Que
poder detém uma carga de tralha! Não aprecio o Gran Canale, ou
deixo os olhos espreitar a vetusta
Veneza enquanto, no cais, semeados de
bagagem, esperamos quem nos guie até casa. Veneza labiríntica onde as ruas todas se
assemelham, a maioria das casas univitelina com mais uma dúzia, pontes airosas
em proliferação. Ali abundam, isso sim, recantos únicos. Porém, se intentarmos
regressar a um deles, raro conseguimos. Neste momento, ainda ignoramos tudo isso,
os meus pés e ténis enjoados de sobremalas, agradecidos de terra firme, a relaxar,
já temíamos pertencer a um insecto voador. Encosto-me à parede do cais a apaziguar-lhes o redondo contrafeito da biqueira,
enquanto a Mariazinha da história, a mesma que se perdeu na floresta, miolos de
pão engolidos pelos pássaros, me grita uma angústia lá do fundo, e se ninguém vier?! Habitam-me sem transtorno estas personagens de
contos, comprensíveis e femininas. Mas logo chega uma italiana de meia idade e
cala temores, Mariazinha já concentrada na tarte de maçã que tem ao forno. A senhora é despachada, funcional e
atípica: baixa, loira, olho azul. Declinamos a oferta vazia de intenção, querem
ajuda. Seguimo-la. Caminha em passo meio apressado, ou assim nos parece, mas o
cortejo arrasta-se; em breve ocupo o meu lugar habitual, na traseira do grupo.
Mentalmente, equaciono o material que transporto no fito de alijar algum na
volta. E prometo a mim mesma que não acrescento peso, nem uma
pena de galinha que seja. Após muita esquina a repetir decepções, é ali; não, é ali; ai, ainda não..., a dama detém-se e abre uma porta anódina,
em tudo idêntica a outras. Um, "abre-te sésamo". Entramos num fresco saboroso, a penumbra silenciosa
evola do tabuleiro quadriculado do chão. Sem que a tivéssemos visto, já a
casa nos apetece.
Veneza oferece-nos os melhores e mais
confortáveis aposentos. Cidade tão medieval por fora como contemporânea no
interior. Quem decorou a “nossa” casa esmerou-se na mistura entre ikea e objectos
de estilo; foi requintado na escolha de cores e adereços, usou, no cortinado da entrada, as cores da cidade. E, muito importante,
cuidou de bons colchões e camas largas. Em Veneza estamos de gosto no conforto e requinte que
todos desejamos em viagem quando nos passam as juventudes aventurosas de saco
cama e tenda às costas. Somos presas desta harmonia cativante. Talvez a meio
da semana, conversamos com Pietro, o proprietário que encontramos sentado a meio da
escada, portátil em punho. O gigante explicou-nos que trabalha em Pequim e pretende que a net seja partilhável em todo o imóvel. Andou pelos quartos e mais no meu por
ser ali que estava não sei o quê e etc. O edifício é todo seu e serve o mesmo intuito: abriga turistas. O
meu progenitor de imediato lhe faria contas ao bónus mensal. Porém,
desejei -lhe apenas que continuasse bem por Pequim. A net à força toda só chegaria
depois de sairmos. Ora bolas.
Deste
dia primeiro, para lá do tropeço de bagagens, fica a graça natural e miúda das árvores que arredondam e florescem, bandeiras de paz que cruzámos à saída do cais. Como a beleza pode ser simples! Depois de cheirarmos a casa e a fazermos nossa de objectos, a saída bandeirante. Nas
traseiras, junto à Piazza dei Mori (lá estão os três mouros a
atestar), mesmo nas nossas costas (da casa, da casa), um palácio casado ao resto
das habitações, algumas delas com roupa estendida sobre o canal, cuecas em fila
indiana, blusas e outra roupa normal em aceno sorrateiro. Um palácio a sério, ogivas de
cordame a sombrear janelas rindo de alto, em opulência de cortinados; e o benefício de cais próprio e
barco a motor resguardado. Provavelmente, o palazzo pertence a duques ou condes que, se
espreitam o canal, dão de caras com as cuecas da vizinha e o mais que ela queira
no estendal. Venecia é também isto.
Sem comentários:
Enviar um comentário