quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Pregnância

As pessoas são intrigantes, obscuras mesmo se aparentam água límpida. Tanta vez indiferentes ao que as rodeia, alheadas do que não seja elas, relacionam-se com o mundo a desenrolar interesses e desinteresses. E assim condicionam o que e o como de aprendê-lo.  
Hoje acordei e um dos meus eus a sublevar, enganado, uma lentidão de segunda-feira. Pedi-lhe que mudasse a folha do calendário. Adverti-o, já é quarta. Mas - tão teimoso! -, retorquiu-me com maus modos que coordenar com a segunda-feira nem sempre lhe acontece, que tem direito à natureza preguiçosa de segunda e lhe apetecia dormir, fingir de morto. Dizia-me isto e puxava a coberta para cima num movimento brusco de, "não me apoquentes, deixa-me em paz". Dei uma olhadela ao relógio e marcava as oito. Conhecedor dos meus hábitos, resmungava a virar-se para o outro lado, além disso, não há que fazer. Deixei-me convencer. Porém, triste madrugadora, encarreirada em vigílias a desoras e desábito de sonos diurnos, às oito e trinta não aguentei e sacudi-o, anda, vamos beber uma meia de leite, comer um scone. Sorriu-me num trejeito de boca preguiçosa e meia dormente, não sei se me apetece, quero ficar aqui para sempre, que maçada levantar-me. Ciente da necessidade de medidas drásticas, tirei-o da cama, enfiei-lhe os chinelos e amparei-o até à casa de banho. Depois, meti-lhe a cabeça debaixo do chuveiro, ensaboei-o e aclarei-lhe as ideias. Choramingou, não quero viver o dia de hoje, mesmo que não te importem as minhas preguiças paradas em dia de segunda-feira, não me apetecem meias de leite; queria não me levantar da cama, deixa-me regressar por favor.
Devo dizer que os vários eus que vivem comigo não harmonizam facilmente entre si. No entanto, começar o dia a recusá-lo, pareceu-me quase ofensivo e mesmo despudorado, todos sabemos que viver as manhãs é subida íngreme, exige. Estendi-lhe a roupa, veste-te antes que me ataque a filoxera e te atire da varanda. Um pouco mais tarde, o espelho do elevador garantia que competíamos com o dia em cinzentice – eu carregava no olhar umas bossas inauditas; ele, por detrás de mim, a esfumar em atonia e desinteresse.
Já na rua, dei-lhe o braço e atravessámos. Entrámos os dois e foi sentar-se enfadado, perna cruzada, enquanto eu fazia o pedido. Quando a empregada lhe pôs na frente o aroma da meia de leite em vaidade de enfeites e inchada de espuma, sorriu-me grato. Tirou metade de um scone e, à primeira dentada, a sua mão avançou para a minha sem palavras. A meio da refeição, o indicador a apontar a porta, o caniche não retira os olhos dos donos, repara – o cão, todo ganidos e súplica de olhos para a primeira mesa, repuxava a trela presa ao poste; avançava um meio passo e, meio esganado, voltava atrás e repetia tudo. Incessante e paciente. Isolado do mundo e da pressa de repartição no corpo dos transeuntes, enfiado na boia da relação aos donos.
No interior, a manhã reatava hábitos entre os clientes e a destreza jovem e inconsciente da funcionária que circulava entre as mesas, sorriso aberto, gestos em sublinhado de graça natural. Atenta, inquiria de cada um abrindo-lhe naturalmente a janelinha de casa, debruçada sobre a vida que trazia escondida no bolso. Olhei o caniche e o seu incansável e pensei que os cães ficavam à porta, mas as pessoas, essas, entravam inteiras. E entendi a razão de uma meia de leite ser ali outra coisa.
Olhei em frente e o meu eu devoluto impregnara, os miolitos do scone abandonados no tampo. Lá fora, o caniche, desimportado de ser ainda em prisão, subia enlouquecido de saudade pelas pernas do dono, num aparato comovente de mil anos de ausência.

E pensei, trivial, na necessidade de nos religarmos em gestos e interesses pequenos. Religião difícil, esta.

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