sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Dançar com a Morte


Não se sabe por que tanto pesa o que sempre nos pesa apesar dos momentos em que parece mais leve. Mas pertence ao viver que cada hora seja uma e nada se saiba da próxima ou de quando a última nos visita. Em tempos, li num livro de Savater que o autor criou consciência da sua própria morte aos nove anos. Pois fartou-se a minha infância de observar monótonos funerais a subir a ladeira e a morte continuou-me do lado de lá. Jamais a julguei minha ou dos meus, a família era eterna. Na catequese, o padre assegurava outra vida, um céu para a gente boa e que me surgia completamente desnecessário. Se nenhum de nós morria, tal mundo não me beliscava, era-me arredio. Resumindo, mantive-me eterna até meio da adolescência, época em que a mortalidade foi espinho que enterrou. Afinal, o meu mundo pequeno comungava da duração limitada.  E veio toda esta conversa a propósito de meu pai e da sua provecta idade: oitenta e cinco anos. Se o visito, não falamos da morte – da sua –, mas pergunto-me muita vez como será que a entende. Acreditar na imortalidade é crença que descarto, nunca foi religioso ou  quimérico. Está pois ciente de ser coisa próxima. E, quanto mais envelhece, mais se enche de projectos e compras. Não o visito sem haver algo novo e por estrear. Compras feitas aos pares e à meia dúzia. Não há armários onde guardar tanta roupa, abafos, sapatos, bonés, meias que saltitam como embalagens de ovos, em quantidade. Por ora, virou-se para os utensílios domésticos que exibe com a grandeza de um magnata perdulário. Ele são novos tachos e panelas, uma pá supersónica, um par de vassouras, uma altura de panos de cozinha. E depois vem-lhe aquele entusiasmo genuíno por uma frigideira, assim como quem apresenta as qualidades do seu novo Mercedes. Que nada se lhe pega – e passa um dedo pelo fundo anti aderente -, que se lava enquanto o diabo esfrega um olho e não mascarra. Guarda o melhor para o final: que, ao contrário das nossas compras – nós, os filhos, nunca soubemos comprar - foi muito mais  barata do que as que aparecem nos anúncios da TV. E volta a alojá-la no armário como guarda-jóias carregadinho de valores.
Qualquer desistente da vida devia visitar meu pai. Para ler o jornal, desloca-se até ao café diariamente, na bicicleta de senhora que adquiriu para esse fim, dado já quase não conseguir a marcha. Diverte-se a fazer compras no super e mostra-me com orgulho os bons artigos que trouxe para casa. Repete, diário, a sua ginástica matinal e garante que, sem ela, já os músculos teriam petrificado. Sente enorme prazer a confeccionar as refeições, destiná-las, saboreá-las. E tudo de acordo com os conselhos médicos. Nos domingos, empapoila-se e almoça fora. Sozinho. Jamais convida filhos ou netos e apenas nos visita por obrigações de doença nossa. A sua maior glória é a suada independência do  dia a dia.

domingo, 21 de outubro de 2018

Bem Aventuranças


Eram as sete de uma tarde quente. E eu sabia a ondulação copada das árvores atrás do coro, o vôo dos pássaros, o recorte de azul que desmaiava na tardinha. Sabia da vida lá fora; do silêncio ruidoso de semáforos; do trânsito logo ali, em pressas de fim de semana; de gente que buscava ninho. Sabia da vida dentro de mim. Mas não havia o tempo. Não havia mais que a música a encorpar, expandir-se, encher todos os espaços até à saturação. Não havia senão acordes e vozes celestiais em doce e unívoco corpo a corpo. E decerto lá estive porque ouvi e porque sei do rosto e gestos do maestro levitando energia sobre a orquestra. Terei pensado, respirado, o sangue atravessou-me o corpo igual a sempre. Presentes na memória, só música e maestro.
O intervalo chegou ainda mal me sentara. Julguei engano. Mas já o maestro saía abafado em aplausos, adornado de “bravôs”. Voltei-me. O lugar dela, vago. Imaginei-a lá fora, a aliviar o excesso de maravilha. Ou, quem sabe, apenas o olhar distraído na vária gente.
Na segunda parte, o espectáculo retomou sem o coro. E sem ela. O seu lugar uma falha na dentição. Foi quando pensei na sorte das árvores que rodeiam a sala e ouvem tudo pelas raízes. Placidamente musicadas, entretinham-se lá atrás em iluminado ninar de folhas. E nem um pássaro. Mas a música varreu tudo de novo. Sem paisagem, vencida pela vibração, morando na entrega do maestro. E breve a plateia de pé e um maestro grato, mão sobre o coração. De novo lhe regressaram os pés, a magreza alongada das pernas, os tombados anéis de cabelo. E o lugar vazio que quase não se notava, mas eu sabia.
À saída, mesmo por detrás de mim, alguém comentava, “fantástico, viste os pés dele, parece um bailarino, dança todo o concerto”. E fiquei com pena dos meus olhos que não sei por onde se perdem. É que do maestro lembro uma transfiguração de adamastor benfazejo que não aterroriza e antes guarda o palco e lhe dá vida. Facto que, desconfio bem, não está à vista.
Entretanto, ó surpresa, no exterior, placidamente, ela sacudia um grão de pó na malinha. Depois misturou-se à multidão e deixei de vê-la. Talvez seja entediante dama. Ou exasperada solitária. Prefiro pensá-la lá fora, a desfrutar do anoitecer por entre as árvores enquanto a música, no interior, fazia casa.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Bem Aventuranças


