O tempo
levou-nos na correnteza. Submersas em tentáculos quotidianos, persistimos
viradas ao umbigo e suas extensões. Vivo enleada em palavras enquanto tu persistes
nas obras comunitárias que te organizam as horas, manifesto da tua agenda. Não entendo como te deixas seduzir por catequeses, missas e velhos
sem destino ou direcção; mas a ti “faz-te
espécie” que eu perca horas a ajeitar letras sem préstimo, que ninguém lê e eu
mesma esqueço (a mim também me faz espécie, mas é um ritual e agrada-me). Como
as pessoas diferem sendo tão parecidas! Preciso de um exercício de bom senso
para aceitar que uma vida – a tua – tenha tal conteúdo e daí lhe venham os
toques de alegria que te animam. Imagino que eu te provoque algo semelhante.
Lá
fora, a política enlouquece a fingir acordos que não duram, o país depaupera e
hordas de refugiados morrem e sofrem às portas da Europa. A frágil e fingida
Europa. Que oferece roupas e agasalhos, e brinquedos e livros e o diabo a sete,
mas receia. Que deixa passar – se deixa –,
mas não acolhe. Armada em obtuso Pôncio Pilatos. Pergunto-me como pode ser levada
a bom termo a inclusão dos refugiados se não beneficia de acção concertada por
parte dos Estados. Não se criam infraestruturas, não se pensa que são milhares
e milhares de pessoas em fuga e sem um
haver. Que vêm para ficar. Oh, Olívia, não me julgues ingrata, uma mal
agradecida a tanto particular que se moveu. É tudo necessário, os camiões TIR
com víveres e roupas e livros e bonecos e tanta coisa. Porém, tudo isso
pertence a outra ordem e é quase irrelevante na solução do problema e na sua
premência. Queiramos ou não, é agora um problema nosso. Nosso, enquanto Europa.
Nosso, enquanto países envolvidos no acolhimento. Vai afectar-nos presente e
futuro e reduzir o problema à sua dimensão moral e humanitária é simplismo. É também
um problema social, económico e político. E tem de ser assumido na sua qualidade.
Mesmo não aplicando o discurso – verdadeiro - sobre a tradição humanista da Europa, é errado
ignorar e dar as costas.
Quem sabe, esperas resposta do Deus
de bondade e paciência. Que te acalma e promete. Ao invés, os meus deuses são inclementes, viram-me o bico da seta e não fazem promessas. Privo-lhes com a veia
poético-estóica, que apregoa o esforço porfiado e convicto: “vai...mesmo que
sejam vãos os passos”. Olívia, essa bondade inalienável não me existe, apaguei-a
ao nascer. Ficou-me o reduto breve da poesia. E os passos.
Eu acho que hoje o meu coração
ensopou, está de portas abertas e à chuva. E é por isso.
Um
bjo
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