Há
dias de porta fechada e sentidos embotados. Os olhos continuam a olhar mas perdem
objecto, entregam-se ao fastio, vivem no pega e larga, saltitando de uma coisa a outra. E as letras são
hieroglifos paralisados nas teclas incógnitas de dedos. São dias dementes, sem um
aceno de ideias, sem o afã de frases que se desenham e redesenham
a apurar o pensamento em acinte de
modista que ajusta tecido ao corpo, afunda aqui uma pinça, alarga ali uma
costura. Nesse tempo, definitivamente, pareço outra.
A
outra tem um lado experimental. Arruma, compra, lima arestas e dá um embalo na
vida. Às vezes, queda-se a vê-la girar na ilusão de estar fora do movimento. Os
sonhos têm nela a amplitude do momento seguinte, nada projecta e pouco pede.
Essa mulher pré histórica e meia bicho, que me habita com força de raiz, é calma
e talvez submissa. As mãos são-lhe tenaz operante e julgo que habita um mundo dextro
e antigo, que não adivinha o advento das máquinas. É muito velha, ela.
Mas
quando as letras me regressam e aos dedos apetece a artimanha das palavras, é nessa
raiz de simplicidade tenebrosa que bebem. Ela é o meu esqueleto pobre e minguado.
Tudo que vem depois, vem sobre ele.
Esta
conversa toda surgiu a propósito das mulheres que o mundo me ofereceu ontem – o
mundo gosta muito de mim e vai-me assim oferecendo uns bombons. A bem dizer o
assunto nem sou eu nem a minha raiz australopiteca. Ora vejam e concluam o que
bem entendam.
Ontem
voltei à ginecologia e a consulta deslizou, a médica foi simpática e não zarpei
para o lugar dos horrores, os exames estavam nos trâmites... a senhora entretida
a digitalizá-los e pergunta, quem é o seu médico? Eu estática e meia atrapalhada,
qual médico, o clínico geral? E ela impaciente, como se eu criança pequena,
não, o seu ginecologista. Eu apanhada de surpresa e palerma de todo, a minha
ginecologista é a doutora. Ela, ai sou eu, pois não me lembrava, está bem, sou
eu. A enfermeira parada, a olhar-me
fixamente. Claro que saí ainda mais
convicta, tenho de mudar de médica. É verdade que não costumamos tomar chá as duas, mas sou sua doente há uns
dez anos e é mais velha que eu. No comments.
Bom.
Mas a minha experiência com médicas ainda não estava concluída. À tarde, depois
de uma consulta que me reatou com a classe - era a segunda consulta e a senhora cometeu
a altíssima proeza de me conhecer -, passei na Gulbenkian onde havia a
apresentação de uma associação de voluntariado para maiores de 55 anos, coisa da minha faixa etária. Eram só
crianças de cabelo branco, todas muito bem comportadas e tal. Estavam assim umas figuras conhecidas, mas na
Gulbenkian é normal, eles e elas não me conhecem e eu também pouco lhes ligo.
Eis senão quando abrem a perguntas na assistência – chego quase sempre atrasada
e só oiço as perguntas – e salta uma médica a dizer que não há direito – usou
termos mais adequados ao lugar -, quem tem mais de setenta anos deseja
trabalhar e vê-se a braços com a reforma. E deu exemplos: o professor Sobrinho
Simões (o meu quase herói, está só um degrauzinho abaixo do Lech Valesa do
antigamente), o professor Daniel Sampaio que tem aquele olhar esquisito que a gente sabe, o professor João Lobo Antunes, que
até morreu quase a seguir e só faltou a garota deitar culpas à reforma. Estes
três coitados – ela não se lembrou de outros -
foram compulsivamente empurrados para a reforma; e eu, Beatriz, fiquei com
uma peninha deles desgraçada. Afirmou a ex.ma médica que estavam envolvidos em
projectos e tiveram de abandonar e regressar a penates. Só porque cometeram o
pecado de terem para aí uns setenta e tal anos (mas então o meu semi herói já é
tão velho?! Mau Maria). Imagino que a esta hora andem a aspirar, limpar o pó,
ir às compras. Não contente com este petardo, acrescentou a dama que aos
setenta as pessoas são muito válidas e deviam continuar a trabalhar porque
querem trabalhar, estão cheias de vontade de fazer coisas. E de trabalhar
(voltou a frisar). E toda a gente a abanar a cabeça que sim.