sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Um Agosto em Itália

Uma manhã dirigimo-nos a Mântua (Mantova). E almoçámos a primeira pizza; também a mais barata e melhor, saboreada numa esplanada da praça principal. Nós e as nossas máquinas fotográficas, todos seis largados ao descanso na sombra parada de Mântua que almoçava recôndita, em seu hábito de recato protegido pela Rotonda di S. Lorenzo, a igreja mais antiga.
Toda vertida na preferência por cidades de província, rendi-me a Mântua mal a avistei espanejada em seus lagos artificiais que são afinal braços do rio Mincio. Apeámo-nos agradados do lago, enquanto as pernas, sangue a alvoroçar, apalavravam o caminho conversando-lhe minudências de ténis e areias portuguesas. Como será viver rodeado de água e ter um centro histórico inefável e plano onde a bicicleta faz casa. Talvez os quotidianos de Mântua ignorem o privilégio. Ou o bendigam. Que uma tal geografia é por força pregnante, ensopa a alma. A verter-lhe um sentido estético. O amor à história. O apego ao que é antigo. E velho. Talvez haja neles um olhar que nos falta, áridos que somos, famintos do que é belo. Porém, é certo que a nossa pequenez nos dá magnificates que outros não atingem, o olhar acostumado à beleza. Quem sabe o nosso campo de azinheiras endoida mais por ser ele. E por essa mesma qualidade nos avultem olhos de  expert e alma de inquebrável aprendiz. Em nós. Que nada sabemos.
Caminhámos à canícula, rasando uma minissaia de sombras até ao Palazzo Té. Que, em paciência de recorte fidalgo, nariz ao alto, nos esperava ao fundo de uma avenida. Larga. Arborizada. Soalheira, apesar do desenho de sombras folhudas para que atirámos o nosso cansaço de três da tarde, soltando chapéus e óculos que desabafavam em surdina, acachapados de calor, ora esta, estamos condenados ao Alentejo perpétuo.
Mas os palácios sabem receber. Estendem-nos mãos cheias de salas bonitas de tecto e paredes. E logo ficámos conquistados por este e pela sua história. Ora a história de Mântua conta que a dinastia dos Gonzagas lhe presidiu os destinos durante séculos. E que um deles – Frederico II – se perdeu de amores por uma dona Isabella Boschetti e logo pediu a um arquitecto-pintor que planificasse o seu rincão amoroso. Portanto, mandou edificá-lo para os seus rendez-vous, espaço de lazer fora de portas, onde a beleza e talvez o amor fizessem esquecer responsabilidades. Não há coisa menos discreta. Donde, partindo do princípio que o Gonzaga não padecia de doença mental e nada consta nesse sentido, se intui que os amores de um senhor não eram vistos como os de qualquer ser mortal. Os grandes tinham o seu patamar de acima de tudo. Mesmo das convenções. Porque o palácio Té é magnífico em seus pormenores e repleto de pinturas, facto natural quando o arquitecto tem a sensibilidade de um pintor que foi aluno de Rafael e o dinheiro corre. Há o salão dos cavalos (e eles parecem saltar da parede), o da psiqué onde se veem os deuses em sua satisfação de Olimpo e o salão dos gigantes que brotam, descomunais, duma balbúrdia qualquer, e parecem despencar a qualquer momento sobre o pobre visitante.
 Imagino que a Boschetti terá ficado radiante com tal espavento. Agrada-me a ideia de dez anos a alindá-lo (que idade teria a Boschetti quando o terminaram) e ela a visitá-lo e a descobrir o que tinha de novo (que era sempre muita coisa) e a bater palmas de contente por mais esta coluna ou aquela deusa. Ou o diabo a sete. Espero que, no meio de tanta fartura de arte, não se tenham esquecido de gostar um do outro. Já agora. Que o palácio merece. Isso sim. E afinal Frederico II até lhe deu utilidade política e social, o palácio ficou ligado a acontecimentos e tratados importantes. Ou seja, não serviu só o folguedo. Outrossim me parece que Frederico II e Isabella conheciam a natureza humana e o peso de ambiente propício. Asseguro: o Palazzo Té propicia.
Falta ainda dizer. Sobre o pátio interior. Sobre as carpas a engordar, soltas na corrente, matronas sérias e críticas que nos miram desdenhosas, a boca a hostilizar-nos no continuum de abrir e fechar. E outros etecetras. 

Observação a quem visite palácios ou o que quer que seja de desconhecido: convém munir-se de olhos inocentes. 

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