Sabemos
da proximidade da praia pelo sol a irradiar nos olhos, pela areia solta que
afina e descomprime, pelas ondas e seu fundo mareado de conversas em surdina. Mas,
na época balnear, mais que a luz, o marulhar ou a individualidade da areia, existem as
vozes. A sobrepor. Em algazarra. Misturam-se gritos e risos, telemóveis
estridentes a alternar com frases soltas. Displicências e avisos rudes boiam em
claro dia, olha-me bem para aquela,
cruzado com o peremptório, anda já para
aqui ou ainda te amarro ao guarda-sol. E a natureza expõe-se em contracção;
distende o seu de fora e privatiza o
mistério impermeabilizado pelo som. Protege-se. E oferece-se pública, tecida em
paciência secular.
Mas
chega um dia em que a natureza vira a página e no verso se revê. Cessa a
vozearia e no fim do matiz de cada onda, sub-reptício, percebe-se enfim o canto
da água. Surge em sobreposição quase unívoca com o desmanchar da onda, sob ele. O movimento das gotas, em brincadeiras de alegria que rasam a areia, deixa o
ligeiro de um lastro sorridente. Suspenso em brevidade, fica no ar o timbre saltitante
da água que entrechoca a tilintar doçuras, partido já o ímpeto. Risos de infância sem mágoa. Até que nova
onda os apague. E renove. Como a surpresa das coisas pequenas se esvai no
barulho de viver!
O
areal, varrido das efemérides do verão, retoma em extensão um clean que apraz, chamado de gaivotas em
arabesco, a traçar caminhos de areia. Uma assinatura legível. Até que o vento.
Ou uma onda. Na perfeição inadvertida do desenho, cabe o peso da gaivota, a sua
posse leve e momentânea do lugar de perscrutar horizonte em certezas de
pássaro. Que nenhum pássaro é incerto depois que voa; será por falta de asas
que tanto falha aos homens o ser seguro. E a areia enche-se de rumos de
encruzilhada, caminhos de quem voa e precisa ter pé. De quem está só, mas adormece em bando.
Nesse
tempo, a meio da tarde, piados tristes certificam a proximidade da areia onde, em
voos rasantes, as aves pousam convictas. A areia. Que descansa de agudas perfurações
de guarda-sol e de ser cama de gente. Liberta do peso infinito, constante, de
haver nela o estigma de mal necessário, sempre enxotada a palmas de mão aberta.
Mas as gaivotas escolhem-na para o sono e ali se juntam a pernoitar.
Entrechamando-se, talvez. E, sem barulho, se dispõem em composta formatura. Nas
humidades e brumas matinais, empenhadas nas funções de ser gaivota, a areia guarda-lhes a frescura dos hieróglifos embebidos a maresia. E observa-lhes o vôo a curtir desejos do seu estar
airoso e quieto, da sua leveza de pássaro, a seda das penas a encostar. Asas
que as levam, hão-de trazê-las.
O
tempo prepara-se. Há-de regressar o frio em sua aspereza de vento que arremessa
areias sem direcção, alteia vagas que trovejam e afasta pés de caminho e dedos
de levante. Trazida por sua mão se instala a chuva que mistura todas as gotas e enterra na areia empapada, ora agreste ora suave, alheia da música ou poesia que leva a outros lugares. Nesses
dias de lâmina, as gaivotas volteiam pios aflitos e poisam fixos vagares, que
guardam por indeterminado tempo, no mais alto dos penhascos. Prévio, em
introito, o sol ainda arredonda preguiçoso, e, num agrado das asas sobre o mar, semeia
rastos amarelos no espelho de água onde os peixes reinam em frieza e indiferença.
E
a natureza formiga o inexorável esplendor do tempo que acontece.
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