveu para as letras e deixou obra feita. A história literária conta e faz-se com ele.
Veio este preâmbulo a propósito de, ora, se comemorar Pascoaes na Biblioteca Nacional. É isso, Pascoaes está lá. Em dolorosa incompletude, diga-se. Podemos observá-lo na caligrafia epistolar, traçada, quem sabe, naquela mesma secretária e cadeira que têm forma e desenho de sua vontade (o material de escritório tem um quê de estranho e muito particular). Dentro das vitrines, o desenho aparado de consoantes aristocratas e de nariz empinado em pose de não me toques estende mãos de elegância a vogais menorzinhas; são palavras em sobrescritos e folhas de carta que agudizam sem destino ou destinatário, sujeitas à promíscua curiosidade do presente. As cartas são de um para um, comunhão de ideias por escrito, coisa inviolável. E não há pejo de plasmá-las, qualquer as acede. Oh, o injusto peso da história. É certo, perderam élan, já não são “o que eu escrevo para ti só e só tu lês”. Estão mais despidas que nudez de parede. São mensagens sem receptor nem emissor,  ossadas relacionais. E passo por elas contrita e arrependida, sem transcender a leitura de endereços que me descalçam em subtileza caligráfica.
Pascoaes surge em fotos amarelecidas de tempo, um tudo nada tristonho. Compenetrado, sério. Pelas paredes, as suas melhores frases. Ou as que alguém julgou melhores. E nem um poema inteirinho. Nem uma página de “A arte de  ser português”, nem um montinho dos seus muitos livros de poesia, a sua obra de teatro, as folhas das conferências. Falta na exposição esse espaço de experiência desvelada ou a desvelar e que é o que num autor de letras mais interessa. Por ironia, a exposição está dentro de uma biblioteca nacional. E não tem livros. Não conduz o visitante pela mão até eles, não o leva a apreciar, folhear, aprender com a obra do autor. Nem um exemplar da Águia, revista que durou cerca de 20 anos. Dou por mim em dúvida, terei sido eu que os não vi na exposição?! Terão existido outras exposições da obra e que não vi...Assoberbo, que distracção me comeu os olhos de ver livros?! Mas, e se eles não estavam mesmo lá...
Pergunto,  como é que se expõe um homem de tal calibre só com cinco a dez frases da sua imensa obra?! Oh, quem tanto pudesse que fartasse esta gente que monta exposições para brilhar e ser si mesmo o tempo todo. À sombra do poeta, do ensaísta, do jornalista, do conferencista. Esse. O que continuou e permanece um ilustre desconhecido.

Ah, pode alguém dizer-me, atenção! À entrada, na nota de abertura da exposição, a comissária leu um poema de Pascoaes. Não. Ela fez uso do poema e declamou-se a si com as palavras dele. Brilhos nela. Dela, a subir a escada do poema. E curriculum. E influências. E isso. Pascoaes, não o senti.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

The Light Between Oceans

E nesse interim, avistam um barquito desgovernado que traz um morto e um bebé. E não precisamos ser génios para adivinhar que não participam o achado e vão dar a criança como sua – Isabel estava grávida e ninguém sabia do segundo aborto. A jovem está tão infeliz e sedenta de um filho que o espectador quase agradece o achado e o macabro de um homem morto com a criança. E os pruridos de Tom rebate-os ela como os rebatemos nós. Depois, a vida devém-lhes completa e inteira. Os anos passam e a menina cresce. Mas os erros nunca deixam de o ser e a memória não os apaga. É Tom quem, numa viagem a terra, observa a viúva que perdeu marido e filha, se informa e conclui: a sua filha é a filha daquela mulher. E somos levados a pensar se com os bilhetes anónimos que lhe envia dizendo que a criança está viva e é bem amada, quer apenas informá-la ou se deseja ser descoberto. Isabel nada sabe ou intui enquanto a outra, filha de um potentado do lugar, sabendo que a filha vive, move céu e terra até a encontrar. E a garota é retirada dos falsos pais e levada à mãe verdadeira.  Isabel junta ao desgosto profundo a zanga com Tom que responsabiliza pela desgraça. Crucifica o marido. O momento da separação de mãe e filha, como diriam os brasileiros,  “ comove demais da conta”. Nenhuma entende ou quer abdicar da outra. E é como se os sentimentos retirem idade e sejam duas crianças presas do amor que as une. Na prisão, Tom iliba Isabel e assume a culpa solitária.  E o desfecho vai depender de Isabel quando se apercebe que o marido pode ser condenado à morte por haver a crença de que foi ele quem assassinou o pai da criança (o que não aconteceu e só ela pode testemunhar). Depois do seu testemunho, tudo se resolve, a mãe verdadeira (Rachel Weisz) desiste da queixa exigindo que jamais se aproximem da filha e a lei obriga-os a mudar de cidade.
Com actores de excepção e fotografia de espantosa delicadeza, o filme abusa de situações de melodrama. Mas deixa-nos a pensar. E se fôssemos nós?! O que faría cada um em situação idêntica, como procedia se desejásse com todas as forças um filho que se negava a existir e lhe aparecesse, vinda assim do meio do mar, uma bebé. Não ia parecer que o destino a enviara?! Ficaríamos a pensar na mãe que talvez nem existisse? Na família que, a existir, por certo pensava que se afogara juntamente com o pai?!...
Por outro lado, toda a gente elogia o papel de Rachel Weisz a mãe natural que acolhe a filha e depara com a sua estranheza relutante, ela já tem uma mãe e gosta dela, quer a sua casa no farol e o nome antigo.  Talvez o problema seja meu que não entendo uma mãe que, neste caso, quer a filha só para si; não entendo um amor maternal que se constrói sobre os despojos de outra mulher e que, em parte, a destrói; distancio-me de um amor que assiste ao desgosto lacrimoso da criança até ao esquecimento que por certo é tardio, dado  a ligação entre as duas - mãe e filha fictícias - ser muito forte; não entendo a expiação de erros que proíbem contactos para todo o sempre; não entendo por que razão uma criança não pode ter o amor de duas mães e por que teve uma delas de sofrer até à morte tal separação dolorosa. Mas talvez eu esteja apenas influenciada pela extraordinária interpretação de Alicia Vikander e por isso penda para quem errou.
Aconselho que vejam o filme e ganhem as vossas próprias dúvidas e questões. Omiti o fim para haver algum suspenseJ

