Não acredito que
a noite má conselheira. Trabalhar, ler, pensar, ficam mais fáceis no quieto
escuro em que os móveis um torpor. No vagar da noite, esquecem a etiqueta –
que a têm forte - e estendem braços e pernas. Espreguiçam-se. E logo as loiças
lá dentro, em tremeliques argilosos, ai que
me quebro, o chão esticou-se, bem senti. E nas gavetas os lençóis, enfim, respiro. E logo as fronhas a
festejá-los à largura, mãozitas brancas estendidas em afagos de renda, senhor lençol! E das gavetas das toalhas
chegam pontadas de guardanapo, o menino
esteja quieto; arrume-se que me faz cócegas com essa dobra de bico. Mas aos
poucos, também a distensão dos objetos se faz calma e o seu sono de lentidão nos
atapeta o pensamento.
Quando me
deitei, os vidros da janela faziam peito para os caixilhos, vejam lá se param com os esticões que ainda
caímos e não se aproveita nada. Eram conversas de sono, tão de hábito que
desliguei e entrei a pensar no dia seguinte. O último. Jogava tudo. E não podia
perder. Quem seria capaz de me ajudar?! As minhas duas amigas, não. Uma vivia
longe. Com a outra já tinha desfeito uma festa promissora - a ideia de casarmos
no mesmo dia – e ela esquivava-se à minha pessoa, cativada por gente mais
expedita e interessada em crescer. Passei aos primos que viviam próximo. A minha
prima mais velha era uma senhora – usava sutiãs bicudos, meias de vidro e saias à godés. Nunca percebi a razão de godés, termo que só me lembrava o nome
daqueles caquitos brancos onde diluíamos guache e aguarela, que em férias eram
pratinhos emprestados às brincadeiras das minhas irmãs. Admirava a minha prima.
De joelhos. Sem um átomo de inveja a estragar a contemplação. Extasiava na sua
exuberância juvenil com não menos admiração que a chusma de rapazes que a
rondava. E eu impante da sintonia com tanto alguém. Hoje, admito diferença na motivação. A minha prima Zita pintava os lábios de cor-de -rosa e depenicava
as faces, tenho a cor por igual? E eu
na importância de julgá-la. Mas a sacerdotiza não me ligava meia. Pior,
esquecia-se que o primeiro namorado tinha sido eu a arranjar-lho. A mal
agradecida. E não sabia andar de bicicleta. Portanto...
O Artur, que
tinha a minha idade, não acertava comigo excepto no folclore e aos treze anos
pensava que era homem; tinha um estar impaciente que não me servia. E logo o
deixei para trás. Na verdade, tinha um outro primo, meu vizinho de infância, que
à mínima zanga corria para casa a buscar o sacho e voltava aos gritos de, vou-te cortar as pernas, enquanto eu
desabalava a correr, ó mãããeeeee!!!, superando
marcas à medida que a voz dele – e o sacho - mais próxima. A corrida terminava invariável à
porta de minha casa. Julgo que se divertia bastante e que, quando eu sentia a
mão a rasar-me a roupa, atrasava o passo e, de propósito, não me apanhava. À cause de cela, ainda éramos inimigos.
Portanto, bani-o. Restava o meu primo mais novo, que tinha uma bicicleta e
sabia andar; muito paciente. E não pensei mais. Larguei a dormir dentro da
irrevogável certeza: o Jaime era o único capaz de me ensinar.
No dia
seguinte, executei. Fui ter com ele e expliquei-lhe a situação que traduzida
deu, tia, o Jaime pode ir almoçar com a
gente? E fomos os dois. No caminho, pu-lo ao corrente do meu estado, não sou capaz de dar aos pedais e olhar para
a frente. Ele teria uns dez anos. Olhou-me sem surpresa e perguntou, o que te custa mais? E eu, guiar. E logo uma solução à medida. Eu empurro e tu guias e olhas para a frente.
Eu incrédula, esperança toda nova, a
sério que és capaz de me empurrar? Não me cabia pôr condições, mas ainda
assim arrisquei, vamos até ao meio da herdade
que ali ninguém vê. E o meu primo logo que sim.
Guardo uma
imensa ternura por aquele garoto asmático e cheio de eczemas que resfolegava
atrás de mim sem desistir de empurrar e segurar a bicicleta enquanto eu,
completamente desvairada, arremetia para todos os montes de cardos que
bordejavam as veredas. Como ele se recusasse a entrar em tanto pico à molhada,
largava por vezes o suporte da bicicleta e eu caia despedida. Com o penso todo de lado, a
meia cheia de picos e palhas, as mãos uma lástima. Fazíamos uma pausa.
Esbaforido, o Jaime sentava-se vermelho, o suor a espreitar-lhe a pele em
bolhinhas pequenas. Eu, ai se a tua mãe
te visse. Tens de descansar mais tempo. E, ainda assim, ele arfava contente, já te larguei um bocadinho e não deste por
isso. Mas nunca acreditei. Brincadeira. E respondia-lhe, Jaime, não desistimos tá bem? Se ficares
muito cansado, descansamos. Tirava a meia, endireitava o penso,
o meu primo aproveitava para espreitar as feridas e soprava para dentro a fazer
um barulhinho com a boca que me garantia que não eram pieguice. Então,
procedia à limpeza da meia e voltava a calçá-la. Depois mostrava-lhe as bolhas
das mãos e ficávamos a conferenciar sobre se devia rebentá-las ou não,
tirávamos os picos maiores da mão direita um do outro, púnhamos os chapéus de
novo na cabeça, lamentando não haver água para beber e, mal me sentava na
bicicleta, saía da vereda e embicava num sobreiro, a roda da frente num sobressalto confrangido a recuar em zonzo ricochete, desculpe, não tinha intenção. O meu primo não comentava e,
mansamente, ajudava-me a voltar ao trilho. Mas eu resmungava
comigo e quase chorava, olha para isto,
não sou capaz de aprender. Apesar desta choradeira esporádica, ia cantando
as canções que ele pedia e mais outras que sabia e nem eram de época;
cantava o mon beau sapin e os
sobreiros de boca aberta que será isto, sem
entenderem patavina. E suponho que o Jaime contente, empurrar uma prima
que canta francês não é igual a nada. Entretanto, aborrecida que sou, pedia-lhe
a opinião para tudo Jaime, Jaime, Jaime…até que uma vez perguntei e não
respondeu. Olhei para trás e ele não estava. Caí um trambolhão. Dos melhores. O
Jaime apareceu a correr, aflito da asma, a entrecortar, o dedo uma autoridade, vieste… desde… lá de cima.
E depois,
quais deuses, descansámos.
Ando por aqui a bisbilhotar e li a história de fio a pavio. Adorei!E ri-me em várias partes:)
ResponderEliminarNão sei andar de bicicleta e já não tenho idade nem paciência para aprender, mas este relato de persistência, quase me faz ir a correr comprar uma bicicleta e aprender. A sério!!