Talvez
eu devesse escrever sobre política, porque se vive ainda o rescaldo de eleições
autárquicas. Ou seria mais eficaz alargar horizontes e discorrer acerca de um
problema premente que seja notícia no mundo. Mas não me apetece. E neste espaço
só escrevo de apetite. É tão reduzida a gente que me lê, que, sorry, a esqueço. E é bom que assim
seja. Lembrar-me seria contrair um quê de obrigação. Sou assim, de me obrigar a
coisas que não passam pela cabeça de pessoas sensatas. Mas lembram à minha.
Posto
que sou livre neste bocadinho que ainda não sei bem se é de tempo se de
palavras, vou escrever sobre deglutição. Pois. Comida. “Coisas” que se engolem e me fazem feliz.
Estou precisada de uma felicidade de bolso que comece no palato. Pode parecer
assunto desinteressante, porém, o livro mais hilariante que li de Isabel
Allende aborda a relação dos alimentos com o amor, erotismo e afins. Penso que
contém receitas que comungam do espírito do livro. Com humor do bom. Chama-se
Afrodite e julgo que lhe tenha servido de terapia após a morte da filha. É assim
mesmo, enquanto alguns afundam a carpir dores, ela o fez de variados modos, e
durante vários anos, que um filho não se nos morre sem que a morte nos revolva
da cabeça aos pés. Allende teve necessidade de se resgatar à morte. E Afrodite
é um poderoso documento, a ressumar vida e
boa disposição. Tem vezes em que somos assim, díspares, curamos a tristeza
– melhor é dizer que a esquecemos no momentâneo – com bom humor.
Se
olho para a minha árvore genealógica, desatino deste amor à mastigação. Não
descendo de bons gourmants e nem de
gente adiposa (em tempo de vacas magras quase ninguém era gordo). Desde cedo me
habituei a olhares piedosos e meneios de cabeça, “tão magrinha”, e logo, “gordura
é formusura”. As refeições empanicavam-me. Sempre que a minha mãe chamava para almoço ou
jantar, acorria em lágrimas, o meu pai a rir alto, tás a chorar para quê? Nunca vi ninguém chorar porque vai para a mesa. Um
sofrimento pegado. Não conseguia engolir a comida que rodava de uma bochecha a
outra em repugnância que impacientava a minha progenitora, o sabor a adocicar e
a tornar-se mais intransitável a cada volta. E nem à vista de uma palmada bem
assente, descia a ponte levadiça da minha garganta. Por vezes, a minha mãe
abreviava e alimentava-me como um bebé. E aí era certo, vomitava tudo. Nessas
alturas, a minha mãe, que não era santa nem nada e se preocupava com o ínfimo
que me ia parar ao estômago, desarmava; limpava-me a boca e dava ordem de sair
da mesa. E lá seguia, contente. De estômago vazio. Desse tempo não guardei outros
sabores particulares com excepção de suspiros e bananas, iguarias que só
provava de longe em longe.
No
entanto, aos onze anos, o subtil prazer da mesa foi-se chegando por via de uma
amiga de férias que comia melão, fruta que eu detestava, com tal enfâse que me
causava inveja; além disso, descrevia-lhe o sabor em meneios artísticos de
rolar os olhos e pôr a mão no estômago. Em apoteose, dizia-me, experimenta, vais ver que gostas, o melão
sabe a flores. No primeiro dia comes só um quadradinho, no segundo experimentas
dois e depois já comes talhadas inteiras como eu. Naquela colónia de férias
tínhamos monitoras, mas ninguém como aquela amiga - escrevemo-nos anos e anos
até que filhos e marido a retiraram às letras – me levou a apreciar o que se
come. E era vê-la no dia em que experimentei, em suspense, a observar com
alguma ternura o resultado da sua sugestão gastronómica. Para ela, eu conseguir
comer um quadrado de melão, situava-me no mundo; é que, sem essa experiência, seria
uma pessoa incompleta. É claro que essa amiga de férias fez vida na
restauração.
Hoje
vivo numa terra a formigar de gente, mas decerto não há muito quem se sente à
mesa com a agradabilidade que me anima. Porque em cada dia há o requinte de ser
manhã e haver uma cozinha só para mim a cheirar a café e torradas. De eu ser
nela descansada, o corpo a sacudir sono e deixar cair colheres, os movimentos
num atrofio, pés a tentarem recuperar agilidade enquanto a manteiga toda se
derrete a insinuar molezas que os dentes apetecem. E haver tempo para o calor
da chávena nas mãos que sempre me puxa a melancolia. E logo te sinto ali, imagina.
A existires-me antes do sol. Entre dentadas de pão e goles de café com leite.
Acho que gosto do micro-ondas por me acompanhar manhãs e madrugadas com o mesmo
calor entusiasta. Sim. Que, se me levanto às três ou às quatro, o cerimonial
idêntico. Depois fico um nadinha meio tonta, a mão na persiana, a olhar a rua
que não é ela ainda e aos poucos se vai vestindo de si. E passam vidas dentro
de carros que são relâmpagos apressados no escuro da janela, gente que talvez
não encontre no dia que começa senão muitas horas e minutos de atravessar. E
fico-lhes com pena do cedo, de, quem sabe, se apressarem em casa sem um tempo
de acordar. Mas em mim há certeza de estar viva e de o dia a romper. Então,
volto ao pequeno-almoço, sento-me de novo, afasto a chávena e puxo o copo com o
sumo; passo um invariável dedo nas gotas que cristalizam no cálice a boiar
amarelos e admiro-lhe as linhas que me cativaram na escolha. Tão bonito, beber
por ele a manhã! E atento no sem vontade da compota, a escorrer da colher para
o pão, espessa, em pingos grossos de açúcar que ferveu brandamente, misturado
com os pedaços de fruta; uma brandura apurada em minutos e horas de fogão. E
gosto de pensar que ela nos guarda no sabor, na textura, no cheiro. Estamos os
três dentro do frasco, eu, o açúcar e a fruta.
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