O ser humano está preso ao hábito. Nota-se no descansado olhar que pousa em objectos de uso, no mastro seguro dos afectos, na fixa placidez horária em que o corpo evolve. E mesmo nos agrados de cada um. Hábito provável das duas, encontro-a amiúde em concertos. Presumo que à minha pressa esbaforida impõe a sua unívoca calma e, porque chega cedo, talvez se sente um nadinha na entrada a degustar a novidade, enquanto eu relanceio ponteiros aflitos no corre-corre  afeito à traição da calçada lisboeta. Imagino-a a deambular por entre os livros, a avaliar uma porcelana, comprando uma recordação. Não precisa pente e as pregas da saia rodeiam-lhe o corpo em macia elegância, é pessoa de tudo no lugar. Ao piscar das luzes, entro açodada.  E já ela impera estratégica, sentada a meio da sala. No ar, o leve romurejo de pássaros que se aquietam  no folhedo. A colmeia humana preenche seus alvéolos enquanto caminho até ao meu viés junto ao palco. Tudo que era movimento se faz expectação, apenas uma ou outra mão alisa cabelos, uma tosse seca, o braço que muda de posição, um relâmpago de curiosidade que faísca. E ela. Esfíngica receptividade, abóbada pronta ao som. O palco anima e converge. Vestidos a rigor, os músicos aprumam respeitos e aproximam-se dos lugares. Nas suas mãos, os instrumentos refulgem e são activa probidade, antecipação ingente das melodias que guardam. Sentam-se, colocam-nos em posição, debruçam-se sobre a partitura. E juntam-se ao público: aguardam em silêncio. Eis o primeiro violinista, o violino como primeira figura. E logo um coro de violinos responde ao seu experimento. E emudecem. A sala espera o maestro. Quando a porta se abre já as palmas estão prontas e se acende o entusiasmo na plateia. A figura que se aproxima em passo elástico é leve e jovem. Inclina-se profundamente e noto-lhe as ondas do cabelo negro e fúlgidos sapatos.  Breve a sua figura esguia nos dá as costas e a música começa. O tempo colapsa. E logo tudo esvai e o divino se instaura.
(cont)

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Marca D'Água


Cirandando nos conteúdos de pen antigas encontrei o escrito que se segue. Oxalá fosse meu. Mas não, sou incapaz de tal depuração escrita, ainda que algumas expressões e frases comunguem da minha brisa. É tão bonito que resolvi postá-lo. Assim, posso voltar a lê-lo. Sempre. Beleza incógnita que terei copiado de algum blogue ou comentário.  Se acaso a autora por aqui passe, os meus parabéns e obrigada sincero. Também a desculpa pelo atrevimento.

“A marca de água é uma atração do papel, o súbito de uma frescura que me sabe ao rasto da seda rente à linha dos dedos, frágil suavidade debruçada nos movimentos. Na verdade, não sei o que seja a marca de água. Mas as palavras me traçam imagens pedintes, numa cegueira de pés  que sentem sem ver, mister que lhes não pertence. E assim caminham.
E me surgiste não sei como e me rodeaste inteira, e os meus pés cegos, porque todos os pés assim,  palmilharam as sílabas do nosso desencontro. Contigo. Fora de tu seres tu.  E a tua representação – que não sei – uma borracha de apagar dúvidas. Tens razão, usei o que não tinha, as aparências iludem, como tanta vez repetiste sem que eu um vislumbre sequer. Era o meu ópio  de ir sem medo. Oferecias-me canções e riso e a minha mente sem olhos corria-lhes música e letra a procurar um qualquer tu nos intervalos de tudo o que fruía, leve inconsciência de usar o que pertencia a outrem, podendo dispor; a afastar-me por momentos de mim mesma. Julgava eu. Como se alguém pudesse nascer das palavras e ser essa a sua verdade. E houvesse romances que corporizam na atmosfera. Mas romances são folhas e folhas de letras a dizerem sentimentos que conhecemos com a violência de quem os diz sentindo-os sempre na realidade depurada que é o mesmo que dizer, não ela, outra coisa. E, por excesso ou defeito, assim se vai semeando um eu condicional e pretérito e se marca a distância entre livro  e leitor.”

