Há
nos dias uma ordinária sequência que não comove mas nos vai movendo, que reacende
a cada alvorada. Por vezes, vindos de um pesadelo dolorido, acordar é alívio. Constatamos a ilusão e damos por nós a descomprimir, já meio alegres das lembranças macabras, aliviados no
sem motivo da aflição que pesava. Fechado à manhã em botão, o quarto assiste-nos
em silêncio escurecido, os números no relógio rebrilhando em vermelho digital, a fazer viva
a mesa de cabeceira. Casulo. Protecção.
Num
emaranhado de pontas soltas, em passinho de bebé, o pensamento evolve, caminha
aos soluços, desentorpece na leitura das horas sacudindo
nuvens de sono. O olhar descongestiona o fogacho de
algarismos franzidos, alisa-os, torna-os eles um a um, ainda assim não saiam baralhados o dois com o
cinco, o três com o nove. No esforço de observação, sonolência a dissipar, surge
a dúvida, será que uma hora adiantada ou atrasada, ou bastará conferir; deve-se
este cálculo a não haver mudança horária automática nos relógios digitais e
existir gente que lhes limita a pontualidade à alternância de seis meses.
Depois,
quando enfim as horas se entranham e entrelaçam no dia que aguarda, parece que
se há-de estender uma perna e ela a assomar por entre os lençóis com um pé todo
esquisitices na ponta, desejoso de
voltar à sanduíche dos lençóis. Mas nem sempre. O facto é que há pés
resfriados, despertos em desconforto. Haja quem saiba de pesadelos, que por certo nascem de um
défice de calor nos pés - há no mundo relações tão estranhas que esta nem me
parece desconchavada. Pois bem, sentamo-nos de salto, um pé desconsolado - o mesmo que ansiava lençolar mais um pouco - em palpação de chinelos, dedo grande esticado a acertar
direito e esquerdo. De seguida, as manobras. Depois, de estacionados e metódicos, os pés ocupam-nos
sem hesitação.
Não é assisado movimentar-se uma pessoa no escuro; experimentar
é dar azo, por exemplo, a rolar escada abaixo. Ou outros perigos. Que o
breu confunde. Quem garante que no escuro os objectos não mudam de lugar. Quem
pode afiançar que a escada, que era sempre em frente, não deu uma guinada para
a esquerda ou para a direita. Quem jura a pés juntos que aquele passo em vão
não era o buraco aberto de um degrau. Ninguém. Há uma perversidade latente nos
objectos, manifesta na sua quietude quando queremos e tanto desejamos a sua
intervenção; ou mesmo quando mudam de lugar, saem do hábito e se escondem sem
aviso. Não há dúvida, vivemos à mercê da contingência.
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