Entretanto, a minha mãe, senhora
de silêncios demorados, parada a olhar, sorriso embevecido. E gosto de pensar
que de mim, portanto, de mim. Cruzou-me a mente o perverso de um pensamento, e
se eu não aprendesse? E logo a procurar asa, eu aprendo a andar de bicicleta, não aprendo, mãe? Ela não mexeu o
sorriso e como a acordar, tenho mais que
fazer. E afastou-se. Sempre que eu perguntava o óbvio, deixava-me sem
resposta; por ausência de discernimento, este facto contristava-me, imergia-me
numa irritação mansa de perguntas repetidas. Eu ainda era toda óbvia. Hoje? Bom,
mudei para muito óbvia. Fiquei ali, em salamaleques de adoração. Palpava-a a
medo e a seguir esfregava o lugar onde os meus dedos suados do estupor, uma
marca; corria-lhe em vagar e enlevo o delgado do corpo; mal tocava a campainha metálica,
com medo de estragar; levantava a roda de trás e girava-a em admiração. E
ficaria até quando, se o meu pai, rapaz de pouco sonho e muito trabalho, não me
cortasse o devaneio Vai mas é guardar a
bicicleta que tens de te habituar a pô-la no descanso. Anda cá aprender como é. E fui descansá-la e fechá-la à chave que a
gente nunca sabe se às bicicletas não lhes dá para se escapulirem no escuro da
noite. E é melhor prevenir.
Ao serão, as minhas irmãs
indiferentes àquela sorte grande, não falavam dela. Estavam parvamente na sua
vidinha normal, sem respeito nem interesse pelo meu asteroide. A mais nova,
caracolinhos desdenhosos, cavalgava um animal de plástico cozinha fora e para a
minha estrela nem um ámen. Adormeci contente de no dia seguinte começar a
pedalar. E por entre descargas de sono, ainda espantava nebulosas dubitativas,
“é a sério, mesmo minha”.
A bicicleta foi o meu Cristo em
objecto, criou-me a história e a pré-história.
No dia seguinte, o meu pai antes
de sair, deu-me a aula de código: “Não custa nada, é só dar aos pedais e olhar
para a frente.” E abalou. A seguir, eu libertei-a do trinco da porta e fui para
a rua experimentar, disposta a cumprir, dava aos pedais e olhava para a frente.
Pensei que a descida da minha casa à estrada era boa e levei-a para lá em
prestezas de afinador de pontaria. Um bocadinho mais à frente, não, um
bocadinho mais atrás, aqui não que está um alto…etc. A mãe disse de passagem, como
se não fosse importante, para aprenderes
tens de te sentar. E sentei-me a constatar que chegava com os pés ao chão.
É claro que mal dei aos pedais, caí. E voltei a cair. E depois, e depois, e
depois….
À hora do almoço doíam-me as mãos
de agarrar no guiador e tinha o artelho esquerdo ferido de bater com ele na
roda pedaleira algumas vezes que era sempre, de cada vez que pedalava ele a
adivinhar o golpe que não falhava, a arrancar mais um bocadinho. Tinham passado
mais de três horas, a minha inteligência estava de rastos e temia que a
simultaneidade de dar aos pedais e olhar para a frente me fosse impossível.
Pensava que tinha que mudar o meu ponto de referência, a Rosa do ti Manel
estava a anos luz de mim, mesmo com a 4ª classe em suspenso. Além disso, o meu
astro já tinha uns riscos, de tanto cair. Depois de duas quedas em que fizemos
corpo uma com a outra, tinha compreendido ser assaz nefasto à minha integridade
física continuar. Eu não era de lata. E ela, não sei porquê, persistia em ser unha
e carne comigo, caísse por cima, por baixo, a uma ponta ou a outra, aleijava.
Nunca senti tanto bico, tanta ponta áspera, tanto peso e dureza a despedir. Portanto,
decidi: se não aprendia a andar, chegando com os pés ao chão, aprenderia a não
cair. Fui desde cedo uma optimista.
E a tarde não me melhorou. Ao
contrário. Calcei meias para os artelhos não baterem na roda pedaleira e logo
as rasguei bem como ao dito. Pobre. Cujo. Em sangue. Doíam-me mais as palmas
das mãos. Se olhava para a frente, esquecia-me dos pedais, se dava aos pedais,
esquecia-me de olhar. Resultado: caía sempre e não conseguia ir além de dois
metros. As minhas irmãs olhavam-me estranhas, a duvidarem de que não estivesse brincando aos trambolhões.
Nos intervalos de tudo, subia-me uma irritação e mandava-as ir para o outro
lado do monte. Mas, mal subia para a bicicleta, bem as via a espreitar. Sérias.
Curiosas do desfecho.
À noite, o meu pai fechou-me as
contas quando desviou a zundape do caminho e me disse: vá monta-te lá para eu
ver o que aprendeste. Nessa altura, já tinha um penso todo armadilhado de trapos
grossos contra a parva da roda pedaleira, seguros com fita cola que descolava parvamente. O meu progenitor deu uma gargalhada
quando me viu o artelho assim e gritou incrédulo, MAS COMO É QUE TU BATES COM O
ARTELHO NA RODA PEDALEIRA?! Fiquei animadíssima. Nem os dois metros consegui.
Incentivada, esqueci até o propósito de não cair atada à bicicleta. Desastre.
Então, a Rosa – que eu não conhecia – agigantou-se. Uma heroína. Nem eu nem o
meu pai sabíamos que existem várias formas de se ser inteligente, portanto… e
pensas tu que és inteligente, ah, ah, ah…nem te digo mais nada, a Rosa aprendeu
em três horas…
As minhas irmãs caladas, muito
sérias. A mãe nem uma palavra sobre. Só o suave da voz, vem jantar que a mãe
depois põe-te mercúrio nas feridas. E os olhos das minhas irmãs a arregalarem
de pena.
E quando adormeci doíam-me os
lados todos de mim.
(continua)
Como eu gostava de saber contar histórias assim...de um modo divinal, que põe quem lê a ver as o que se passa como se lá estivesse.
ResponderEliminarUm dia destes o teu progenitor ainda te vai dizer:
- Mas COMO E QUE TU ESCREVES TÃO BEM.
O meu progenitor salta por cima de acontecimentos menores :) A maioria mínima que me conhece aceita-me com esta paranoia sem a curiosidade de conhecê-la. As pessoas têm pouco tempo para ler os outros, marca. Preferem fotos, fixidez na corrente do que somos. É tão voraz a nossa alma de imediato individualista que aborta tentativas de querer amadurecer alguma coisa. E mais se não nos pertence.
ResponderEliminarE não contas como eu. Por cada um criar de maneira própria a realidade, a ordená-la dentro de si, talvez - em mim seguramente - para a entender. Mas sabes contar histórias, sim. E tens um imaginário mais polarizado. Podes crer.
BFS para ti :)
Mas, curiosamente, todos continuamos a gostar de ser lidos.