A
senhora Natividade levantava-se ainda a noite colava ao vulto das coisas,
insinuada por dentro de arbustos e arvoredo, a cravejá-los de susto. Nessas
horas roubadas ao sono, cirandava pela cozinha numa azáfama de lumes, pequenos-almoços
de faca e garfo e lancheiras do dia todo. Ali se cruzavam cheiros e, se alguém batesse, ficaria com a ideia de um restaurante
a girar na sua órbita. Mas ninguém batia tão cedo e Natividade desencardia a
manhã ao ritmo do corpo, puxava-a de dentro da noite até a claridade ser tanta
que não houvesse volta atrás.
Talvez
que por vezes o marido se demorasse a olhá-la em combinação admirando-lhe os
redondos de ser mulher. Talvez uma rendinha singela no decote sobre a brancura
da pele virgem de sol. Mas custava pensá-la feminina, coquete. Natividade
nascera composta e generala, o avental escuro sobre o pardacento da saia
comprida, cabelo esticado no carrapito que dois ganchos de tartaruga repuxavam.
Imaginá-la remelosa ou despenteada desfazia-lhe o rigor da figura acutângula, e
a voz de gritar sentido não desmaiava ternuras por filhos e netos. E menos se
desfaria por outras condições.
Quando
batiam as nove e a escola começava, Natividade já não tinha ninguém em casa, as
camas estavam feitas e a loiça lavada, os animais tratados e o grão ou o feijão
do almoço da cantina já fervia no caldeirão. A professora vinha receosa do
cheiro a fumo, estendia as mãos ao calor e deixava-se ficar quieta, a distância
do crepitar. Entretanto, uma Natividade afogueada e de braços ao léu até ao
cotovelo, reinava: mexia o caldo e acrescentava-o a entornar água fervente de uma panela
auxiliar; de seguida, rodava em volta do fogo a alimentá-lo daqui e dali e a
pô-lo por igual. Por vezes, a professora deitava para o caldeiro as suas
desditas de mulher de família aperreada e Natividade mexia tudo junto, um braço
sobre os olhos a proteger-se do quente que lhe humedecia o rosto vermelho, a
colher de pau numa fona. Nesses dias, as crianças diziam que o almoço sabia
melhor. Ela olhava a professora miúda nos saltos altos e pensava que o desgosto
fervera e apurara sobre o brasido. A professora em voz baixa, ainda bem que
conversámos Natividade, estou mais aliviada; e ela para si, mas eu nem abri a
boca. Natividade desconhecia o prazer de ser escutada, não se dava conta do bem
que fazia à professora. Mas a mestra saia aliviada. Possuída de alma nova, desaparecia no
interior da escola e enchia o quadro de gatafunhos que
Natividade não entendia. E as horas fugiam enquanto os gaiatos aprendiam a ler,
escrever e contar e ela labutava no almoço.
Mas,
quando o caldeiro ronronava em lume mortiço, a refeição a ganhar sabor em
demoras de brasas a esmorecer, Natividade permitia-se um enlevo antes do pôr
das mesas. Pousava a colher, ajeitava o braseiro sob a panela e saía a visitar
as suas flores. Dava-lhe os bons dias, media o crescimento e os rebentos novos,
verificava eficácias na rega da véspera, endireitava um tronco que arrumara a um brinco de princesa. Nessa hora, os olhos deixavam cair a lixa e eram mel, ternuras
debruçadas e explosivas até para os malmequeres de palha e a sua inteira
aspereza de pétalas. E quem passasse na estrada e se atardasse invisível, que
ela não apreciava que lhe palpassem as fraquezas, assistia-lhe a doçura das
mãos a tactear como cegas retintas a corola das bocas de lobo, a maciez dos
veludos, ou o nácar das rosas de santa Teresinha.
Passou
pela figueira carregada e atentou nalguns figos, um pingo de mel a coalhar dependurado.
Pensou que, finalmente, estavam no ponto, bons para a apanha. Parou no muro
verde de arbustos e estava passando a mão na verdura a desculpar-se pela
garotada que lhe chupava os rapazinhos, quando uma mulher gorda, saia muito ampla e redonda, parou a olhá-la, uma garotita
enfezada pela mão, lembra-se de mim? – e sem transição – Moro na Caseta Roubada
– apontando a miúda – esta é a minha mais nova, chama-se Luisilda. E uns
olhinhos vivaços e azuis, uma boquinha de riso aberto, o nariz ranhoso. Natividade
olhou-a e, não queres uns figos? Os olhitos azuis reanimados. A mãe às
cotoveladas, vai lá buscar, vá… E Natividade a colher os primeiros frutos, mão
estendida à fome, anda cá, come aqui sentadinha enquanto eu converso com a tua
mãe. E enquanto a garota os devorava, ela fiel ao seu ser natural, um olho na
velocidade da mastigação, pois é…pois é…
À
tardinha, na hora da rega, o ti João admirado, então os figos? E ela num
desprendimento, passou aí aquela da Caseta Roubada com a miúda cheia de fome e
olha, dei-lhos. Aquilo é uma desgraça pegada. Mas por que é que estas mulheres
têm filhos?! Mal se segurava nas pernas, aquele corno, Deus me perdoe. Levou a
miúda à vila e nem assim. A desgraçada só cheirava a aguardente e não dizia
coisa com coisa. Malvado vinho.