sexta-feira, 26 de julho de 2013

As Raparigas

Era frequente acordar com um chamado insistente como nas madrugadas em que precisava estudar e a mãe quase no seu ouvido, filho. Uma voz desconhecida e, contudo, sabia-lhe o nome, Afonso. E ficava a repeti-lo, perto do rosto, até que acordasse. Uma voz de chamá-lo. Como de alguém por incumbência. Um sinal de despertar, Afonso. Abriu os olhos e no meio da escuridão voltou-se para o som. Palpou o ar. E no escuro, no meio do escuro, nada. Voz nenhuma. Ninguém. Estendeu o outro braço e a presença da mulher retirou-o do sonho. Adormecida no seu jeito arrumado, quase a pedir desculpa à cama pelo uso. Tempos houvera em que se levantava de imediato, calçava os chinelos e desatava a escrever. E logo o cão se soerguia em estremunhada surpresa, uma interrogação cabisbaixa dentro dos papos dos olhos, a esfregar-lhe a mansidão no pijama. Mas uma manhã Mariana queixosa, parte-se-me o sono se andas pela casa a desoras, como um fantasma. Imaginou-lhe o sono a estilhaçar pelo chão do quarto, nas paredes, nos vidros da janela. E passou a entreter-se quietamente com o silêncio. Tomava-o nas mãos e ficava a rodá-lo por todos os lados dos minutos. Conhecia-lhe as horas pela qualidade. Se acordava e nem um som de automóvel, seriam as três; se um rodado retardatário ou vespertino, as duas ou as quatro; se um piado de pássaro solitário, as cinco; se os pássaros já repontavam contínuos, as seis.
Para que voltaste. Escrevê-las porquê - perguntou-se. Olhou outra vez o vulto da mulher, a respiração a levantar e a baixar levemente o lençol. Lembrou a voz baixa de Mariana, um nada de alteração, abomino aldeias. Cheias de velhas, desertas de pessoas interessantes. Não podes ir sozinho? Que te falta aqui para escreveres um artigo sobre essa gente? Não tens lá ninguém, os teus amigos estão em Lisboa.
Mas viera. Notou que dormia de lado, a linha da anca a demarcar-se. Passou a mão a descair-lhe para o fino da cinta e a subi-la depois até ao redondo do ombro. E nasceu-lhe uma ternura de tê-la assim abandonada, o cabelo atravessado sobre o rosto, a descobrir a linha do pescoço. Beijar-te. Tão quieta e inocente que sempre foste. E a dúvida um espigão que dói quando pisamos, para que voltaste. Não sabes. Mas tinhas de vir em urgências de tem de ser.
Os pais tinham fechado a casa da aldeia mal lhe chegou a idade de estudar. Na escola nova os rapazes de soslaio, “patêgo”. A mãe em casa, tu és bom de bola, vais ver, marcas golos e logo esquecem. E foi mais ou menos o que aconteceu, os amigos recentes a chamá-lo da entrada do prédio, Afonso. A princípio, voltavam os três, em férias pontuais. A mãe, olhos de pássaro, a alargar sorrisos para a vizinhança em gorjeios de, só aqui respiro, enquanto o pai e ele amontoavam um nunca de bagagens no hall de entrada, mil olhos de criança a espreitar-lhes os movimentos. E depois que crescera, as intermitências de, não vou, preciso estudar; ou, tenho umas coisas para fazer, agora não posso. E as coisas por fazer às vezes eras já tu Mariana. E outras, o meu receio de. E não vinha. Adiava. Mas não. Não te comparei com a saia de canudos. As pessoas não se comparam. É certo, procurei em ti um olhar que não sei dizer. Que procuro ainda. E quem sabe onde mora. Se mora. O que podes temer de raparigas que hoje são velhas, Mariana. Sou eu a procurar-me ainda. Como fui. Um homem leva vida a entender-se com a infância. Que quando ali, apenas vive.
Pensou no encontro do dia anterior. A menina Cidália, os agudos da juventude reclinados em chaise longue, mantinha ainda uma certa aristocracia juvenil nos gestos pesados. E na devastação do rosto, os olhos verdes despediam as mesmas centelhas douradas, restos da rapariga que conhecera, toda frescura. Ouviu o primeiro piado. Breve. Medroso. Cinco horas, anotou.
Escrever-te, Lu. Trazer-te para fora de mim. A apareceres na tua vez de ser. Inteira e intensa, ao sol da memória que me escorraça. Tu. A nasceres de arabescos numa folha. A seiva das palavras a insuflar-te o ar e o sangue, gestos, respirações pelos ângulos de ti, uma alma que te não cabe nos olhos, se alonga pelo corpo e, meu deus, se mistura nos teus tornozelos finos a encaminhar-te os passos. A Mariana, em que pensas? E eu presa tua, atado na parte da alma que trazes nos tornozelos; a disfarçar sorrisos, no artigo de amanhã, tenho uma pesquisa em meio e falta-me muito trabalho. E tu ajoelhada, a levantares o rosto no teu sorriso triste de atar as sandálias – tens um sorriso para cada momento – Não existo.
Certa noite divagante, a impertinência do João, olhos de fixidez bêbeda, a Mariana é o teu sonho realidade? Ou há um sonho-sonho? E a mentira pronta, a afugentar-te de manso, mão esquerda que atira longe o incómodo de uma mosca, não sonho; a Mariana é a minha realidade. E a ver-te de novo, pendurada no inóquo rebordo de um copo, o sorriso amargo, não existo.

(continua)

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