A
Gulbenkian é um lugar onde a alma ajoelha em gratidão. Pelo descanso auditivo
da água, aqui e ali, a correr de manso, rãs que coaxam, vida animal com espaço;
pela beleza onde os olhos se espreguiçam; pelos espectáculos e actividades em
cartaz.
Gosto-lhe
das raízes de árvore, braços legítimos agarrados ao lugar; dos batráquios nos
lagos a olhar-nos desorbitados e fixos, imersos na recôndita paranoia que os
isola; dos recantos clorofílicos e penumbrosos onde namorados inodoros se
afligem de paixão. E tenho uma pena redonda de nunca ali os meus passos sem
expressão, sapatos a deambular em cegueira completa de quarteto, avanços e
retrocessos, hesitações e paragens; e tudo isto só deles, que o não saberia eu.
Mas sei. Sei a medida da força com que piso; e, na Gulbenkian, é leve. Se
trabalhasse ali próximo, faria grupo com quem está de tupperware em punho, a mastigar impressivos de relva; rodeada de
flores, insectos e passantes, esquece uma pessoa a maldade ensanduichada do
almoço.
Por
todas estas razões e mais outras não explicáveis, desloco-me por vezes à
Gulbenkian. Para a não esquecer, creio. Cheia de desculpas palermas e
culturais. E desta vez foi a Filosofia. Mesmo. A despeito da minha latente e
até insistente ignorância, a Filosofia move-me. Estava a conferência a que
assisti ligada ao ciclo de Amadeo Souza Cardoso, em curso ao longo do mês de
Novembro, no Centro de Arte Moderna, vulgo CAM. Pensei que iria ouvir uma
relação entre a voz da filosofia e directrizes do próprio Amadeo. E talvez. Digo que talvez porque comecei pela resmunguice –
pagara 5€ para assistir; e porque a oradora Filomena Molder faltou, os bilhetes
foram grátis. Ora bem. Não gostei e resmunguei com toda gente que encontrei no
caminho da minha cadeira. E depois, o responsável, (com olhos de fuzilar
pelintras como eu), que podíamos, querendo, reaver a verba. Fiquei contente com
a decisão, mas não tive coragem de ir pedir o reembolso. Sou bem mais
descorajosa do que se imagina. Ou eu me imagino. Pensei que parecesse mal a
Amadeo, pintor incomparavelmente valioso.
Comecei
por me sentar um pouco atrás por não apreciar muito o ambiente humano. Deve ser
preconceito, mas pessoas demasiado alinhadas bolem-me com o ego. A bem falar,
deve ser com a inteira estrutura do psiquismo e arredores. Então, fiquei de
frente para um quadro de Amadeo que aprecio e esqueci-me do resto; fluí. Só que,
a despeito de tudo, havia mesmo uma conferência e um orador. Inglês. Sem tradução
simultânea. A erguer pontes entre Bergson e a sua durée (duração) e o cubismo (isto entendi). Que ilustrou com
quadros cubistas que eu conhecia de outros lugares e museus; e até das aulas de Rui Mário Gonçalves.
Sem referências ou alguma semelhança ao cromático exaustivo de Amadeo, o seu
delírio de formas, a sua insinuante e peculiar pintura de exuberância que desbunda das telas. Lendo, o senhor debitou por certo parte de uma tese de doutoramento – professor de estética numa
universidade inglesa – sem preocupação em integrar-se onde quer que fosse.
Estava eu pensando em lhe virar costas quando a meu lado abanca uma dama
abonada em formas e autoridade, puxa do telemóvel ou correspondente – já não
domino competentemente estas modernices tal o súbito de mudanças – e gasta todo o tempo a teclar e falar com alguém; se falava, afastava-se um pouco, mas
continuava audível. Dominaria fluentemente o inglês, mas deve ter entendido
menos que eu da conferência.
Porém,
o melhor estava para acontecer. O inglês terminou a comunicação e estaria
talvez desejoso de ir embora – eu estava – mas levantam-se três cachopas, todas
em ponto de macramé, que é como quem
diz, duas delas sem um cabelo fora de sítio, um vinco na roupa, um pelo de
sobrancelha a desvirar. E foram acompanhar o inglês, cheias de pose.
Apresentadas na mesa, pensei, fico mais um pouco, agora já entendo tudo. Mas
qual quê! As damas falaram sempre em inglês e colocaram dúvidas em e ao inglês; a que ele retorquia muito honrado. E, a páginas tantas, farta da minha colega e
dos seus tiques de comunicação, virei costas àquilo (pois é, pura indelicadeza)
e fui salientemente olhar os quadros e os desenhos de Amadeo. Convicta que ele
não gostaria de assistir uma conferência onde um trio aerodinâmico tentava a
todo o custo que o súbdito de sua majestade o referisse. Pintor que, por certo, desconhecia e não lhe
habitara a tese. E porque os ingleses não são bem o que se pensa deles e é bem possível
que não tenha perdido tempo com um pintor português acerca do qual haveria uma
pessoa para discorrer (seria isso que cabia a Filomena Molder?). Patético. O
fulano não sabia tanto como eu que sou leiga em pintura. Mas, nessa altura, já
eu saltitava pelos desenhos de um Amadeo desconhecido; a apreciar por exemplo um que se chamava “O descanso do cervo” e
tinha o que deve ser um cervo a descansar, deitadinho, mas com o cavaleiro
montado. Ora bolas para o descanso do cervo, pensei. Mas ele com olhos
contentes, e por isso passei à frente; se queria descansar carregado…; e fiquei
pregada na pintura da guitarra. Não sei que iria fazer ali Filomena Molder.
Pergunto-me se seria capaz de dar conta do fascínio da cor.
Depois
de um chocolate quente, regressei contente de Amadeo. E de termos estado um
bocadinho à conversa. Nós dois. Por cinco euros.
PS: ocorreu-me, entretanto, que as três pastorinhas da mesa estariam quem sabe mais aflitas que eu. E daí a força na imagem. Que os ademanes e o brilho dos cabelos e do batom escondia o embaraço de ter de preencher tempo. Coisas assim. Que não melhoram nada.
PS: ocorreu-me, entretanto, que as três pastorinhas da mesa estariam quem sabe mais aflitas que eu. E daí a força na imagem. Que os ademanes e o brilho dos cabelos e do batom escondia o embaraço de ter de preencher tempo. Coisas assim. Que não melhoram nada.
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