De
manhã, chega-se à cidade em rompantes de pressa. Mesmo os condutores de
viaturas individuais, de um e outro género, usam perfil sorumbático, fisgado
na competição com outros veículos, como se em vez de um acesso citadino corram o grande prémio. As máquinas passam concentradas em si, a responder
a pedais, alavancas, botões e outros artefactos de que a mão do homem se
socorre – sou o rei da criação, ó pra mim a conduzir – e o ponteiro lança-se a
ultrapassar os dois dígitos e só acalma aos primeiros semáforos.
Ao mesmo tempo, as gares ferroviárias borbulham de ruído e vagas de gente cuspida das carruagens. E cada comboio repete a cena, enchem e esvaziam momentâneas e resta um cão apalermado no cais, rabo entre as pernas numa hesitação de ir aonde, como quem não aprendeu pressas ou conhece afeição. Ninguém olha o vizinho. A multidão segue a apertar casacos e agasalhos e, não fora o semblante fechado, a avaliar pela velocidade de pés, dir-se-ia que caminham em direcção a um bem inefável.
A cerca de cento e cinquenta metros, outra horda mergulha na estação de camionagem que arrota manobras intestinas, exalando dióxido de carbono, resultado de digestões difíceis em corpos de segunda mão que servem os portugueses e são lixo de alemães e outros europeus do norte. Lixo pago. E ainda assim, mais confortáveis que os antecessores nacionais. Foi ali que encontrei Zita do Caco. Como tanta gente, eu surgira de um vómito de comboio apressado e, em força de hábito, empurrei a porta do café junto à rodoviária. Extasiava no sabor e perfume da bica quando uma mulher de meia-idade, apertada em gorro e cachecol sobre impermeável escuro, me atravessou a retina. Contudo, o ponto mais saliente da sua figura era o apêndice que transportava, um saco que a repuxava toda para o lado, balança em desequilíbrio, a mão em garra sobre a grossura de duas asas maciças que destoavam. Pousei a chávena, coloquei as moedas sobre o balcão e atardei-me por momentos a impregnar do aroma de café e pão torrado, contente do calor olfactivo que a casa resplendia, irrisória promessa de um dia sem nuvens. Entretanto, ela, os pés numa indecisão de ora à frente ora atrás, parava o corpo e arreava o peso a interpelar um transeunte que apontava a rua em frente, junto à igreja da Misericórdia. Maquinal, a mulher abanava a cabeça, olhos compenetrados na amplitude gestual do interlocutor, a mão colada na asa do carrego. Escorria-lhe da figura o insólito de objecto fora da prateleira. Talvez os gestos fossem comedidos em demasia. Ou seriam as pernas e pés a denunciar-lhe o receio, que muito nos revela a forma como pisamos. Retomou caminho e já esvanecia nevoeiro dentro, na esquina da igreja, quando me decidi a sair. Ainda a fechar os últimos botões, empurrei a porta e estuguei o passo, queria apanhar o barco das oito e quarenta e cinco.
Ao mesmo tempo, as gares ferroviárias borbulham de ruído e vagas de gente cuspida das carruagens. E cada comboio repete a cena, enchem e esvaziam momentâneas e resta um cão apalermado no cais, rabo entre as pernas numa hesitação de ir aonde, como quem não aprendeu pressas ou conhece afeição. Ninguém olha o vizinho. A multidão segue a apertar casacos e agasalhos e, não fora o semblante fechado, a avaliar pela velocidade de pés, dir-se-ia que caminham em direcção a um bem inefável.
A cerca de cento e cinquenta metros, outra horda mergulha na estação de camionagem que arrota manobras intestinas, exalando dióxido de carbono, resultado de digestões difíceis em corpos de segunda mão que servem os portugueses e são lixo de alemães e outros europeus do norte. Lixo pago. E ainda assim, mais confortáveis que os antecessores nacionais. Foi ali que encontrei Zita do Caco. Como tanta gente, eu surgira de um vómito de comboio apressado e, em força de hábito, empurrei a porta do café junto à rodoviária. Extasiava no sabor e perfume da bica quando uma mulher de meia-idade, apertada em gorro e cachecol sobre impermeável escuro, me atravessou a retina. Contudo, o ponto mais saliente da sua figura era o apêndice que transportava, um saco que a repuxava toda para o lado, balança em desequilíbrio, a mão em garra sobre a grossura de duas asas maciças que destoavam. Pousei a chávena, coloquei as moedas sobre o balcão e atardei-me por momentos a impregnar do aroma de café e pão torrado, contente do calor olfactivo que a casa resplendia, irrisória promessa de um dia sem nuvens. Entretanto, ela, os pés numa indecisão de ora à frente ora atrás, parava o corpo e arreava o peso a interpelar um transeunte que apontava a rua em frente, junto à igreja da Misericórdia. Maquinal, a mulher abanava a cabeça, olhos compenetrados na amplitude gestual do interlocutor, a mão colada na asa do carrego. Escorria-lhe da figura o insólito de objecto fora da prateleira. Talvez os gestos fossem comedidos em demasia. Ou seriam as pernas e pés a denunciar-lhe o receio, que muito nos revela a forma como pisamos. Retomou caminho e já esvanecia nevoeiro dentro, na esquina da igreja, quando me decidi a sair. Ainda a fechar os últimos botões, empurrei a porta e estuguei o passo, queria apanhar o barco das oito e quarenta e cinco.
Percorri ruelas ensonadas e friorentas, lamentosas da sua estreiteza, suspirosas
do sol que faltava e entretive-me a contornar viaturas quase coladas umas nas
outras e encostadas a passeios onde gente tão apressada como eu se deslocava
aos repelões. Atravessei a Luísa Toddi
já com três filas de viaturas e autocarros nos semáforos e dirigi-me
para a beira rio, mau grado o vento húmido que soprava.Junto
ao porto, o de sempre: a azáfama matinal de guindastes e barcos, pessoas
diminutas na dimensão das gruas. Dirigi-me ao cais de embarque para viaturas. Os
veículos, quais garotos bem comportados, alinhados em bicha silenciosa e
ordeira, aguardavam boleia para a travessia. Comecei a ultrapassá-los. A
manhã não convidava a vidros abertos e os condutores, pintos no quente do ovo,
olhavam brevemente o barco que atracava, bocados impondo-se aos olhos, a atravessar a névoa: uma risca laranja que se interrompia a meio como se ao pintor faltasse tinta, o agudo da proa, uma incompleta fiada de janelas. Depois, desviavam a atenção para a rádio, mudavam a frequência, ouviam o humorista de serviço e esfregavam as mãos uma na
outra a espantar a frialdade.
Ao lançar da ponte, a pressa automóvel precipita e o barco inicia a desova. Ainda não saíram os últimos veículos e já a
fila começa a mover-se no cais, primeiro lenta, depois em rodado regular. Oiço o
deslizar dos pneus no alcatrão molhado, depois a zunida na ponte de ferro e o
breve estalido dos veículos na transição da ponte para o barco. Começo a
correr, sei que a arrumação de viaturas é rápida. Obedientes, os condutores ajeitam-nas em lugar que a mão do funcionário destina e salvaguardam espaço a vindouros.
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