Nós
dois. De novo. Os teus olhos abandonados no meu rosto como nunca os vi. Por ironia, a desgraça sempre nos reune. Há
quantos anos me acompanhaste no fresco de uma madrugada de verão, o dia a
clarear caminho fora, sobreiros que acordavam já de braços abertos e folhagem
esmorecida, gado ainda estremunhado a deambular sem eira nem beira, focinho
rente ao chão, que é das ervas, cavalos e cabritos novos em fragilidade de
perninhas nervosas, um ou outro pastor ensimesmado e pardacento, varas de porcos indiferentes ao ronco do motor, a afocinhar na bolota. E o alvor obstinado,
em mostra de preclaros intentos de calor. E eu
tão jovem. À chegada, o bombeiro deu a volta e parou a ambulância na
porta da enfermaria dos homens, adivinhando doença no teu semblante de
preocupação triste. Do banco de trás, eu a rectificar, sou eu que fico, a entrada não deve ser aqui. E tão de pena
sincera o olhar que me lançou num virar de pescoço, a íris a soerguer no
silêncio uma exclamação condoída que tremia orvalhada, tão novinha. Entrou-me vontade de abraçá-lo ou coisa assim,
mas deixei-me ficar quieta, a mão refrescando na asa da mala, a palpar, maquinal, o saco do avô
logo ao lado. E tu de costas para mim, hirto, a verborreia do caminho morta na
garganta. Numa pressa de aperreio me
despejaram e partiram. Tu, com um beijo rápido e o pigarro das grandes
ocasiões; eu, pouco atenta a estar doente, agradada de respirar o ar livre e
haver abundância de árvores copadas e caminhos
com bancos aqui e ali. E lembro-me que havia sol e sombras diáfanas tremelicavam nas
camas de repouso do exterior.
Passou um ano e repetimos o
calvário. Desta vez, eu levava-te.
Desabei na ambulância, lembras-te? Sentada a teu lado – não quis ir na frente -, em vez de te animar, desatei o choro que recolhi mal reagiste sem jeito, então que é isso, estás a chorar para quê.
Estranhavas, as nossas mulheres não usam
fraquezas em frente de terceiros. Chegados, notei-te esperançoso, um fuso de determinação
a endireitar-te a figura, é um tempo filha, é só um tempo. Atardei-me a ajeitar
pertences pela enfermaria e foi o desabrido da enfermeira a sacudir-me, vá-se
embora, está aqui a fazer o quê? Saí a avaliar a tua tristeza do ano antes, a
concluir o quanto a gente se nega à chamada dos mortos. Ponderei se, então, haveria
em teu redor a mesma não importância de todas as coisas. A indiferença de
sermos e seguirmos a correnteza que nos arrasta.
Ontem,
idêntica situação e, em parte, tão diversa! Fui eu que tudo decidi, tu em
concordância desalentada. E não me habituo, pai. Não me habituo ao canino dos
teus olhos de obediência. Aos teus olhos náufragos que me buscam e fazem bóia
salvadora. Ao fulgor e poder que alijaste sem luta, subitamente dócil, no
receio da morte que não dizes e toda se sente na reticência do corpo. Tirei-te
sapatos, meias, calças, camisa... e tu abandonado de todo, vencido pela
circunstância, mergulhado num faça-se em mim segundo a tua vontade. Garanto que
vais melhorar, conto-te expectativas, vais sachar os alhos e as cebolas, regar
as laranjeiras que restam, plantar salsa e coentros. Acalmas. Julgo que acalmas.
Que eu volto desabrida por este breu alentejano a adivinhar sombras nas bermas dos
caminhos sempre em frente. E se eu parasse e descesse, talvez que não próxima
de Santa Susana ou Santa Sofia ou do Cromeleque dos Almendres, ou Escoural. Se
eu parasse, talvez houvesse um feijoeiro mágico a destacar no enluarado e eu o
subisse e fosse parar a um país estranho. Mas, e daí? É neste que me esperas.
Teria que voltar. Portanto, continuo, porfio em seguir os traços em branco
fluorescente marcados no alcatrão. Santa
Susana, Santa Sofia, quantas santas existam, só podem levar-me até casa.
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