quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Certezas de Pássaro

Sabemos da proximidade da praia pelo sol a irradiar nos olhos, pela areia solta que afina e descomprime, pelas ondas e seu fundo mareado de conversas em surdina. Mas, na época balnear, mais que a luz, o marulhar ou a individualidade da areia, existem as vozes. A sobrepor. Em algazarra. Misturam-se gritos e risos, telemóveis estridentes a alternar com frases soltas. Displicências e avisos rudes boiam em claro dia, olha-me bem para aquela, cruzado com o peremptório, anda já para aqui ou ainda te amarro ao guarda-sol. E a natureza expõe-se em contracção; distende o seu de fora e privatiza o mistério impermeabilizado pelo som. Protege-se. E oferece-se pública, tecida em paciência secular.
Mas chega um dia em que a natureza vira a página e no verso se revê. Cessa a vozearia e no fim do matiz de cada onda, sub-reptício, percebe-se enfim o canto da água. Surge em sobreposição quase unívoca com o desmanchar da onda, sob ele. O movimento das gotas, em brincadeiras de alegria que rasam a areia, deixa o ligeiro de um lastro sorridente. Suspenso em brevidade, fica no ar o timbre saltitante da água que entrechoca a tilintar doçuras, partido já o ímpeto. Risos de infância sem mágoa. Até que nova onda os apague. E renove. Como a surpresa das coisas pequenas se esvai no barulho de viver!
O areal, varrido das efemérides do verão, retoma em extensão um clean que apraz, chamado de gaivotas em arabesco, a traçar caminhos de areia. Uma assinatura legível. Até que o vento. Ou uma onda. Na perfeição inadvertida do desenho, cabe o peso da gaivota, a sua posse leve e momentânea do lugar de perscrutar horizonte em certezas de pássaro. Que nenhum pássaro é incerto depois que voa; será por falta de asas que tanto falha aos homens o ser seguro. E a areia enche-se de rumos de encruzilhada, caminhos de quem voa e precisa ter pé.  De quem está só, mas adormece em bando.
Nesse tempo, a meio da tarde, piados tristes certificam a proximidade da areia onde, em voos rasantes, as aves pousam convictas. A areia. Que descansa de agudas perfurações de guarda-sol e de ser cama de gente. Liberta do peso infinito, constante, de haver nela o estigma de mal necessário, sempre enxotada a palmas de mão aberta. Mas as gaivotas escolhem-na para o sono e ali se juntam a pernoitar. Entrechamando-se, talvez. E, sem barulho, se dispõem em composta formatura. Nas humidades e brumas matinais, empenhadas nas funções de ser gaivota, a areia guarda-lhes a frescura dos hieróglifos embebidos a maresia. E observa-lhes o vôo a curtir desejos do seu estar airoso e quieto, da sua leveza de pássaro, a seda das penas a encostar. Asas que as levam, hão-de trazê-las.
O tempo prepara-se. Há-de regressar o frio em sua aspereza de vento que arremessa areias sem direcção, alteia vagas que trovejam e afasta pés de caminho e dedos de levante. Trazida por sua mão se instala a chuva que mistura todas as gotas e enterra na areia empapada, ora agreste ora suave, alheia da  música ou poesia que leva a outros lugares. Nesses dias de lâmina, as gaivotas volteiam pios aflitos e poisam fixos vagares, que guardam por indeterminado tempo, no mais alto dos penhascos. Prévio, em introito, o sol ainda arredonda preguiçoso, e, num agrado das asas sobre o mar, semeia rastos amarelos no espelho de água onde  os peixes reinam em frieza e indiferença.

E a natureza formiga o inexorável esplendor do tempo que acontece.

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