Somos
com as coisas como com as pessoas, se não haja apresentação, passam por nós ou
nós por elas sem quid, jazem submersas
no inomeado, essa panóplia nebulosa de mundo que existe em nós potencialmente, fora
da actualização efectiva do pensamento.
Um possível. Por estes dias, actualizei aquela casa de esquina, números 6 a 8
da Rua 5 de Outubro, mesmo por detrás da maternidade Alfredo da Costa. Posso ter ali passado antes, mas não me existia. Retirei-a do mar potencial onde boiava
cinzentamente. E agora existe-me a esquina e cada cotovelo da casa, existe-me o
proprietário e seu gosto sóbrio, existem-me os vitrais e sua beleza de
borboleta da primavera, cativeiro de olhos e alma que ali sonharam vezes
inúmeras. A Arte Nova tem jeito de asa, qualquer coisa de vôo no estilizado das
curvas, na atenção às minudências, das varandas de sacada aos frisos de
azulejo, da entrada romântica à dinâmica do sobrado interior, do mar de luz do
atelier planeado por Norte Júnior e primeiro prémio Valmor, ao magro corredor onde os modelos se trocavam.
Entra-se
com o maior respeito numa casa que foi habitada e vivida. Subidos os poucos
degraus da entrada traseira, acorre-nos quem o teria feito mais vezes, criadas
de dentro e de fora, governantas, comerciantes e moços de entrega…. lufa-lufa
de trabalho. E, na entrada principal, mais de apetite e romance, senhores enluvados
a passear conforto em seus abafos de inverno e sapatos de pele. Ou na pureza
clara dos linhos de estio, o sombreado agradável da palhinha italiana a cair
sobre o rosto das damas a que as sedas parisienses e o ligeiro da brisa
desvelam curvas virtudes. Não tive notícia acerca de algum casamento de
Anastácio, antes me pareceu um celibatário com boa mania de colecionar obras de
arte. Médico oftalmologista. Abastado. Viajado e erudito. Bonito e de refinado
gosto.
Mas
a casa sem raiz de celibato. Mesmo que de refinado gosto. A casa em sua pose
feminina, num desmentido de suave clareza. Olhe-se do exterior ou do interior e
tudo nela são pormenores de família com seus amores que crescem e minguam ao
sabor da vida, um quê de permanente e inamovível no ar. E, a sobrevoar o bom
gosto, palpa-se a preocupação com a luz no enquadramento e disposição de divisões
e janelas, sempre no rasto do sol. Perguntei o que depois fui descobrindo na
viagem à sua história: foi mandada construir pelo pintor José Malhoa que
participou na feitura com sugestões e pedidos e ali viveu até à morte da
mulher. Depois disso, a fazer-nos lembrar aquele poema de Pessoa acerca de uma
boneca que teima em não morrer com a menina e espreita nos rebordos das gavetas fechadas, desgostoso, não suportando continuar a
habitá-la, Malhoa não arrisca e coloca-a em venda. Dois anos
depois da primeira venda foi adquirida pelo coleccionador Anastácio que a
habitou até à morte e fez do atelier do pintor o seu museu privado. Admite-se
que o intuito de a doar ao estado português, na condição de casa-museu, já
então lhe germinasse o espírito.
E
assim, passear na casa é viajar por dentro do gosto de Malhoa e de Anastácio. Ambos apurados. Mas o meu pendor para casas e sua inalienável unicidade, prefere
Malhoa, António Ramalho e o arquitecto Norte Júnior, que a criaram e
transformaram algo tão prosaico como um lugar de habitação, num nicho de
beleza. A Casa-Malhoa, ainda que despida, seria linda. Pena não estar
conservada como merece. Pena que Portugal seja tão mau tratador do seu património.
As casas são femininas, frágeis mesmo se aparentem robustez, em luta até final
pela identidade. E pouco lhes basta para sorrirem na paisagem.
A
que árduos trabalhos nos entregamos que tanto nos desviam do passado que
ensina? A que despautérios cedemos quando negligenciamos o que é de respeito? A
casa está ali. Ainda airosa de cintura, mas já de chinelo no pé, sem manto ou véu, os laços do vestido secos de dar dó, uma seiva rosada ainda a
esvair-se do pulso breve. Tão bonita em sofrimento grácil! Tão bonita que
apetece uma noite carregá-la, despi-la de velharias, dar-lhe banho,
alimentá-la. E ir de manhã, pelo cedo dos galos que já não cantam, a replantá-la em seu esplendor, na mesma
curva de estrada.
Mas
Anastácio lá está na sala museu, pintado por Malhoa, plácido e tranquilo olhar
verde que reina sobre a paisagem. Junto às suas pinturas, Silva Porto - o único português que
encontrei no Louvre -, Columbano, António Ramalho e mais pintores naturalistas.
E estão parte dos móveis que adquiriu, das porcelanas que carregou de variados lugares, os contadores, chaises- longues, oratórios…
Em seu romantismo de bolor e tempo, a casa recebe todos . Que, à superfície de seus segredos e mistérios, se
julgam substância sua.
Sem comentários:
Enviar um comentário