E sejam felizes

The Light Between Oceans

Gosto de Alicia Vikander desde “The Danish Girl” (A rapariga da Dinamarca), e de Fassbender depois de “12 years a slave” (12 anos escravo). Ambos possuem uma capacidade notável para representar e envolver o espectador na transparência de sentimentos que as situações exigem e até julgo que suplantam.
Quem não recorda a doce e apaixonada Gerda que, contra si mesma, ajuda o marido - Eddie Redmayne -  a tornar-se mulher e lhe  acompanha a mudança, cada cirurgia a levá-lo aos poucos  até à morte. Gerda fica-nos na memória pela constância da doçura, pela devoção a um amor, pelo bom carácter; retemos Fassbender pelo oposto. Em “12 anos escravo”, é um fazendeiro racista e asqueroso, o terror dos escravos. Que maltrata em pormenor a sua escrava favorita. Nutre por ela um ódio tão potente e destruidor como o amor que lhe irrompe em desejos dela e que só a vontade recusa, o corpo sossobrando no desejo que o atormenta. Tal constatação enfurece-o, leva-o à mesquinhez de ferir e fazer mal. Sem descanso, o insuportável fazendeiro vinga-se de si mesmo no corpo da escrava.
            E agora, “The light between oceans” (A luz entre oceanos) junta os dois pela mão de Derek Cianfrance, um realizador americano, célebre por ter realizado Blue Valentine filme aclamado, onde não houve ensaio de cenas e que foi filmado quase sem repetição de takes. É um bom e muito humano realizador.
Nesta fita passada na Austrália, Vikander é Isabel Graysmark, uma garota casadoira que conhece um ex-soldado da primeira guerra, disposto a trabalhar num farol longe das gentes. A fotografia é de excepção e as cores são pálidas, sem o bric à brac desbragado da intensidade óptica e a criar ambiente a uma história de amor romântica e delicada. Os dois intérpretes casam e vivem imersos em ternura apaixonada, dedicados um a outro. São felizes. Mas o sonho de ter filhos vai morrendo, primeiro um aborto, depois outro. Ela, inconsolável, junto às dua cruzes açoitadas de vento, o desgosto a engolir-lhe a vontade de viver, a sanidade mental sucumbindo de novo e em força redobrada.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Coisas

Oh meus amigos! Ou estou parva ou aquela gente é toda meia chalada e vive num mundo outro que não o meu e da maioria. E eu que tinha começado por achá-los bem comportados, mudei de ideias. Aquela plateia de copinhos de leite começou a irritar-me, a comichar-me as meninges. Que diabo fez aquela gente durante uma vida inteira de trabalho que não deu para se cansarem. Ora esta. No mundo em que vivo as pessoas estão esgotadas, correm daqui para ali a acudir a muitos fogos. Aquelas mulheres – a maioria eram mulheres -  não são semelhantes às que conheço. Não são profissionais a quem a empresa e os chefes exigem isto e mais aquilo e com horários de dia inteiro; mães a tempo inteiro, de 24 sobre 24 horas, e sempre a substituir a parte que os pais não fazem junto dos filhos; as amantes possíveis e às vezes sabe Deus que impossíveis em pouco tempo de muito sono e cansaço que os parvalhões dos parceiros não entendem na generalidade; as mulheres que se gosta de ter ao lado e que fazem o que podem para gastar pouco e ter aparência razoável, que milagres ninguém faz; as donas de casa que são sopeiras, criadas de fora e de dentro, cozinheiras e governantas.  E se os meus leitores acham que a esta gente que é tudo em um, sobra algum tempo para estar de perna cruzada, e até mesmo noutra posição de descanso, é porque também lhes falta algum juízo. 
Estas Senhoras – são umas senhoras mulheres – estão estafadas e querem a reforma, sim. É um direito que ganharam com o esforço do corpo que o trabalho em excesso e as preocupações acrescidas de muito não presta, estragaram.  Ora, portanto,  a  mesma gente, aos sessenta já bufa pela reforma que teima em afastar-se cada vez mais.
Pergunto-me de onde veio aquele naipe seriado da plateia. E a médica que me assistiu de manhã?! Talvez respondesse à questão da trabalhadora incansável.
Parece-me que até mesmo entre os médicos e afins que se considerem a si mesmos descansados e aptos, se distingue entre querer trabalhar e ainda saber fazê-lo, ser competente.

Mas não me apetece discutir chachadas fora de horas.

Nota: peço desculpa aos homens por me cingir ao trabalho das mulheres, o que melhor conheço e mais lamento e admiro. Mas o número de homens que se estafa tanto como elas será reduzido.  Fora do âmbito profissional, o seu volume de trabalho não merece referência
Intriga-me a razão porque morrem primeiro. Um dia penso nisso.