As
pessoas são intrigantes, obscuras mesmo se aparentam água límpida. Tanta vez indiferentes ao que as rodeia, alheadas do que não seja elas, relacionam-se com
o mundo a desenrolar interesses e desinteresses. E assim
condicionam o que e o como de aprendê-lo.
Hoje
acordei e um dos meus eus a sublevar,
enganado, uma lentidão de segunda-feira. Pedi-lhe que mudasse a folha do
calendário. Adverti-o, já é quarta.
Mas - tão teimoso! -, retorquiu-me com maus modos que coordenar com a segunda-feira nem sempre lhe acontece, que tem direito à natureza preguiçosa de
segunda e lhe apetecia dormir, fingir de morto. Dizia-me isto e puxava a
coberta para cima num movimento brusco de, "não me apoquentes, deixa-me em paz". Dei
uma olhadela ao relógio e marcava as oito. Conhecedor dos meus hábitos, resmungava
a virar-se para o outro lado, além disso,
não há que fazer. Deixei-me convencer. Porém, triste madrugadora,
encarreirada em vigílias a desoras e desábito de sonos diurnos, às oito e
trinta não aguentei e sacudi-o, anda,
vamos beber uma meia de leite, comer um scone. Sorriu-me num trejeito de
boca preguiçosa e meia dormente, não sei
se me apetece, quero ficar aqui para sempre, que maçada levantar-me. Ciente
da necessidade de medidas drásticas, tirei-o da cama, enfiei-lhe os chinelos e
amparei-o até à casa de banho. Depois, meti-lhe a cabeça debaixo do chuveiro, ensaboei-o e aclarei-lhe as ideias. Choramingou, não quero viver o dia de hoje, mesmo que não te importem as minhas preguiças
paradas em dia de segunda-feira, não me apetecem meias de leite; queria não me
levantar da cama, deixa-me regressar por favor.
Devo
dizer que os vários eus que vivem comigo não harmonizam facilmente entre si. No
entanto, começar o dia a recusá-lo, pareceu-me quase ofensivo e mesmo
despudorado, todos sabemos que viver as manhãs é subida íngreme, exige.
Estendi-lhe a roupa, veste-te antes que
me ataque a filoxera e te atire da varanda. Um pouco mais tarde, o espelho
do elevador garantia que competíamos com o dia em cinzentice – eu carregava no
olhar umas bossas inauditas; ele, por detrás de mim, a esfumar em atonia e
desinteresse.
Já
na rua, dei-lhe o braço e atravessámos. Entrámos os dois e foi sentar-se enfadado,
perna cruzada, enquanto eu fazia o pedido. Quando a empregada lhe pôs na frente
o aroma da meia de leite em vaidade de enfeites e inchada de espuma, sorriu-me
grato. Tirou metade de um scone e, à primeira dentada, a sua mão avançou para a
minha sem palavras. A meio da refeição, o indicador a apontar a porta, o caniche não retira os olhos dos donos,
repara – o cão, todo ganidos e súplica de olhos para a primeira mesa,
repuxava a trela presa ao poste; avançava um meio passo e, meio esganado,
voltava atrás e repetia tudo. Incessante e paciente. Isolado do mundo e da pressa
de repartição no corpo dos transeuntes, enfiado na boia da relação aos donos.
No
interior, a manhã reatava hábitos entre os clientes e a destreza jovem e
inconsciente da funcionária que circulava entre as mesas, sorriso aberto, gestos
em sublinhado de graça natural. Atenta, inquiria de cada um abrindo-lhe
naturalmente a janelinha de casa, debruçada sobre a vida que trazia escondida
no bolso. Olhei o caniche e o seu incansável e pensei que os cães ficavam à
porta, mas as pessoas, essas, entravam inteiras. E entendi a razão de uma meia de leite
ser ali outra coisa.
Olhei
em frente e o meu eu devoluto impregnara, os miolitos do scone abandonados no
tampo. Lá fora, o caniche, desimportado de ser ainda em prisão, subia
enlouquecido de saudade pelas pernas do dono, num aparato comovente de mil anos
de ausência.
E
pensei, trivial, na necessidade de nos religarmos em gestos e
interesses pequenos. Religião difícil, esta.
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