Quando crianças, somos crédulos superlativos. Tudo que nos contem, com
pouca ou muita convicção, passa como água. Porém, com o correr dos anos,
tornamo-nos menos confiantes: existe aquilo em que não acreditamos, mas quantas
vezes gostaríamos de; o que se nos atravessa na garganta a travar-nos o
respirar da vida e que decidimos engolir ou deitar fora; e o que aceitamos sem
contestar. Em cada homem, a proporção destes três factores é arbitrária, no
sentido de puramente pessoal, e decorre da convergência entre a natural
apetência do indivíduo e um esforço da sua vontade.
A minha credulidade infantil raiava o absurdo. Basta lembrar as muitas
vezes que envergonhei publicamente a minha mãe por me deitar a discorrer sobre assuntos dos mais velhos a que ela,
perigosamente, respondia em casa com mentiras simples em que eu acreditava
piamente. Talvez por terem rodas e se moverem, ou por qualquer outra obtusa
razão, os comboios e os autocarros levavam-me o pensamento para esses temas. É
que bastava pôr lá os pés. Ora, o pensamento infantil é de alto som, portanto, imagino
que o embaraço de minha mãe fosse proporcional à diversão dos vizinhos próximos,
enquanto eu confrontava a sua explicação com a realidade, ou o pouco que dela
sabia.
Agora que os anos passaram, poderia afirmar que alguma coisa dessa crença
inaudita nos outros me atravessa a vida a contragosto. No entanto, o que se me
entranhou não pode chamar-se apenas confiança nos outros. É qualquer coisa mais
infantil. E que me vem, quem sabe, daquela mãe envergonhada que não respondia
às minhas invectivas públicas, de inadvertido descaro. Habituei o espírito a
fazer as suas respostas. Sumariamente, é isto que não consigo perder.
Pode alguém acrescentar ser desejável essa construção do espírito. Seria
desejável. Seria. Se o meu espírito tivesse crescido. Mas o palerma ainda hoje
copia as respostas simples e asnientas da minha mãe. Resultado: sou uma mulher
madura com a alma de trancinhas e laços na ponta. Convenhamos: fica mal.
Por exemplo, fui dar um passeio com uma colega. Quando passeio, se me
cabe dirigi-lo, não sei porquê, mesmo que vá ao acaso, acabo sempre em
cima de uma ponte a olhar uma linha de comboio. E também hoje. Enquanto eu
hipnotizava no paralelismo dos carris, a minha colega tirava fotos. Eis
senão quando surge um comboio e apita. A colega contente, apitou para nós. E eu
convicta, como se tivesse tirado o curso de maquinista e soubesse tudo sobre
comboios, não, não, os comboios apitam sempre que passam numa ponte. Ela suspeitosa, a olhar-me nos olhos, em inflexão prolongada, ai é?! - e de imediato - Olha, além à frente há outra ponte, vamos
ver se apita… Pusemo-nos à escuta. E só o marulhar profundo do vento nos
pinheiros em seu manso jeito de búzio, um grilito histérico aos nossos pés e o som do
comboio a esvanecer para lá da ponte, e já não ele mesmo, só uma tira cinzenta a
rastejar na lonjura. Ela triunfante, um assomo de vaidade caseira, era para nós, vês, vês... E eu ainda sem atingir, a
olhar o amarelo perplexo do ramo de flores, mas quando vou de bicicleta até à outra
ponte, o comboio apita sempre…
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