Todos
os Natais são semelhantes. Ou parecem. No início da tarde de consoada, começa o
pandemónio. Os telemóveis não param e as mensagens de última hora entopem o ar
e precipitam-se no aparelho em piscadelas de luz, pim, pim, pim. Na bancada da
cozinha, o almoço de natal jaz de costas
a descansar no tempero, patas ao alto como compete; e nós ao passar, ai se não
cabe no forno, ai se demora a assar. Ai. Entretanto, calculamos volume de
bacalhau e couves na panela, que, à noite, a tradição ordena sem evasivas. E damos
uma olhadela aos sms recebidos a ponderar, “depois da confusão, quando a calma se instale, respondo”. E sabemos que hão-de
chegar sms retardatários, horas e horas no caminho, ninguém sabe se perdidos.
Adormeceram na fila de espera e, no dia de Natal, caem resolutos no aparelho. E
nós pasmos, olhando a hora, que é isto, foi enviado ontem à noite.
Mas
eu e tu não vivemos apenas neste mundo tecnológico todo destreza de dedos. Não
aprecias sms de natal. À moda antiga, envias cartões, presépios pequenos
desenhados com amor e cuidado na ponta do lápis. Aqui uma estrela brilhante,
ali um pastor a ofertar um cordeiro, além uma Virgem toda ternuras com o Menino.
O que eu gosto de te ver desenhar. Tornas-te outro enquanto crias. E desvaneço
na tua atenção em redoma, os meus olhos acompanhando o movimento dos dedos,
ocupada a ver nascer as coisas. E penso, vaidade a minha, que ninguém te
conhece como eu. Tardes completas neste labor. Depois, inventas vagar e tempo para a estação de
correios e compras envelopes e caixas de vários formatos e tamanhos. E carregas
tudo para casa sem pejo, num contentamento que não entendo mas também me faz
feliz. Então, lanças-te a escrever. Nos cartões. Nos livros. Jamais li o que envias
a outra gente. Mas sigo-te, penduro-me nos teus gestos. Vejo-te hesitar e
escrever; parar e continuar; sorrir ou esconder a ternura numa tosse de ocasião.
E tenho certeza de que todas as palavras que usas são lindas e vão directas ao
coração. Até ontem, juro que não entendi o teu fincapé em escolher e enviar
livros. Anual e meio acéfala, repetia-me incrédula.
- Livros,
amor?! Livros?! Já ninguém quer ler.
No
teu rosto, o assomo de um sorriso.
- Hão-de
ler estes. Alguém vai lê-los. E um dia, verás, dão fruto. Os livros lidos,
princesa, dão sempre fruto.
Era
tal a segurança da tua voz que não ousava contrariar-te. Pensava que enviavas dentro
deles a tua magia, o teu jeitinho de ser feliz e que só por isso – só por tua
causa – alguém, ao recebê-los, era compelido à leitura. Investia em ti todo o
poder. Não pensava nos livros. Até ontem.
E
ontem foi um dia normal. Ou eu o pensava assim à boca da manhã. Para lá da
janela, espreitava-me um céu de tédio que escurecia o bairro. Na rua quase
deserta as árvores sobressaltavam, despidas e suplicantes, cruzando dedos em
arabesco de troncos finos. O frio, intrometido e agudo, chegara de sopetão, a fazer-nos
desbravar gavetas à cata de protecções e abafos que respiravam aliviados da
pressão nas dobras, ufa, já cá estou fora outra vez. E era ver pelas ruas a
amálgama de cachecóis e gorros, botas e grossuras de lã que o corpo abençoava.
Chinelei
sem rumo fixo. A casa de banho cheirava à pressa das manhãs de trabalho, uma
mistura húmida de gel de banho e after shave que não era apenas gel de banho e after
shave. No espelho, uma mulher esguedelhada mirou-me meio zonza. Sombria. Sorri-lhe
a desanuviar e retribuiu. Demos um adeus apressado e entrei na cozinha. Tinhas
deixado a máquina ligada e um odor de café e torradas espreguiçava-se langoroso
sobre a cama suave da tua colónia. No hábito das tuas surpresas procurei um
recado, um dito xistoso e terno, um raminho a florir. Percorri bancadas, mesa,
electrodomésticos. Espreitei na despensa, olhei segunda vez o friso da chaminé.
Nada. Desisti. Por certo, a pressa engolira a surpresa. Foi ao
sentar-me, pequeno almoço a fumegar, que o notei pousado no colo discreto da minha cadeira. Um
embrulhito, coisa mínima. E os meus dedos atarefados, mais contentes de ti que dele.
Dentro, em cartão tosco e manual, um endereço. Nas costas, tinhas escrito, “Vai
até lá e mostra-o”. E fui.
No
táxi, indiquei o destino e recostei-me a apertar o casaco enquanto o mundo fugia
na janela. Mentalmente, revia as tuas surpresas caseiras. Nenhuma saíra fora de
portas. Mas o táxi continuava a rolar. Reparei que abandonávamos o centro e rodávamos já pelos subúrbios. Havia gente
dentro das lojas ou caminhando de rosto franzido, apressada por vento e frio, sacos deformando ao peso dos víveres. Era um
mundo diferente, mais sujo e escuro, todo mais pequeno e encolhido. Casinhotos
sem jardim guardados por automóveis sebentos de uso, bicicletas enferrujadas no cubículo dos quintais.
De
repente, o taxista parou e apontou a casa do outro lado da rua: é aqui. Semelhante
a todas as outras. A mesma pequenez apagada, idêntico ar desvalido a precisar
reparação. Paguei a corrida e, mal saí do carro, assustou-me o coro de cães
desafiando-se de dentro dos quintais. Atravessei e, no temor de um mastim a
espreitar-me do interior ou surgindo desengalgado, empurrei a cancela. Duvidava do endereço, apostava que o taxista
se enganara, supunha que te enganaras.
(cont.)
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