O pensar adolescente é feroz. Alarga-se num mar de inocência que falha a
justiça e salta sobre males quotidianos, como se o mundo um deserto apenas
povoado dos sonhos e verdades que planta e faz florescer. Floresta intrincada
de si sozinho, impõe-se a proliferar no grande de si mesmo, cego para o mais. Por
isso, tudo me parecia fácil. A hipótese de que a Bernardette na minha terra,
que não passa de um lugar e perde para qualquer aldeia, bastava-me; garantia-me
que a iriamos receber.
A satisfação que me possuía arredou ses. Descontei a evidência da doença. Desviei o macilento
grave da minha mãe que mirrava diária, à força de quase tudo deitar fora, o inchaço
de uma perna a arrastar. Os médicos no IPO, a
senhora não precisa voltar, agora vai ao seu médico. E ela sozinha no
encapelado da doença, mas não estou
curada, sinto-me cada vez pior; eles em pressas de pena, talvez, não podemos fazer mais nada por si. Ela e a doença. As duas. Perdidas nas ruas de Lisboa. A olhar para onde. Pedindo o quê. O
pensamento dela, de certeza, os meus
filhos.
Mas ultrapassei tudo isto e não me assaltou a lembrança da tosse persistente a desfazer-lhe a vontade e roubar-nos o sono, eu a prometer impossíveis de terços diários e até a temida consagração religiosa. Noites e noites a elevar a fasquia das promessas à medida da tristeza em desesperança. A contar horas e meias horas no relógio da sala, enquanto a sistematicidade da tosse, imune a remédios e mezinhas, a arrancava de si mesma. A tosse que rematava o trabalho do cancro e escavava no corpo as suas crateras, as minhas pálpebras a incharem sem préstimo. Mas um Deus barreira. Em rejeição determinada. Que nada quis do que ofereci e nem sequer me tomou quando propus a troca.
Mas ultrapassei tudo isto e não me assaltou a lembrança da tosse persistente a desfazer-lhe a vontade e roubar-nos o sono, eu a prometer impossíveis de terços diários e até a temida consagração religiosa. Noites e noites a elevar a fasquia das promessas à medida da tristeza em desesperança. A contar horas e meias horas no relógio da sala, enquanto a sistematicidade da tosse, imune a remédios e mezinhas, a arrancava de si mesma. A tosse que rematava o trabalho do cancro e escavava no corpo as suas crateras, as minhas pálpebras a incharem sem préstimo. Mas um Deus barreira. Em rejeição determinada. Que nada quis do que ofereci e nem sequer me tomou quando propus a troca.
Talvez eu tenha querido esquecer essa aflição de loucura. Ou apenas
uma vitória da idade, bandeira a agitar, estou
aqui, existo. Quem sabe… Obliterei tudo: a nossa casa quase despida; o não
termos maneira de alimentar tanta gente; a ausência de lugar para deitá-los; a
minha doce mãe a quem já um tão excessivo no quotidiano.
E talvez que um Deus compassivo.
Na manhã seguinte, a mãe do meu primo, nossa tia preferida, chegou inesperada;
uns dias connosco e com o filho. A minha tia era alegre, trabalhadeira de
maneira e feitio, e, nas horas de calor, o ar a tremer, enquanto nós
espapaçados no poial da rua, à sombra quente da casa, ela corria ao tanque de
rega a encher baldes de água que deitava no cimento do quintal. Se eu, só a
mexer a boca, o suor a alagar, tia, isso
para que é? Ela atirava a água com raiva, uma nuvem de calor a exalar da
fervura no cimento, sei lá filha, não posso
estar quieta, ainda me faz mais calor. As visitas da minha tia passavam em alegria. Fazia-nos surpresas doces e refeições novas, cozinheira
de mão cheia que era. Pelo meio dos dias, entremeava gargalhadas em histórias
de gente desconhecida com vida díspar, num país que lhe vinha na voz e nos soava bem melhor que Portugal. E nunca um lamento do aperto de saudade que o
longe do filho lhe trazia. Nunca uma lágrima pela submissão de vida toda. Não
sei se a minha tia era alta, mas era mulher de encher lugares. Contudo, não
encheu o coração do único homem que gostou. O meu pai não distinguia o meu
primo dos filhos e gostava da cunhada; e ela estar ali desfazia-nos os nós.
Porém, dessa vez, a minha tia séria e pensativa em ocasiões muitas.
A mãe queria dar-me o gosto de
conhecer a francesa; mas não sabia nem tinha saúde para pensar no como de bem receber. E logo dividiu com a irmã. Num ápice, ela
alisou refegos preocupados, planeou refeições e deitou cálculo a doces que faria
com os ovos que tínhamos na capoeira mais os que viriam. Mal destinou o jantar
dos franceses para o dia seguinte, tratámos do almoço. Sob a sua batuta, decidiu-se o que fazer durante a tarde e repartimos funções: a minha mãe matava
e arranjava a criação; eu limpava a sala e faria um bolo. Os meus irmãos e os
meus primos iam aos pinhões, ou seja às pinhas, com que a tia adoçaria os franceses; ela ia escrever a lista de necessidades da mercearia e tratava
das carnes. Unidas neste conluio, serenámos; e a mãe quase contente.
Os meus primos
(a filha de uma outra tia que vivia no monte, quis acompanhar) e os meus
irmãos, imediatamente a seguir ao almoço, foram para o pinhal, contentes e livres. Entretanto,
comecei a limpeza enquanto a minha tia listava compras num monólogo de substituir ingredientes quando nós, não há; ou, também não há. E a minha mãe, gaveta dos talheres aberta, entretinha-se a verificar o agudo das facas, a fim de minorar a agonia dos pobres
galináceos.
E, de repente, uma batida
apressada no vidro da janela da cozinha. Viemos a correr e afastámos a cortina.
Uma outra vizinha do monte, ar abismado, o rosto no completo do vidro,
olhos escancarados de admiração como se ali marcianos
- Ó Vizinha,
vêem aí os franceses!
Olhámos umas para as outras, a vizinha dentro do circuito. A minha mãe,
faca na mão, embasbacada. Eu olhei a estrada e vi um carro muito comprido, com
uma roulotte atrelada, a entrar no portão que
não havia. E no meio do estupor que nos pregava ao chão, murmurei
estupidificada
- São mesmo eles,
mas era só amanhã à tarde...
E o rosto da
vizinha ainda a encher a janela, uns olhos desmedidos.
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