Fizeste
anos. No desconchavo dos dias, o teu aniversário apetecia-me. E tudo se
renovou. Um Dia do Pai paralelo. E tu, contente. Porém, a tristeza misturou-se-me
com a noite. Demito-me de porquês, desisto de presságios, tenho raiva a
pressentimentos, não estou nem aí para sentidos que acenam sem existência. Por
isso, descansa, guardei-te contente, feliz na tua eternidade grata.
Quando
os pais se ausentam, há uma solidão agoniada, a estrangular. Por vezes penso como
será quando não estejas de corpo, não haja uma casa tua que foi nossa e mores definitivo
no lugar que alindaste a gosto. Não sei de outro sítio que me receba, onde consiga
espairecer de mim. Nós dois somos tagarelas, mas não nos perdemos em
confidências mútuas, alienamos queixas disto ou daquilo, mas ainda assim
fazemo-nos companhia a contar palermices. E penso em Lobo Antunes a garantir que
as conversas com o irmão João são silêncios. Conversam sem lábios, pálato,
dentes, língua, bochechas... Um junto do outro, comunicação das almas em
proximidade neuronal, corpo do mesmo corpo, mente da mesma mente. Não é assim
connosco, temos uma geração de permeio, espumantes zaragatas com decibéis
insanos de travo odiento. E outros intentos. A verdade é em ti interior e
secreta, os medos perpassam-te na força dos pesadelos e cresceste num mundo de
trabalho. Não aprendeste o sonho acordado. Sei tão pouco de ti…e nem tu te saberás
o suficiente. Não pensas nessas bagatelas.
Porém,
nestas horas em que o sumo roxo das violetas me escorre lassamente, vê tu,
apetece-me contar o engraçado de ti. Apetecem-me os teus involuntários: erros
de gramática, hábitos que não questionaste nunca, distracções hilariantes. São antídoto
caseiro contra o lado venenoso de viver, pedras de um colar de leveza. Uma
espécie de amuleto que acorre ao chamado da memória. Sempre lhes resisti como
pude. Talvez pudor sentimental ou respeito. Mas a memória, como tudo que em nós
existe, é incerta. E, em nós dois, o efémero acelera; em qualquer mínimo
momento pode devir efeméride.
Lembras-te?
A luz eléctrica chegou a Bombel já eu tinha 26 anos; era professora primária há
seis e frequentava o 3º ano do Curso de Filosofia. Ora, no terceiro ano de
trabalho, hospedei-me em Setúbal em casa de um amigo teu. E comprei uma
televisão pequena, ainda a bateria, para ter no quarto e ver as aulas do
primeiro ano do curso propedêutico, na mira de a poder levar para casa, lugar
onde morreu. Nas férias, carregava a televisão e a bateria para Bombel - não me lembro como podia com
aquilo tudo – e víamos televisão na cozinha pequena que eu mobilara com uma
camilha e a toda a largura um sofá castanho de napa chiadora que fazia o nosso
encanto, oferta de uma prima enfastiada de ruídos. Dormias cedo. Madrugavas
para regar, semear, tratar das coisas da quinta. E nós poupávamos a bateria
quanto podíamos porque tínhamos de a pôr a carregar na oficina do Chico – nessa
noite não víamos televisão - viajando no nosso carro de mão que forrávamos com
as sacas do cimento ou das batatas para não estragar o apetrecho. Numa dessas
noites, televisão ligada e já sentados à espera provavelmente de um filme, a
Maria Adélia deslocava a antena para eliminar a chuva do écran enquanto nós três
íamos orientando, “tá pior, tá pior” ou “ parece que desse lado tá melhor,
levanta mais” e outras indicações. Entretanto, de tanta mexida, havia posições
em que a antena já não se sustinha de pé e caía em vôo picado com baque surdo,
“ploc”. E nessa noite foi assim. A Maria Adélia estava a pôr “coisas” atrás da
televisão para fazer uma muleta à dita e nós calados e atentos, ainda assim a
palerma da antena não descaísse um nadinha e nos privasse de novo da nitidez da
imagem. Tu já estavas no quarto. Atentos à antena e a temer que começasse o filme
antes da operação terminada, ouvíamos-te despir em ruído de fundo. Sons
habituais que não desmanchavam a nossa atenção primeira, o barulho das botas a
despedir no chão uma a uma e tu descalço a pô-las no corredor; o ranger breve
da cama, sinal de que te sentavas; o tilintar que agitava as maçanetas quando
penduravas as calças na grade. De súbito,
parou tudo. A tua voz, claramente articulada, um fundo de queixa a tracejá-la
“eh, poças! este sutiã tá-me apertado.”
Esquecemos
as orientações, o filme, a Maria Adélia parou a operação e a antena caiu de
imediato e nós quatro em silêncio de riso, escancarados à gargalhada, olhos
esbugalhados. E antes que um mar de gargalhadas nos invadisse parvamente, um de
nós, “o sutiã, pai?!” e logo tu a frisar a emenda, “Oh, o sutiã! Maluqueira! As
cuecas.”, e a repetir por via de dúvidas que subsistissem, “As cuecas tão
apertadas”. E aí nós quatro rimos até não poder mais, chorámos de tanto rir,
eu, como sempre, engasgada de tosse. Foi um alarido até tu, já deitado e com o
lapso digerido, “vejam lá mas é se se calam que quero dormir.”
Voltámos
à antena e ao filme. Mas toda a noite rimos. Ainda hoje.
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