Bati
à porta e ouvi vozes e ruídos que me pareceram de mau agouro. Recuei indecisa,
fujo, não fujo. Na entrada, meio morta, uma flor resistia. A visão
incentivou-me. Aproximei-me e voltei a bater, desta vez com mais força. Lá
dentro, o barulho cessou repentino. Ouvi passos. E quando a porta se abriu,
quatro rostos curiosos. Procurei nos bolsos o cartão que os meus nervos já
tinham encarquilhado. E foi milagroso, os sorrisos encompridaram. Sem hesitar, oito
mãos puxaram-me para dentro. Os mais novos chegaram-se a mim. Em festa,
levaram-me até à sala. E eu numa desorientação. Que família era aquela que
parecia conhecer-me e eu nunca tinha visto, os garotos pareciam deveras contentes
por me verem. Entretanto, a mãe, que só podia ser a mãe, fez-me sentar enquanto
ia dizendo, deixem a senhora em paz. Olhe, eu tenho uns bolinhos e faço um chá, é só um
instantinho. E deixou-me com os três rapazes.
O
mais velho aproximou-se e beijou-me. Depois, pegou-me pela mão, levou-me até à
estante e apontou os livros orgulhoso
- Estão todos ali, menos o que chegou ontem. Esse está na mesinha de cabeceira.
Fiquei
boquiaberta. Não pela estante que era
barata. Mas os livros...eu conhecia aqueles títulos. Pensei na coincidência de
gostos de leitura. Lembrei os teus cuidados nas nossas tardes de compras de
Natal, os pedidos de opinião. Então, o garoto trouxe uma caixa, quer ver?, destapou-a
e, lá dentro, muito arrumados, alguns cartões. Pegou-lhes quase com reverência
e passou-me dois, são os que mais gosto. Eram os teus. Tinha-te visto a
fazê-los. Li as frases bonitas que escreveste com a tua letra inconfundível. Estavam
assinados com o meu nome: Sara. Disfarcei a surpresa como pude. Tirei um livro
da estante. Abri-o. Li a dedicatória. E as tuas palavras brilharam nos meus
olhos marejados. Com assinatura: Sara.
Passei
a manhã naquela casa. A sentir a gratidão que te pertence e não tive coragem de
rejeitar porque ia envergonhá-los e me soube bem tanto apreço e amizade.
Algures, há uma consoada e família à nossa espera, prendas bonitas e caras,
doces esmerados. E eu espero-te em casa. Mas o relógio faz pirraça e avança
devagar.
Enfim,
chegas. Sabes dos meus olhos em ponto de interrogação. Abraças-me com força. Murmuro
- Porquê?
- Porque
estás em tudo que faço e és eu, como eu sou tu - respondes convicto, e logo meio
a rir -. É tempo de saberes para quem
são os livros que envias.
Remoínhas-me
o cabelo. Digo a ajeitar-te o cachecol
. Aquele garoto comoveu-me, como o
descobriste?
- Hummm...ele
devia ter uns seis anos. Estavam ele e a mãe na paragem do autocarro e todo se
punha em bicos de pés no esforço de ler a folha dobrada do jornal do vizinho da
frente. Como vês, só aproveitei a oportunidade. Depois de um pequeno trabalho
de detective.
- Mas
por que não enviaste apenas um livro? Podias escolher pessoas diversas...
-
Porque, minha Sara, o amor da leitura é como um vício. Precisa de tempo e
continuidade para enraizar. Estiveste lá, viste como estimam as nossas prendas.
E eu queria que fossem desejadas. Deves ter visto também os livros dos outros
dois.
- Vi
tudo, amor. Estive uma manhã inteira imersa na tua filantropia anónima. Mas
como é que eles nos descobriram?
-
Porque ainda há coincidências. E esquecimentos. Uma tarde esqueci no escritório
uns embrulhos de natal já endereçados. E a mãe do nosso herói é funcionária da
empresa que faz a limpeza diária. Calhou de vê-los. Alguns destinavam-se a sua
casa. Contou ao filho, ele fez o cartão que te entreguei e foi deixado na minha
mesa. O resto, já tu sabes.
-
Nunca me terias dito? Ficávamos incógnitos?!
E tu
a olhares no fundo dos meus olhos.
-
Nós dois interessamos um ao outro. A eles, o que interessa são os livros. E,
sendo lido, nenhum livro é incógnito.
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