Numa mundividência mapeada a rigor, desatámos a subir, curva atrás de curva,
em busca da cascata. O ar afilava o perfil e a paisagem crescia vertical, cumes
em desafio. E nós contritos do pecado de olhos passageiros. De súbito, a
placa de Varone. E logo a da cascata. Ali nos apeámos, eu em ignorância total –
de cascatas conhecia o que a TV mostra do Brasil –, curiosidade acesa, ia
presenciá-la in the flesh. Como de
hábito, nada de concreto e antecipado. A alma, que às vezes se me arrasta de
muletas, tem destas adolescências, gosta da surpresa. Prefere esse olhar
virgem, brancura de nada ser que risca mais fundo. Comprámos bilhete e ainda se
me pendurava o estereótipo das telenovelas, um barulho manso em queda de água
que arredonda num lago mais ou menos azul e transparente. Talvez o ambiente o tenha
catalisado. O lugar era pródigo em flores e espécies vegetais, havia um bar e, semeadas
aqui e ali, mesinhas e bancos agradáveis que aproveitámos para nos dessedentar. Rodeado de montanhas, aquele jardim trepador era um pleno de paz. Quem sabe, estarei apenas a desculpar a imposição do imaginário que tanto
me inibe a realidade, facto que, note-se, não entendo de má reputação. Entrámos e desvaneci com as orquídeas a
receber-nos, as ruas em mantos florais ladeados de árvores e arbustos exóticos.
E, de encanto em encanto, caminhámos para a cascata. Que, em mim, continuava sendo
aquelazinha mesma das novelas. Nada, mas mesmo nada, me fazia supor que a água
se despenhava das alturas por uma fenda natural que esventra a rocha. Estranhei
aquela subida a pé, um degrau após outro. Perguntei. E o Luís, vamos até à nascente. Bom.
Continuei subindo já sem grandes alardes de imaginação para uma nascente de
cascata sem referente, que as novelas desgostam de nascentes. No
primeiro estádio da subida, munido de gradeamento, parei a admirar e, por imitação, fotografei; a
água, iluminada e colorida resultava bonita, mas em nada se parecia consigo. E
fotografias onde tudo parece outra coisa não me movem. Havia gente debruçada aqui
e ali, admirando aos cliques a água que escorria a receber-nos já com algum
ruído de queda e ressuscitando-nos por inteiro num banho benfazejo,
pulverização de gotas meio difusas, que desvaneciam em espectáculo de holofote colorido. E em nós
um agrado de olhos que é refrigério, a pele aplaudindo, farta de sufocos e
excessos de suor, isto sim, é viver. E depois, o lugar da cascata é lindo. Inclui
o jardim botânico que todo se estende em languidez luxuriante de cheiros e
cores, e música ambiente – o ímpeto de Wagner na cavalgada das Valquírias faz pendant em sonoros de queda de água.
Farta dos meus assomos fotográficos,
avanço para o segundo nível. À medida que a escalada me aproxima
da nascente, noto que a natureza acelera e transfigura: o que era chuvinha e aspersão de
gotas frescas torna-se tempestade raivosa, um ruído ensurdecedor de água a
despenhar a toda a brida, em ímpeto de terrífica demolição. Estaco em
cataclismo, a água a encharcar-me de viés, mero ricochete da pedra. Enfim,
decido-me, agarro o comprimento da saia que pendura chuva e resolvo correr um
corredor sob a tormenta, até ao próximo gradeamento. Sentindo-me no olho do
trovão, atravesso dois ou três metros de uma tempestade cinematográfica, mas
real. Lá no alto, a iluminar-nos, o olho de dragão espreita na fenda por onde a
água enraiva, zangada de morte. Olho para cima aterrada e, sobre o ribombar
aquoso, decido num grito de alarme, para a figura do Luís que mal diviso, Luís
eu já não avanço mais; tu e a Céu podem subir, eu espero aqui. E o Luís ainda a
correr no temporal, nikon a tiracolo,
óculos pejados de gotas a escorrer, achega-se a olhar-me meio divertido, já não
podes ir mais, ninguém pode, olha ali. Só então reparei que estava no último
miradouro, com um número minguadíssimo de pessoas (dois homens, ele incluído).
Restava-nos voltar sobre os passos.
Que nome tem a decisão que ocorre desnecessária?!
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