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

As Mulheres que Eu Conheço


E se é necessário poupar? Bom, aí, ela passa no supermercado com a obediente lista de géneros e preços, a tentar abrir  folga no orçamento.  Ele concede, deixa de almoçar no restaurante, ela cozinha e prepara-lhe a marmita do almoço – diferente do jantar por ser aborrecido ele estar sempre às sobras. Em época de poupança, se existe,  corta-se nas horas da empregada e ela “dá um jeito” para que tudo continue a rolar como antes; acabam-se as esporádicas refeições em restaurante, ela cozinha sempre; ela corta no vestuário – no dela que tem muito que vestir, os garotos estão a crescer e ele precisa estar bem trajado, o fato sem brilho. O marido dela é um senhor. Ela arca com todos os trabalhos e limpezas antes que ele goze férias porque um ano inteiro de trabalho é coisa cansativa para ele.
Em épocas de aperto, não há férias para ninguém. Mas, enquanto ele lamenta ficar por casa, a ela tanto se lhe dá. Evita rumar a lugar diverso e, numa casa que não é sua e onde algum utensílio indispensável está em falta, fazer o de sempre: passar, lavar, providenciar as refeições. E tudo isto acrescido do fazer e desfazer  das malas, de acautelar a rega das flores e alimentação dos animais deixados para trás, de ambas as casas ficarem em ordem. Nos aniversários e festinhas dos garotos ela poupa fazendo os bolos e o mais; ele, leva ou trata do vinho.
Se ela adoece, ele leva-a ao médico num desamparo aflito porque a casa, porque as compras e as roupas, porque tudo. Mas depois da receita médica que em pressas pressurosas vai aviar, ela cura-se e melhora de imediato e não se fala mais nisso. Seja o que for que teve, já não tem. A vida volta ao de antes. Mas se ele adoece, ai que está tão doente e não pode fazer isto e nem aquilo. Na verdade não pode fazer coisa nenhuma das poucas que antes fazia e ela arca com mais uma criança em casa, cheia de queixas, aí não que me dói e vê lá se não estou com febre, a testa fresquíssima e o termómetro a marcar 36,5. E que me dói aqui e esfrega lá, e é que ali também tenho dor, e nunca estive tão mal. Enfim, a doença dos homens é o purgatório das mulheres.
Que diabo acontece às mulheres que eu conheço para aturarem tais espécimes. Contudo, as separações vingam  por motivos mais esporádicos como haver um terceiro elemento metido ao barulho ou os adorados cônjuges jogarem o ordenado em noitadas de tudo a que ele chega por junto. Quanto ao primeiro motivo, a existência de um terceiro elemento poderia até ser útil, constituir alívio, sempre é menos uma função, ficam mais folgadas. Mas em vez disso, ofendem e arrufam se outra lhes disputa o macho. Não se ofendem do disfarce de escravatura acostumada por anos e anos.  Ah, pois, o amor. O ciúme que só  quem ama sente. O ódio que tudo seca e não permite em redor uma erva verde. E mais todos os sentimentos e emoções que entretêm os homens.
As mulheres que eu conheço são estúpidas. A sociedade estupidificou-as desde sempre. Algumas – não assim tantas como isso -, com conhecimento próprio e, portanto, ainda mais esparvecidas.  
Temos de esperar nos vindouros. Que sejam outros. Ou não há remédio. Fósseis são fósseis. Ignoro é se a educação que lhes damos não está ela também fossilizada.

domingo, 12 de agosto de 2018

As Mulheres que Eu Conheço


O mundo das mulheres que conheço é herança de pobreza encardida e séculos de canga. Nele, os homens, apesar do incontestado  poder e domínio, são erráticos e relativos e não permanecem substancialmente. Ajudam na procriação; carregam, a meias ou sozinhos, um ou outro objecto mais pesado; vão ao café e demoram-se em conversas de amigos; fazem um recado caseiro só por desfastio e fama de ajudar e, por vezes, são  encarregados de educação dos filhos para assinatura ou mostra em reuniões escolares. Em amor, os mais cordatos fazem uso de ternuras avulsas que são caminho de urgência amorosa e um “não” desperta asperezas e amuos de duração indeterminada. Os mais, ou tomam de apetite o que consideram que o casamento fez seu, sem discussão, ou, mais raro, contrariam a ancestralidade e em tudo agem por amor. É verdade que eles trabalham fora de casa, mas elas também. Como é verdade que são elas quem faz a gestão caseira incluindo determinar, comprar e confeccionar as refeições. Os homens chegam fartos e cansados do trabalho que, vá-se lá saber porquê, é sempre pior que o delas. Elas não, elas chegam e enfiam uns trapos. Em seguida, vão para a cozinha preparar jantares e almoços, tratam dos filhos e vigiam-lhes os estudos, lavam-nos e preparam roupas e lancheiras do dia seguinte. Jantam à pressa porque ainda falta isto e aquilo, não vêem TV, não se sentam na sala, não sabem de outro mundo. A sala é o reino dos homens que, sendo bons maridos, não saem à noite, vêem TV. Os homens deitam-se cedo porque o seu trabalho exige e precisam descansar. Elas ficam a remendar o fato de treino do mais novo, a regar as flores que estão quase mortas de secura, a fazer aquele bolo que a do meio pediu para a quermesse da escola. Quando elas se deitam, eles ressonam. Elas caem num coma que o despertador interrompe. É outro dia. (cont.)

