No
caminho, a minha pensativa companheira abriu um súbito de riso e apesar dos
meus protestos, desceu o vidro, deitou a cabeça de fora e gargalhou que nem uma
perdida enquanto eu suava qual estivador, a cara numa abrasa. Devemos ter sido
um espectáculo, ela era e ainda é linda, a sua longa e solta densidade
capilar toda fora do carro a baloiçar com o ímpeto, para a frente, para
trás, para a frente para trás. No meio da diversão, fi-la prometer que não
propalava a história, mas foi a primeira coisa que fez mal pôs um pézinho fora
do automóvel. Bem vi os olhares e os risinhos frouxos a perseguir-me dias e
dias.
A peça seguinte aconteceu quando
saía do parque de estacionamento junto ao local de trabalho. Tinha ido a um
funeral e abandonara-o cedo, convicta de que o desgosto privado se deve manter
nesse registo e que há momentos em que cabe aos outros o respeito. Saí sozinha, dirigi-me ao
local onde deixara o carro e esperei que passassem todos os automóveis antes de
me meter à estrada – passou um comboio deles. Quando não avistei qualquer veículo
fiz-me à estrada nas calmas – talvez não assim tão calma –. De repente, senti
qualquer coisa a bater-me na lateral do carro. Travei, saí e vi um motociclista
caído. Comecei a suar a toda a brida. Intrigada, fui ajudá-lo a levantar e
perguntei-lhe, mas o senhor saiu daonde?! E ele a equilibrar-se com muita
dificuldade enquanto eu lhe levantava a lambreta, muito obrigado, menina, Deus
lhe pague; foi aquele maluco que me bateu, e apontava um carro a desaparecer na
curva. E eu, não, não, eu é que lhe bati, não foi mais ninguém. Ele, ai foi a
menina?! – e olhava para mim desconfiado, a preterir-me, preferindo o motorista do outro
automóvel. E eu, sim, o carro que lhe bateu é este – apontava o meu carro – e insisti,
mas o senhor saiu daonde? Estive ali a olhar a estrada, esperei que
passassem todos os automóveis que vinham do funeral e não o vi a si. E ele a
abismar-me na resposta, eu também vim do funeral, e foi por esta estrada. A verdade é que a psicologia tem uma explicação para este fenómeno em que os sentidos obedecem estritamente à ordem cerebral "não atravessar enquanto passam automóveis", mas continuo a culpar-me por não ter visto o senhor.
No
meio deste desencontro em que atropelei um homem e uma lambreta invisíveis e o
ofendido assegurava que tinha sido um maluco qualquer a atropelá-lo, e,
portanto, nós os próprios mesmos, estaríamos isentos de culpa, levei-o ao hospital e em seguida a casa remoída pelos estragos do trambolhão: quase não andava; além de esfolado, o braço estava
perro como tudo; coxeava que só visto. Este quadro prostrou-me, permaneci o
inteiro de uma noite em ânsia desmedida, a imaginar que lhe teria partido sei
lá bem o quê e que nem fora radiografado. Tudo acrescido dos demais temores que a noite traz. Nesse interim de remorso, chorei o que Deus dá e não chegou. A forma como o velhote se deslocava e quanto
o tinha magoado imperaram na minha noite branca.
No
dia seguinte, entreguei o caso ao seguro e prometi em casa que não faria visitas
ao senhor ou nunca mais estancava a torneira das lágrimas. E à noite, tu sabes aquele
homem que ontem atropelaste? Pois tinha-lhe dado uma trombose e está paralisado
do lado esquerdo.
Palavra,
jamais imaginaria que um avc me desse jeito.
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