Olhando para trás, reparo que os meus ímpetos repentistas não deram os
frutos mais doces. Mas, ainda assim, defendo o despontar dos pêssegos que
inauguram o verão, o negro oscilante das primeiras amoras, e até o sabor meio
aguado de melancias apressadas. E é na vida também assim. A doçura, toda ela,
precisa de tempo e calor próximo, maturação de suavidade que acentue o sabor açucarado
a alargar pela polpa. Ora, os repentinos de nós, idênticos aos primeiros frutos,
vêm a desejo, falta-lhes a macieza aromática que só tempo e calor conseguem.
Mas têm um quê de alegria inesperada, uma força de vingar que se impõe a
despedir. Não intencionais, portanto. E que podem até, ser golpe na paisagem.
Pensei que o jantar seria boa altura para o anúncio, a modorra do dia a
esvair no próximo de haver noite. E, toda gente concentrada na refeição, atirei,
“a Francesa vem à nossa casa para a semana”. E logo um inabitual de talheres. Os
meus pais suspenderam-se-me os dois no rosto e, o quê? Não pode ser. As minhas irmãs e o meu primo remelgaram os olhos e pararam de mastigar, o mecanismo
das bocas avariado a meio caminho da função, esquecemo-nos, podem-nos dizer como continuar? Só o meu irmãozito,
a cara a despontar do tampo da mesa, é quem
a Fancesa? Limpei-lhe a boca com a rodilha enquanto, é a da fotografia, quando chegar logo vês. E no meu entusiasmo
continuei, está em Braga com os pais e
diz que me quer ver. Vem com a família. A estas palavras, um raio de novidade esperançosa brincou
nos olhos dos garotos. O meu manito, desligado da conversa, fixava-se na sopa, às voltas com um veio de
espinafre que pretendia fora do prato, o dedito a ajudar. Limpei-lhe a mão, não se põe o dedo na sopa. Mas o dedinho
de anzol com vida própria, a insistir na direção do espinafre que lhe fugia. A
minha mãe sem ver nada disto, a decepção uma doença a comer-lhe os olhos, a voz
sem fundura, em constatação, tens de
escrever à Francesa. Dizes-lhe que não pode vir. O meu pai do seu lado da
mesa resmungava qualquer coisa parecido com, a francesa, a francesa… tu só arranjas chatices. Entendi de repente
que os meus pais não a queriam em nossa casa. Mas eu já tinha respondido que sim e
a data da visita estava marcada para daí a dois dias; não tínhamos telefone e carta
que enviasse, já não a encontraria. Mal disse isto, o meu pai exaltou-se a
acusar-me que eu não mandava e não podia decidir e a minha falta puxou uma
lesta gritaria que devia estar atravessada em qualquer lugar, tal a presteza
com que se apresentou; e desatou a esbracejar, quem sabe a afugentar a
francesa. E logo os talheres caíram de medo e os garotos só olhos, a diminuírem
nos lugares, as cadeiras, que é isto, são
outros, sobra-nos assento; o meu irmão, sinais de sopa por toda a cara,
fazia beicinho na cadeira, os olhos postos no pai a arrasarem de água. Eu contive-me a princípio e apresentei
razões, mas a certa altura fiz o que me apetecia e larguei a chorar na
lengalenga do costume, lágrimas, ranho e palavras em simultâneo, que, como é
sabido, não é boa solução de nada. E logo o garoto mais novo alinhou na
choradeira. Creio que alimentámos a fúria do meu pai com lágrimas porque
começou o tilintar de copos e pratos. Nesse momento, entrou um ânimo inusitado
ao meu irmão que embalou o choro e abriu em berraria. A minha mãe pegou-lhe ao
colo e tentava calá-lo, silêncio apertado nos lábios. A essa altura do
campeonato, também ela já era culpada do meu erro e por várias razões
disparadas em tal força que, mais tarde, ao levantar da mesa, procurei
estragos, um buraco em qualquer lugar, uma amolgadela… Entretanto levantei-me e
fui assoar-me e lavar a cara; quando voltei para a mesa, a calma reinava e o
meu pai comia muito interessado nos desenhos de passarinhos do prato; talvez
estivesse a jogar o nosso jogo da sopa, que ia de vitória em vitória: ganha quem descobrir primeiro o ramo dos
pássaros inteirinho, agora ganha quem descobrir os dois riscos do meio do
prato, agora ganha quem descobrir o desenho do fundo do prato. Morta a
nossa alegria, tudo era silêncio. E não parecia a minha casa onde todos
falávamos uns com os outros na hora das refeições, e sempre as peripécias de
crianças: alguém entornava o copo da água, deixava cair a rodilha, o pão, os
talheres. Não comer descansados era a nossa forma de descansar e nos
divertirmos. Os meus pais eram muito tolerantes acerca da
nossa maneira de estar à mesa e creio que gostavam de nos ter assim infantis e
vivaços. Era muito raro zangarem-se por brincadeiras que davam mal, como entornar
o copo da água, deixar cair comida na toalha nas pressas de corridas que inventávamos
para comer mais rápido. Mas quase nunca escapávamos à palmada se
deixávamos cair a colher da sopa quando empreendíamos em alimentar-nos uns aos
outros com a boca – não podíamos usar os braços, segurávamos a colher nos
dentes e alimentávamos assim o colega do lado. Se nos ríamos, perdíamos a força
nos dentes e a colher caía a respingar sopa para todo o lugar.
E quando o meu pai se levantou da mesa, olhou-me sério e disse, Não quero saber da francesa para nada,
arranja-te com a tua mãe. Desenrasquem-se. Não me interessa onde cabem mais
oito pessoas nesta casa. Quero lá saber disso. Os meus irmãos e o meu
primo, um imediato de sorrir. A minha mãe baixinho, Ai valha-me Deus. E eu, inconsciente e meio burrinha, exultei.
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