Para a maioria dos homens, o curso da vida
depende do livre jogo entre vontades e acasos. Quer se ajuíze apenas acerca de
vontades humanas, ou nos espraiemos por quereres sublimes e divinos tão
abrangentes que mudam nome ao dito acaso. O certo é que a crença na vontade,
teológica ou racional e sensível, subsiste; ora alargando, ora apertando a
malha fina da liberdade. Portanto, nenhuma das teorias será universal e outras
virão, a explorar até ao tutano a liberdade que temos, sinal da que nos falta.
Entretanto, a vida descompadece destes humanos entreténs e vai rodando na
mesma.
Ora o meu encontro com a cidade do Porto
urdiu em vagar pontuado de apetites e acasos. Também de vontade de razão, vá.
Porque a sedução é participar – querendo ou não - da trama dos acontecimentos,
ser fio, ponto, elo.
Sem pena nem paixão, fomos incógnitas
durante mais de trinta anos. Até me ocorrer conhecê-la, talvez em breve
respirar de férias ou fim-de-semana aprazado. Esse olhar originário e primeiro
segurou-me à certeza de que não sermos estranhas, que tudo no Porto me soube –
e ainda sabe - a costume e uso. Uma sensação esquisita, como se o
houvera habitado noutra encarnação. Salvaguardando as singularidades dessa virginal e desafectada visão, quase pura, pouco aprendi da invicta para além de
um dejá vu que colou nas principais artérias e pontes. As
pontes e seu sortilégio de chão que é e não é, altura a despedir sobre a
fundura de água corrente; elas me precipitam no fascínio do medonho que a
geometria concisa das casas a aproximar desvia mansamente. Nesse momento irrepetível, tão bonita a cidade insinuada ao olhar, ainda isenta de relações de
pertença. Ela apenas. De pé, na nossa frente. Mostra de casario impenetrável e
sem brechas, que encavalita ordenado, num jeito repetido de ângulos rectos em
mero aceno ao viajante. Um olhar a direito.
Observo-a hoje e, com a idade – minha e
dela -, deveio um tudo-nada terna, o burilado de tempo a arredondar-lhe os
ângulos. Que, no mais, não denoto exibição ou vaidade e nem se desfaz em simpatia e agrados. É como é. Sem subterfúgio ou artifício. Desconheço-a sob a chuva,
fustigada de vento. Imagino-a agreste, posta em frigidez natural de arrepiar, o
lado soturno abotoado de sopé a cume. E tudo isto me veio no interior do táxi, vidros descidos, o calor a corrê-lo, cabelos fugitivos em demanda do para além – a minha parva timidez em solilóquio interno, os táxis do Porto não
terão ar condicionado. Enquanto a inquietude dos olhos procurava o taxímetro, a
torre dos Clérigos afobada, a desprender exuberâncias de calor, saturada de
turistas formiga, olhos de desânimo nas árvores ali tão perto, mas por que não
hei-de eu ir até ali deitar na sombra a cabeça do relógio, que martírio esta
vida no mesmo lugar, debaixo de sol ou chuva. Tanta sindicância para isto e
aquilo, e ninguém a defender as pedras. E numa queixa que me perseguiu na aragem
de velocidade, ai quanto me dói este ar pesado de, até cair, ser a mesma no
mesmo lugar. Eu já aziaga dela e de um quarenta e cinco qualquer que tomei por
preço, o quêêê…não me diga que já lhe devemos quarenta e cinco euros. O
taxista, bigode bem-humorado, do meio do vendaval, ó minha senhora isso dava
para irmos passear em Gaia de ponta a ponta e virmos. E eu quase tentada ao
convite, o hotel que esperasse. E logo em recuo de instinto, não, não, revendo
o cheiro a vinho das ruas ribeirinhas e escuras de Gaia, agoniada de caves e
garrafas, e mais daquele ar de esforço imparável que ressalta nas
pedras da calçada e nos semblantes, massacre de uvas e alguns homens a alombar.
Apetecia-me o hotel. Animal de hábitos, sabe-me bem revê-lo e ilude-me a
simpatia comprada dos seus funcionários.
Afinal, o passeio dentro do mini ciclone
não chegou a dez euros. Ora bem. E não sei porquê (mas pode ser porque tinha
ligado a resmungar e um tanto alterada de voz) fizeram-nos um agrado especial e
deram-nos um quarto xpto. Bué bom J.
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