Por
um fortuito acaso comprei bilhete para o último concerto da temporada na
Gulbenkian. Desconhecendo que era último. Movida a súbita saudade, abri o pc e
achei um bom preço num horário inesperado por inabitual, ainda por cima com a
maestrina que todo o ano desejei ver: Joana Carneiro – não sei o exacto porquê,
mas ser portuguesa e mulher, num lugar cativo de homens, contribuíu. Quase tudo
vendido, escolhi o lugar 1 da fila 28 e só muito depois me deitei a pensar que
devia ser longíssimo do palco. Tinha comprado. Nada a fazer. Para não desanimar, e porque me pareceu um bom castigo à
imparável distracção que acompanha o eu de mim, nem espreitei a planta da sala que,
aliás, tinha visto sem ver, quando escolhera o lugar.
Cheguei
cedo e flanei pela secção de compras, onde aproveitei para perder os óculos de
sol de que mais gostei até hoje. Sou assim, não perco tempo com bagatelas,
se é de perder, que seja de valor. Ainda desatendida do rombo, sentei-me
rodeada de meus vagares, na grata surpresa de estar mesmo junto ao palco e,
graças ao enviesado do lugar, poder admirar a maestrina. A tal que, em vão,
quisera assistir. Felizmente não esquecera os óculos normais e a perda
manteve-se incógnita. O meu céu, azul e sem nuvens.
Agora
que já me habituei, sei que chega primeiro a orquestra e só depois de tudo
pronto e no lugar, o maestro. Os elementos galvanizam pela fatiota. Se não fora
o instrumento que trazem na mão e lhes dá o metier,
pareciam convidados de um casamento chique e nós, os sentados, transeuntes
boquiabertos a bisbilhotar roupagem e penteado. É verdade que os velhos são
sábios e existem, mas, da entrada à cadeira de cada um, a aura é dos mais jovens, os restantes a passear, distinta e em passo certo, a sua
discrição. Ficou-me uma mulher de braços sinuosos e decotados que se sentou
num sussurro de sedas a deslizar, ajeitando o violino em materna comoção de dedos, o mate da pele a resplandecer contornos juvenis, toda debruçada de cuidados com porcelana chinesa. Ou a de dedos de fuso e pulso fino que trazia aos ombros uma
nuvem de tule e permaneceu alheada dos fios do tecido a ranger constrangimentos, ai, não aguento esta dobra, vou ficar esmagado dentro da prega, a mirar o brilho da flauta, desligada do rumor das fibras a esticar no busto, garridas vaidades insufladas, somos as maiores; mais tarde, o seu
solo de deusa chamada à Terra havia de transportar-nos a florestas verdes de ar rarefeito e pastoril,
onde a pureza do oxigénio nos entontecia a cabeça. Lindas, as duas. No entanto,
mal a maestrina pisou o palco, eu soube de algo maior. Joana Carneiro, rosto sem
pintura, em negro conservador: sobre saia comprida, casaco de malha fina, manga justa até ao pulso, sem réstia de enfeite ou alinhavo de cor. O cabelo a descer, liso e
solto, com um ganchinho infantil sobre o lado, a amparar a visão. E, como em
todos os concertos de domingo, explicou a música. Trouxe os instrumentos ao seu
significado na peça, identificou-os com os momentos e contou a história de cada
trecho. Ouvi-la, foi sentir uma janela a rasgar cá dentro. E foi assim, cheios
de claridade, que a vimos crescer no palco. Aconteceu-me o de sempre, ouvia a
música mas esqueci completamente a orquestra. A minha atenção foi sugada por
uma feiticeira encantatória que, em grandes gestos, cozinhava à nossa frente os
prodígios da sua arte de feitiçaria. Doce e terna feiticeira que se deixa levar
pela música e participa da sua tristeza, o desalento do cabelo a oscilar
próximo ao pesar dos olhos! Que, numa súbita viragem da sua varinha de condão,
toda se empolga e vibra, e se faz força de viver e riso desabrido, torrente que,
qual flauta de Hamelin, arrasta toda a orquestra.
E
logo ela se despediu. Parecia que só uns minutos, mas um concerto inteiro.
Depois…bom,
depois foi a busca insana e inútil pelos óculos. E ainda assim não se me apagou
a gratidão por mais este acaso de sorte.
Sem comentários:
Enviar um comentário