Quanto
se pode gostar das coisas santo Deus! É um apego desaforado que desarvora por
dentro de nós se deixam de ocupar o espaço habitual. Se desaparecem sem aviso.
Mas com algumas acontece, não se sabe como que não têm pernas, nem pés, nem
nada que lhes permita movimento autónomo. Mistérios.
Ignora-se
por que razão somos assim ligados aos objectos mais díspares. Pode-se aventar
timidez, insegurança, carácter reservado e introvertido do sujeito; dizer que o
homem é um animal de hábitos; explicar que
os afectos são necessários e tal e tal; intuir que a relação com os objectos é
mais fácil – a ausência de vontade e apetites lima muito aborrecimento e a sua oralidade inexistente resume-se, nuns
poucos, a monossílabos repetidos, técnica alimentada a pilhas que não conta
para o caso -; pode-se mesmo aduzir que o sujeito exerce sobre eles uma relação
de poder exemplar. Etc. Tudo isto é um molho de chaves inúteis, não há uma que
preencha a fechadura. Por mais que a psicologia estude e a psiquiatria desconfie,
ninguém descobre. E que não fiquem as ciências irritadas. Pela sua natureza, a questão
isenta-se de solução, é de viver e aceitar. Prefiro chamar manias aos
particulares de somenos que nos apoquentam a existência se nos falta este ou
aquele objecto. A vida sem manias é inconcebível, desinteressa de tão insossa.
Com
o primeiro automóvel que guiei aconteceu isso mesmo: não conseguia imaginar a
vida sem aquele volante, aqueles pedais, a dureza precisa dos estofos. E o
mais. Quando começou a parar por isto e aquilo e era hora de o trocar – coisa que
não faço sem um espesso véu de tristeza a envolver –, palpei-o cirúrgica, a
garantir que o mal era apenas interno; olhava-o como a familiar próximo e
sentia o remorso pairando na intenção de largá-lo na velhice. Gastei cerca de
um mês em ternas despedidas e, a meu pedido, certa incógnita manhã acordei e
dele restava o espaço. Às vezes ainda o encontro parado e discreto, meio
decrépito, e quase me afronta que nem um frémito o percorra, que não escancare
portas e baixe vidros, que não se vire para mim, as rodas numa alegria a rimar
com os meus olhos que o miram a escorrer ternura grata. Parece-me sempre
amuado, de birra. E, se o encontro no trânsito, lá segue o seu caminho
vagaroso, burrito que mal se tem nas pernas. Porém, em seu tempo áureo de
volutas juvenis, vivi com ele aselhices inúmeras e seus remendados.
Nesse
tempo, vivia na aldeia, acordava com os pássaros e os sons familiares de meu pai
a descompor os porcos invectivando-os tão acirrado que me confrangia, admirada
que eles não se ofendessem e galgassem a cancela numa saída sem regresso.
Depois sentia-o a arrumar o carro de mão da ração, dobrar o mau humor até ao
dia seguinte e entrar em casa. E era como se, até àquele momento, eu fosse
exterior à vida e a mim, só então reencarnava.
Certa
noite de chuva e trovoada, regressada do emprego em horário nocturno, e depois
de uma carga de trabalhos para domar o
limpa para brisas, que o carro era bem mais voluntarioso que eu e caprichava em
dizer-me de si e que tinha voto nas viagens que fazíamos, deixei-me entrar em
mais uma asneirada. Ora, como vinha dizendo acerca da intempérie e de nós dois,
estava eu acabadinha de chegar a casa quando, ao entrar na garagem, o deixei
encostar à parede. Travei mal senti o desastre, deixei-o meio fora meio dentro,
tirei a criança e a pasta e fui desalentada remoer o problema para o cadeirão
de verga da cozinha enquanto o garoto brincava com extensões eléctricas num afã
de enfia e desenfia a sugerir o electricista potencial que o futuro negou. Eis
senão quando, no meio dos trovões, surge o meu pai na porta da rua. Mão no
puxador, deu uma espreitadela e pude ver o boné, a pála cronometrada, ping, ping, ping e olhos
piscos. Logo entendi que estava com os copos. No passo seguinte, mal ele
abrisse a boca, eu sabia a fase da bebedeira. Esperei. O meu pai entrou meio
trôpego e começou, ó filha, o pai queria-te pedir uma coisa.
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