Temos
dificuldade em dizer as mágoas da vida. Mágoas são como pedras no rim, a mínima
saliência arrepia, o sopro de um movimento dói. Por vezes, a escrita devém
substância química e desfaz algumas. Outras desfazemos bebendo água - e cada um
sabe do seu H2O - . Ainda não descobri a minha água para deitar fora esta
tristeza de tanto fogo a queimar a terra a que dedico talvez mais amor que os
papas. Não a beijo, como eles, de rabo para o ar (perdão, senhor papa) mas sofro-a
na alma que não sei se tenho e no corpo que me é certo. Imagino-a indefesa às chamas que, em ápices
ventosos, a vão exaurindo de si e lhe calcinam a continuidade da vida.
E
os telejornais apostados em que não esqueça, mostram-me olhos gastos de choro,
rugas vincadas de desgosto, desalento de quem viu arder o esforço de muito ano.
Tudo
que era nosso, perdido. Já imaginaram? É que não consigo.
E
os bombeiros exaustos da luta insana onde vários já tombaram. É como se as
chamas tenham endemoninhado e tudo arda em sofreguidão e voracidade, violando
num repente todas portas. Matando sem destino. O fogo é ausência de
interditos.
Certa
vez em que passava a ferro, distraí-me e queimei meio centímetro das costas da
mão. Primeiro, senti a violência da dor na cabeça, como um choque eléctrico; só
depois a mão se tornou tão dolorosa que agigantou e foi como se só ela
existisse, o resto do corpo elidido. Hoje é pele morta, em cinco milímetros da
minha mão, sinto nada. Penso nos bombeiros que morreram. Lá. No meio do
fogo. Ou que sofreram queimaduras de tal índole que o corpo não as aguentou e
desistiu. E não me conformo.
Nas condolências a familiares afirma-se, era voluntário/a, cumpria a missão mais
nobre, morreu a defender os outros do flagelo mais atroz. Coisas assim. Mas
se eu fosse mãe, mulher, marido, namorado, amiga/o, para além da perda
ficava-me a certeza profunda de que o mais atroz é morrer queimado.
Ainda
nunca entendi o critério das presidências para as condecorações no 10 de Junho.
Mas
sei que os bombeiros são os heróis do povo. Os que morreram. E os que não.
Bem
Hajam
PS:
e também sei que nada disto aproveita à minha pedra ou a eles. É um zero à
esquerda. O meu zero.
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