Há pela casa uma quietude que desarrumo
mesmo se cuido de me fazer leve. Agora um chiar de tábua, logo uma queixa de caçarola,
uma batida de talheres que lembra os casamentos na aldeia, um monte de gente
esfomeada, facas e garfos em posição, a revolver ânsias para o assalto às travessas.
Espreito o sótão. Há luz. Maria Irene quase não dorme e pouco come. Talvez
tenha adormecido de luz acesa. A minha tão grande menina pequena. Que vive
sozinha, fecha-se no sótão da casa porque os garotos a espreitavam nas janelas
e fugiam de susto. Depois voltavam e traziam outros, o horrendo a atraí-los
como luz em mosquitos. Tantos rostos colados nos vidros, eu a enxotá-los, xô,
xô, xô, nunca viram, seus merdas. Pisavam o jardim, desmanchavam-me os canteiros,
atiravam pedras aos vidros para que assomasse às janelas, montavam guarda à
casa na esperança de que saísse. E as conversas de rua em rua, um bicho grande,
grande, já é gigante. Que este viu, que aquele viu, que o outro viu. Por mor
destas malvadezes, agora deixo-lhe a comida num tabuleiro e bato à porta a
avisar. Desgosto que tenho por não me querer ver! Eu que andei tanto com ela ao
colo e que vim para a família Tavares ainda eu e a mãe garotas. Crescemos as
duas na mesma casa, cada uma para seu lado, eu no serviço e ela nos estudos. E,
mal casou, viemos para aqui. Trespassada como negócio, um aviso sem pedido de
opinião, “arranja a trouxa que segues com a menina para a casa nova”. Esfregão
para todo o serviço, desabafos também me passaram nas costas. É vezeiro numa
criada, vivemos dentro de vida que não é nossa e gastamos corpo e tempo a
aplaná-la. Morrem-nos no colo os sonhos deles que a gente não se atreve a tanto.
Ajudei a criar Maria Irene e muito rezei à minha santinha para mudar a sorte da
menina. Que ela sim, podia curá-la, cabelo
e unhas a crescer é de santo com
valência. Mas a minha santa de devoção, entretida com a miudeza de cabelos e unhas, nem
buliu com o problema. E a coitadinha num crescente de desmesura e aleijão que aquilo
só visto. Santos destes também não interessam. Gente entendida falou-me de
Santa Teresinha, que é condoída e ajuda os pobres. Ora pois. Mudei-me de terços
e velas para Santa Teresinha que tampouco me fez caso, mas ao menos é santa
escorreita, toda coradinha, com ar de boa pessoa e aquele raminho de rosas
apertado ao peito. E busco-a na mesinha de cabeceira que me faz falta olhar gente bem posta na
tristeza desfigurada que reina paredes dentro.
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