Hoje é Dia da Mãe e, supostamente crescida, sou isso também. Quotidiana,
uso perto a foto em que uma ternura inomeada me abraça. Se a olho, – tanta vez
a olho – sempre as palavras de Eugénio a corporizar desvelos de amor “como se
tivesse medo que tropeçasses numa gota de água”; e agradeço a coincidência do
sentir com o ser, naquele gesto fixado por feliz objetiva. Próximo, em fraterna
amizade, um poema escrito na primária, que me é presença embevecida. Anjos a
cuidar-me a existência. Que leio e contemplo se azedo com a vida, se ela me
surpreende em negativos desinteressantes, se indeciso ou me engano a escolher,
o mundo em escuridão no pleno do dia.
Contudo, mais me lembro hoje de ser filha. O coração dispõe-te mansamente
ao alcance da saudade. Dentro dela. Não já a saudade ingente dos primeiros
anos. Não aquela quase impossibilidade de vida. Não a mordaça de tristeza que
desatava as lágrimas. O Tempo retirou espinhos; primeiro os mais agudos e
depois, pouco a pouco, limpou a haste em que vicejas. E hoje, pego-te em
confiança. Sem sangue. E retomo o hábito antigo de escrever-te. Não, mãe. Já
não escondo as cartas na tua mala. A tua mala. Com o teu cheiro meio doce, os
teus papéis, a marca dos teus dedos, pássaros aflitos a segurá-la. Que,
imagino, estará ainda guardada no guarda-vestidos vazio do tudo que era teu.
Onde continuam, fechadas, as minhas cartas. O pai conservou anos o teu vestido
das cornucópias, eu a abrir a porta e mergulhar os dedos no macio. E imagino que
lhe tenha sido companhia. Mas um dia abri o guarda-vestidos e só a mala. E não
se descreve o desânimo incrédulo da minha mão no puxador, os dedos todos, e
agora? Corri a perguntar à tia e ela, o teu pai não o queria, deu-mo, mas não
fui capaz de o vestir. Dei-o a uma mulher que não era daqui, não aguento ver
alguém com ele. Rodopiou e foi à sua
vida. Fiquei em silêncio. Ofendida. Sabia-me a traição e desamor que nem a
pergunta, queres?
Tínhamos comprado o tecido juntas, ido as duas à primeira prova. Uma
costureira jovem e solteira agachada a marcar-te a bainha com uma almofada de
alfinetes no braço, um relógio que em vez de ponteiros um feixe de lanças
enchapeladas, todas muito finas e senhoras do seu ângulo, os alfinetes a empertigar,
olá como estão. Entretanto, as unhas ovaladas e compridas, gotas de sangue a
rodar-te as pernas, num sorriso agradado, esta senhora tem um espírito tão
jovem que me deixa admirada, é tão diferente das outras senhoras. E eu a inchar
de orgulho. Mais tarde, na vila, escolhi e comprei os botões e fui entregá-los
na costureira. E um dia fui de bicicleta buscar-te o vestido e pagar o feitio.
E ficaste linda dentro dele.
Mas as gentes pensam apagar as pessoas fazendo desaparecer tudo delas.
Queimam. Dão. Vendem.
Não ficou nada, Mãe. Só tu. Mesmo.
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