Primeiro
foi uma noite em que adormeci a desoras, um comprimido a entrecortar com rangidos
inquietos de vida a esgarnar a contragosto. E o corpo a deslembrar. As mãos, se
calha, já nem as tinha (para onde emigra o corpo se dormimos, que deixa de
pesar-nos), havia um ligeiro de pés no fundo muito ao fundo, de certeza a
léguas de mim, o pescoço na almofada de mau estar, e mais nada. Imerso num
certo torpor, o meu pensamento insistia naquele som cavo a tracejado, “tão
doloroso, parece um tecido a rasgar contra vontade; deve ser impressão minha,
melhor dormir”. E, no que me pareceu o momento seguinte, os comprimidos são
assim, engolem a noite num ai, logo a vida impôs o seu estar matinal: agreste;
a luz a atravessar-nos qual lâmpada progressiva, pessoas estremunhadas a ganhar
velocidade e a recuperarem-se. Eu, contente de mim inteira, a verificar-me no
global, ah, está cá tudo, as mãos, as pernas, o tronco. Da janela, a estrada
ganhava acelerações de véspera de Natal, compradores de última hora em busca de
presentes retardatários e pormenores em falta na ceia. Entretanto, o ramo
tombou quase em silêncio, num amortecido de insuspeito desgosto. Na árvore, a
chuva escorria ao longo do rasgão de nudez clara. E havia uma mole de verdura vicejante caída sem arte sobre a rua, a impedir-me o carro. E a chuva. E o
vento. A árvore órfã de si, desatenta da ferida intestina e sem curativo, em cuidados com a
pernada, e agora? Mas o ramo inerte, trambolho ainda em uso de cordão umbelical.
A precisar ser retirado do caminho. A minha estupefacção quando, “mãe anda aqui
ver uma coisa”, e o volume de metade da árvore no chão. E fizeram-me sentido os
gemidos nocturnos.
Depois veio o tempo dos doces em
ponto, dos bolos fofos, das tartes vistosas e de apetite. Chegou a tarde. E, a
mesa dos doces, repleta e esquecida, deu lugar a tempero de carnes e
tratamentos de bacalhau e entradas. Horas de fogão. Ele exausto de calor e
combustão, zonzo de aromas e sabores, enfadado de pingas, quando é que isto
acaba. E a chuva lá fora. Pertinaz. Impeditiva. Eu ao fogão com a memória, as
visitas sem chegar, à espera de uma aberta no temporal. Um aviso a minha mãe,
cuidado não escorregue, o chão da cozinha está húmido; vá, sente-se aqui
neste banquinho alto a fazer-me companhia, converse um bocadinho comigo. E ela
sentou-se de frente para a prateleira onde tenho o livro das receitas e, num
suspiro desvanecido, ainda o tens. E eu só um sorriso para essa data presente.
E rematou, não cheguei a escrever nada, filha. Eu concentrada, a acertar o lume
da cabidela, pois foi, mãe, mas as duas o sabíamos; quando lho dei a mãe, fica
para ti, filha; se a mãe puder, começa-o; passa-te uma receita ou duas - virei-me para ela -. E as
duas sabíamos que isso não podia haver. A minha mãe meia triste, não te ensinei a cozinhar…Abracei-a,
o mais difícil não foi isso, mãe. E ela numa fundura de olhos, eu sei filha, sei tudo.
E
ficámos por ali conversando. De vez em quando, os amores perfeitos amarelos,
fustigados por vento e chuva, temos a cabeça feita em água, estamos aqui
estamos a desistir da floreira e partimos para destino incerto. E eu com a
colher de pau na mão, não, não; não me façam isso, vocês são a minha alegria de
subir a persiana. A minha mãe atrás de mim a repará-los, sais à tua avó, o que ela
gostava de flores.
E
quando a família chegou a minha mãe, vou ali. E ficou um cheirinho de violetas.
Então,
eu para o fogão: pronto, acabámos; estás um bocadinho velhote, meio
entupido, mas não te portaste mal de todo. – desapertando o nó do avental - Não te chateio mais.
E
fui para a sala ser dona de casa e participar da consoada.
Tarde
da noite, recebi um livrito de Herberto Helder porque os filhos me sabem mais
ou menos. E ficámos os três à lareira, a falar de nada, até ser tão tarde que a
dor de cabeça me insistiu e quebrou. Contudo, o pequeno almoço apanhou ainda a noite
escura. Matutina, fui ler a Visão da semana passada de que o tricot me desviara.
E alegrou-me que Lobo Antunes uma entrevista tão bonita como só ele.
Que
me deu algum alento nesta escuridão de natal. Quando um escritor pensa como
nós, não sei porquê, mas isso faz-nos sentir melhor. Vou guardá-la como a
outras. Mesmo que daqui a uns anos não saiba onde. Ou já depois de amanhã.
Permito-me
alguns reparos seus que só são seus porque ele os disse; eu e talvez tantos
outros, comungamos-lhe o pensamento:
A gente escreve para
gostarem de nós.
A amizade é como o amor, a
gente encontra uma pessoa e fica amigo de infância.
A
amizade que mais prezo nele, a de Cardoso Pires:
Cardoso
Pires : “eu sei que sendo Pires não posso
ser bom escritor mas tu és e gosto muito de ti.”
António
Lobo Antunes: E foi assim que ficámos
amigos de infância. É assim: instantâneo e absoluto como o amor. (…) o amor é
tanto, que a gente fica sufocada de paixão e nem pensa em sexo, ficamos a olhar
apenas, só o privilégio de poder estar a olhar…e existe aquela sensação de que
se tocar vou estragar, porque posso fazer ali uma nódoa, um amolgão, qualquer
coisa…Ultimamente acho que é uma honra tão grande estar vivo…E um acaso.
E
é mesmo um feliz acaso estar vivo. Uma honra.
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