sábado, 14 de julho de 2018

Caminhos da Cal


Portugal está cheio de vivendas e podemos determinar as datas de construção pelo modismo de cada uma. No tempo de construção  da casa, imperava o azulejo. Meu pai, que fez nascer um monte onde antes era espessura de mato, sobreiro e répteis a eito, olhava a cal que resplendia a invejar, “O Zé Custódio é que teve juízo, a casa é toda forrada a azulejo, nunca precisa caiança”. A esta afirmação, nascia-me a imagem de uma casa guarda-jóias, onde as pessoas mal respiravam, o azulejo a tolhê-las falho de porosidade.  Mau grado o trabalho, rezava afincadamente para que o azulejo fosse caro, jeito infalível  de não chegar às nossas paredes.
Por vias que o destino e as modas engendraram, o nosso monte, erguido em  claridade e  barras azul-turquesa, respira hoje a densidade da cor em azul-real. Se nele me fixo, logo me vêm à memória os anos setenta e a odisseia de verão que nos deixava exaustos e felizes após a conclusão. Prontos para o campismo, ironicamente, sempre na praia.
Acontece que, se o trabalho braçal aperta, logo em reflexo de mola me salta zanga e mau modo. É uma falta de paciência de tudo, muito desinspiradora. Encrespo, devenho ouriço. Na verdade éramos apenas seis braços de trabalho: eu, minha irmã sete anos mais nova e meu primo que passava férias. Dos meus irmãos pequenos queríamos distância. Depois do pequeno almoço, ordenava que fossem brincar longe e por lá ficassem até à hora de almoço. E, disfarçados de pedintes miseráveis (vestíamos andrajos que havia no sótão e depois atirávamos fora), embrenhávamos o pincel nas paredes, numa linguagem de tu por cima e eu por baixo, e esquecíamos o horário no desejo de “dar a primeira demão” antes de almoço. Mas o verão. Mas a sede.  Mas a água escondida no bojo das bilhas de barro içadas no poial. Meu pai sabe Deus onde, e eles a uma insistente janela aberta, ó mana temos sede. Ou, ó mana estamos cheios de fome. Ou ainda, ó mana caí ali nas pedras, anda lá pôr-me água oxigenada e mercúrio que isto está-me a doer muito. E eu impaciente, pincel acima e abaixo, a descer e subir de um escadote toda afogueada para não haver atrasos com o pincel do baixio, ó gaiatos de um raio, saiam daqui, já não os posso ver – e num desabafo -, aguentem mais um bocado, poças. Eu que tinha o almoço por fazer e, de vez em quando, me adiantava para poder ir até à cozinha dar mais um avanço na refeição, a tempo de voltar antes de atraso irremediável que a secura das paredes era saudade urgente, sugava a cal ao toque. Meu primo sorrindo, regador em punho a dissolver pingas e a esfregá-las, impedindo agarrações de cola ao cimento do poial, que o ar seco e quente tem sua inclemência.
Numa manhã particular, os dois garotos mais endiabrados ou eu mais retorcida do humor, visitas e queixas choviam em intermitência. Depois de muita impaciência latejante, de gritos a enxotá-los, meu primo antecipou-se-me. Largou o regador e o esfregão e, mão esquerda aberta sobre a totalidade do rosto, pegou o garoto por um braço e pô-lo a distância peremptória, sai daqui que já não te posso ver – e abria muito os olhos risonhos por detrás dos dedos reiterando -,  não vês que não te posso ver?!
E nós duas rimos e largámos os pincéis. Eu para a estupefacção do garoto, afinal queres o quê. E ele tolhido de inesperado, fixo ao chão, em voz temerosa, podias-me dar só a água. Eu, palavras de abrir cancela, vai lá para cozinha, não precisas ficar aí especado.  
Gesto e palavras autonomizaram e permanecem, sai daqui que já não te posso ver.