O
ser humano está preso ao hábito. Nota-se no descansado olhar que pousa em
objectos de uso, no mastro seguro dos afectos, na fixa placidez horária em que
o corpo evolve. E mesmo nos agrados de cada um. Hábito provável das duas, encontro-a amiúde em concertos.
Presumo que à minha pressa esbaforida impõe a sua unívoca calma e, porque chega cedo, talvez se sente
um nadinha na entrada a degustar a novidade, enquanto eu relanceio ponteiros aflitos
no corre-corre afeito à traição da
calçada lisboeta. Imagino-a a deambular por entre os livros, a avaliar uma
porcelana, comprando uma recordação. Não precisa pente e as pregas da saia
rodeiam-lhe o corpo em macia elegância, é pessoa de tudo no lugar. Ao piscar das luzes, entro açodada. E já ela
impera estratégica, sentada a meio da sala. No ar, o leve romurejo de pássaros
que se aquietam no folhedo. A colmeia
humana preenche seus alvéolos enquanto caminho até ao meu viés junto ao palco. Tudo
que era movimento se faz expectação, apenas uma ou outra mão alisa cabelos, uma
tosse seca, o braço que muda de posição, um relâmpago de curiosidade que faísca.
E ela. Esfíngica receptividade, abóbada pronta ao som. O palco anima e converge.
Vestidos a rigor, os músicos aprumam respeitos e aproximam-se dos lugares. Nas
suas mãos, os instrumentos refulgem e são activa probidade, antecipação ingente
das melodias que guardam. Sentam-se, colocam-nos em posição, debruçam-se sobre
a partitura. E juntam-se ao público: aguardam em silêncio. Eis o primeiro violinista, o violino como primeira figura. E logo um coro de violinos responde
ao seu experimento. E emudecem. A sala espera o maestro. Quando a porta se
abre já as palmas estão prontas e se acende o entusiasmo na plateia. A figura que
se aproxima em passo elástico é leve e jovem. Inclina-se profundamente e noto-lhe
as ondas do cabelo negro e fúlgidos sapatos. Breve a sua
figura esguia nos dá as costas e a música começa. O tempo colapsa. E logo tudo esvai e o
divino se instaura.
(cont)
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