sábado, 25 de abril de 2015

Às Portas de Abril

Em obediência à secura de eucalipto, os acompanhantes vão chegando à sala de espera. Onde desesperam, cronométricos. Mundo sinuoso, este: sem os doentes e à medida que os ponteiros do relógio se distendem num compasso de vagar e passinhos de bebé, a preocupação cede à curiosidade. Olha-se em volta e o panorama é de retalho: ali uma senhora desdobra, a apontar para o fundo de papel azul, as instruções de uma toalha em croché com passarinhos; mais além, um homem ressona sobre a barriga, queixo enterrado no peito. Na fila de cadeiras a meio da sala, três ciganos destilam elegâncias de cavalo árabe. Espreguiçam-se de braços ao alto e escancaram-se a bocejar até à epiglote, incapazes de quietude. Quando entram os palhaços, riem os três com muito mais graça e naturalidade que os pobres de nariz de morango. E, quer o lado masculino quer o feminino, passeia-se flexível, no andar quase felino que lhes pertence e faz a inveja de qualquer modelo de passerelle. Num dos cantos da sala, uma senhora de salto muito alto e meia a condizer, cabelo preso com ganchos invisíveis e uma possível revoada de laca, monta um par de olhos escandalizados quando o cigano mais jovem sai a pingar da casa de banho, nu da cintura para cima; ela, baton em linha agastada, a desaprovação pelo corpo a contrair, não me digam que ele tomou banho ali; e o moço alheio, como se em casa, a sacudir a camisola antes de a vestir, caracóis a escorrer - diriam os brasileiros que bem devagarzinho -, o corpo moreno a reluzir de gotículas, estriados bem definidos. E depois, embaraça os braços molhados nas mangas, a esforçá-los até surgirem vitoriosos na ponta do punho e senta-se sem reparo à atenção que o marcou. A meio da sala, as máquinas, a incentivo de moedas, cospem sumos, cafés, batatas fritas…E sobre os nomes anunciados ao micro, a intermitência musical, quase sempre de mau gosto, de telemóveis insistentes. O mundo dos telemóveis raia o obsceno. Porque a vontade portuguesa de exposição chega a ser delirante. Magoa esta vaidade com defeito que sobressai nas conversas em alta voz ou em voz alta, apetece mandá-los exibir-se na rua, dar-lhes um piparote de boas maneiras. A dada altura, os ciganos agarram os filhos com leveza e vão embora. Ficou fazendo falta no lugar aquela naturalidade empática.

Hoje faz anos um dia feliz. Contudo, para ouvir as Canções de Abril, para recordar que a canção é uma arma, tive de recorrer à RTP Memória. No meio de desenxabidos discursos  lacaios de interesses menores e onde poucos deram vivas ao povo português, ninguém lembrou a genuína alegria de há 41 anos  e que devia repetir-se hoje. Mesmo que diferente, devia. 
A "Grândola" comove. Que a tenho por uma canção tão triste como verdadeira.

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