A treze de Julho terminava a escola e o tempo voraz arrastava-nos para outro
mundo. Esquecíamos a mala num canto de casa, a professora evaporava e
começávamos três meses de diferença. Fora do parentesco escolar e destituídos
do seu istmo relacional, devínhamos estranhos uns aos outros. Se o acaso nos
cruzava na mercearia, dávamos tímidos adeuses ou aproximávamo-nos a medo, as
mães a empurrar-nos, vai brincar, deixa-me as saias. E o corpo reticente, dedos
fincados no bordo das tulhas, o empregado de olhos na alfarroba partida,
mãozinhas à frente, mãozinhas à frente.
Férias
era o tempo em que as crianças, espevitadas pela pressa dos adultos, cresciam
sem brandura e amanheciam cedo. Nessas
madrugadas de Verão, enfiávamos a roupa no escuro atrapalhando botões
estremunhados, engolíamos à pressa uns goles de “café-de-pé”, dentávamos uma
côdea dura e saíamos para o mundo a clarear. Estar de férias era ter lugar de
destino na prateleira da vida: uns frequentavam a escola paga da menina
Ermelinda que os entretinha o inteiro do dia por um preço irrisório, enquanto os pais trabalhavam; outros seguiam
para casa de familiares, avós, tias, parentes, de onde regressavam à tardinha quando
já havia voz em casa; uma percentagem bastante razoável de garotas, era cativa do
género, tomava conta de irmãos mais novos, lavava, varria e limpava, o mundo
familiar a impor-lhe alíneas exigentes e a fazer força para ignorar-lhes a
idade, as mãos pequenas e a vontade de brincar. Mas eu, Lídia e Luís jogámos
noutros campos. Enquanto pais e irmãos trabalhavam, os meus amigos iam ficar sozinhos
em casa. Ela hasteava bem alto a bandeira
de fiscalização de uma tia, antevendo
liberdades irrestritas, a tia tinha seis filhos e tanto afazer que só daria por
ela se a casa ardesse e notasse os rolos de fumo; Luís ficava entregue à vizinha do lado, uma velha
encardida e mal cheirosa que brigava com a mãe dele semana sim semana não e nem
de si tomava conta. Em contrapartida, minha mãe fizera orelhas moucas aos rogos de me deixar em situação idêntica. Portanto, o destino
apresentava-se nebuloso. Estava-me destinada a casa da madrinha-velha que residia
numa aldeia próxima e por lá me quedaria até terminar a contrata de meus pais.
Madrinha Carmelita via muito mal apesar dos óculos redondos de tartaruga que
lhe aumentavam os olhos e as rugas. Se a fixávamos, parecia uma égua
envelhecida, olhos muito ampliados e pestanas de metro. E de tal modo o seu
rosto assustava os bebés e as crianças pequenas que, em vez do papão ou do velho
do saco, algumas mães ameaçavam maldosas, olha que chamo a Carmelita. A velha
tinha uma expressão séria e eu impressionava na bengala trôpega e nas escaras semeadas
pelo rosto, braços e pernas, mas não a temia. Quando conversámos sobre as
novidades para férias o Luís disse meio pensativo, essa velha mija de pé, nunca
viste? E eu nunca vira. Nem experimentara. Portanto resolvi-me. Molhei combinação e cuecas, as tristes pernas
a escorrer de alto a baixo. Com medo e vergonha de minha mãe, vi-me forçada a aguentar o desconforto até secar. Mas quando contei a peça, o Luís sabichão, parva, não vês que ela
não usa cuecas e abre as pernas. E a Lídia a ajudar, as velhas fazem quase
todas assim, és uma atada não vês nada, a gente sabe porque as espreita.
Comecei a entender que pensávamos diferente porque vivíamos diferente as mesmas
coisas, eu não detinha qualquer interesse por velhas a fazer chichi - termo que
soltava a ironia pesada dos meus amigos - e achava falta de educação ir
espreitá-las. Mas reconheci que sabia muito menos que eles.
Mau
grado a despedida difícil de minha mãe, o abandono dos amigos, a eczema de outro lugar, o receio de
viver com uma pessoa de que conhecia bocadinhos em hora de chá com fatias douradas, as nossas primeiras férias grandes
foram surpreendentes.
Ao
comprimento dos dias de calor, vinha-me a imagem de minha mãe e julgo que foi
nessa altura que aprendi a tristeza doce da saudade solúvel. Sem inveja, imaginava
os meus dois amigos, cada um em sua casa a satisfazer apetites de liberdade solitária. Entretanto, pouco a
pouco, fui descobrindo madrinha Carmelita. E a velhota era bem mais do que “a velha que mija de pé”.
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