Chove.
Uma cacimba miúda e sem vontade reina molemente no ar, o dia a lembrar-me as
soluções saturadas da química que eu, sem qualquer tipo de experiência a
reivindicá-las – o colégio não tinha nem
o arremedo de um laboratório –, julgava ser um excesso, uma fartura de alguma
coisa dissolvida em água. E, por uma vez, estive certa. Penso na praia enquanto
a palidez do dia amanhece, imagino-a quieta, gota com gota, um mundo de água
solitária. Que será das gaivotas de triste piar, a linha da água nublada na
maresia, o céu sem azul. Ou da liberdade de areia onde toalhas fizeram cama e
passos cruzaram destinos leves. Imagino-a semeada de algas, lixo, restos que o
mar devolve à terra que o desrespeita. Estão ali, inertes, dedo apontado ao
mundo.
Nós
somos longe, aflitos de saudade, ainda cálidos do sol que rumoreja na memória. Conheço-lhe o gesto bendito que enlanguesce, a aura de calor em ondas a desmaiar, o
tempo em que os grãos soltos amaciam sob os pés. E tanto a gosto
em suas partículas de luz, excesso de verões a rebentar diques de frieza,
insidiosas insinuações que nos desmarcam, muros que derretem sob o sol.
Jamais auscultei a praia de Inverno
ou Outono. Desconheço-a. Mas tanto nela estou! E sei que não volto para buscar
os momentos que não vivi junto do mar. Não. Sofro-lhes em constância a força agreste
da ausência que tudo despe. Então, devaneio para mitigar danos. E recordo.
A primeira vez que vi a praia teria
perto de dez anos e por bondade do pároco a quem tanto devo, integrei uma
excursão da catequese dos meninos da vila. Senti-me agulha em palheiro, só
conhecia o prior. Desse princípio de relação, o que mais apreciei não pertencia à
água: observei que se podia atravessar em braçadas de elegância subtil, pernas
a ondular como sereias. Fascinei encolhida no meu vestidinho de nylon com florinhas, as tranças escuras
a pendurar sobre os ombros, olhos pregados numa banhista que nascera súbita de
dentro de uma saia larga com blusa a condizer, toda a gente a afirmar, “é tão
feia, a mulher mais feia da terra” e eu a encontrá-la suprema no seu completo
de natação que me era novidade. Grudei no moldado acintoso do fato de banho, o
cabelo escondido em touca de borracha, óculos de natação. E quando avançou mar
fora, soube-me a deusa aquosa, a cabeça a branquejar em espelho de água. Num rompante, uns calções empoleirados num barco e um corpo de infância em arco de parábola. Assustou-me o baque material, a nuvem de gotas em explosão de riso que me amiudou, o deixar de vê-lo. Pensei, afogou-se e agora; mas
reapareceu a inexplicável distância, braços no ar. Respirei. O senhor padre,
Manuel Tomás volta para a praia. E o garoto sempre em frente, já longe das
bóias. O padre apreensivo, Tomáááás!... e ele um pontinho parado na distância
esverdeada da água. Eu atónita com a velocidade das braçadas. O Manuel Tomás,
que eu desconhecia, era um peixe veloz disfarçado de pessoa. Quando regressou,
o prior puxou-lhe uma orelha e ele bem disposto, a secar-se com uma toalha
grande, está a magoar-me senhor padre. O padre muito sério, vou contar aos teus
pais. E ele, uma gargalhada feliz. Tinha uma vitalidade alegre, simpática, de onde os problemas se ausentavam. Há vidas breves que fulgem pletóricas e bebem o tempo às golfadas. Foi
assim com o Manuel Tomás formado em medicina e que não mais reencontrei. Viveu
aos borbotões até aos vinte e oito anos. Depois de uma tarde na praia com a
família, subitamente, entrou em coma. Dez longos anos. Até que o deixaram partir.
Aos dez e onze anos, ainda o apego ao mar vogava pelos longes de mim. Veio a benesse de duas colónias de férias em Sines e a vontade indómita e inútil das zeladoras em
me alargar o estreito da figura. Então, os banhos eram uma parede de garotagem
entusiasta, todos de mão dada; e, não raro, de roldão pela areia.
Aos treze ou catorze, em nova incursão excursionista, conheci a força assustadora do mar da Figueira que Maria Clara imortalizou em sua impoluta voz de onda a transparecer.
Aos treze ou catorze, em nova incursão excursionista, conheci a força assustadora do mar da Figueira que Maria Clara imortalizou em sua impoluta voz de onda a transparecer.
Nada no nosso trajecto de brevidade fazia prever
o élan que, tenaz, me prendeu. Que a natureza, imersa
em si mesma, segue o seu rumo, alheia a derrames de coração, aflições de gente,
aziagos desaires.
(continua)
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