terça-feira, 13 de setembro de 2016

Maleitas e Pesares

Nós dois. De novo. Os teus olhos abandonados no meu rosto como nunca os vi.  Por ironia, a desgraça sempre nos reune. Há quantos anos me acompanhaste no fresco de uma madrugada de verão, o dia a clarear caminho fora, sobreiros que acordavam já de braços abertos e folhagem esmorecida, gado ainda estremunhado a deambular sem eira nem beira, focinho rente ao chão, que é das ervas, cavalos e cabritos novos em fragilidade de perninhas nervosas, um ou outro pastor ensimesmado e pardacento, varas de porcos indiferentes ao ronco do motor, a afocinhar na bolota. E o alvor obstinado, em mostra de preclaros intentos de calor. E eu  tão jovem. À chegada, o bombeiro deu a volta e parou a ambulância na porta da enfermaria dos homens, adivinhando doença no teu semblante de preocupação triste. Do banco de trás, eu a rectificar,  sou eu que fico, a entrada não deve ser aqui. E tão de pena sincera o olhar que me lançou num virar de pescoço, a íris a soerguer no silêncio uma exclamação condoída que tremia orvalhada, tão novinha.  Entrou-me vontade de abraçá-lo ou coisa assim, mas deixei-me ficar quieta, a mão refrescando na asa da mala, a palpar, maquinal, o saco do avô logo ao lado. E tu de costas para mim, hirto, a verborreia do caminho morta na garganta.  Numa pressa de aperreio me despejaram e partiram. Tu, com um beijo rápido e o pigarro das grandes ocasiões; eu, pouco atenta a estar doente, agradada de respirar o ar livre e haver abundância de  árvores copadas e caminhos com bancos aqui e ali. E lembro-me que havia sol e sombras diáfanas tremelicavam nas camas de repouso do exterior.
            Passou um ano e repetimos o calvário. Desta vez, eu  levava-te. Desabei na ambulância, lembras-te? Sentada a teu lado – não quis ir na frente  -, em vez de te animar, desatei o choro que recolhi mal reagiste sem jeito, então que é isso, estás a chorar para quê. Estranhavas,  as nossas mulheres não usam fraquezas em frente de terceiros. Chegados, notei-te esperançoso, um fuso de determinação a endireitar-te a figura, é um tempo filha, é só um tempo. Atardei-me a ajeitar pertences pela enfermaria e foi o desabrido da enfermeira a sacudir-me, vá-se embora, está aqui a fazer o quê? Saí a avaliar a tua tristeza do ano antes, a concluir o quanto a gente se nega à chamada dos mortos. Ponderei se, então, haveria em teu redor a mesma não importância de todas as coisas. A indiferença de sermos e seguirmos a correnteza que nos arrasta.

Ontem, idêntica situação e, em parte, tão diversa! Fui eu que tudo decidi, tu em concordância desalentada. E não me habituo, pai. Não me habituo ao canino dos teus olhos de obediência. Aos teus olhos náufragos que me buscam e fazem bóia salvadora. Ao fulgor e poder que alijaste sem luta, subitamente dócil, no receio da morte que não dizes e toda se sente na reticência do corpo. Tirei-te sapatos, meias, calças, camisa... e tu abandonado de todo, vencido pela circunstância, mergulhado num faça-se em mim segundo a tua vontade. Garanto que vais melhorar, conto-te expectativas, vais sachar os alhos e as cebolas, regar as laranjeiras que restam, plantar salsa e coentros. Acalmas. Julgo que acalmas. Que eu volto desabrida por este breu alentejano a adivinhar sombras nas bermas dos caminhos sempre em frente. E se eu parasse e descesse, talvez que não próxima de Santa Susana ou Santa Sofia ou do Cromeleque dos Almendres, ou Escoural. Se eu parasse, talvez houvesse um feijoeiro mágico a destacar no enluarado e eu o subisse e fosse parar a um país estranho. Mas, e daí? É neste que me esperas. Teria que voltar. Portanto, continuo, porfio em seguir os traços em branco fluorescente marcados no alcatrão.  Santa Susana, Santa Sofia, quantas santas existam, só podem levar-me até casa.

Sem comentários:

Enviar um comentário