Nas terras pequenas toda a gente se conhece e hoje gostamos de comentar a entreajuda
perdida, mas a verdade é que o Alentejo é uma região feita de pequenos núcleos
desgarrados. Talvez pela dispersão das casas em solidão na planície, os montes
aglutinam gente e não existe espírito de pertença a outro lugar
comum; vilas e cidades são lugares de compras e passeio, mas não lhes entram no sangue. O alentejano campesino é uma extensão do monte e da planície solitária,
herda-lhes o carácter de sobrevivência, a capacidade de sofrimento, a semimorte
de estios sufocantes e a rigidez artrítica dos invernos. Delírio de Van
Gogh, a paisagem arde verão adentro, a oscilar na retina, resistindo ao inferno
dos dias que se prolonga em noites sem um bafo, sob a escuridão abobadada de
estrelas vigilantes que não ousam um sussurro. E no silêncio dos fenos, imaculadas,
as casas dão as mãos e albergam famílias dentro de uma família maior: o monte.
Diz-se, “vou ao monte do tio Eusébio, ao monte da tia Felícia”, ao “Monte
Velho”, ao “Monte das Sesmarias”. E a cada um sua lei e vivência, seus
princípios básicos que os viajantes respeitam, boina que a mão torce calejada,
se lhe pisam solo sagrado, seja rua ou vereda. É no monte que a comunidade
existe; e há mesmo questões que só aí têm desfecho a contento. Esta pequena
rede tentacular iguala todos os moradores em direitos e deveres, homens,
mulheres, crianças. E um problema numa casa repercute em todas as outras.
Por isso, as minhas vizinhas sentiram-se na obrigação de ajudar a tomar
conta dos franceses que observavam como seres superiores - falar francês
não era para qualquer, elas nunca tinham visto um estrangeiro em
carne e osso, havia que aproveitar. O certo é que encontrei a senhora francesa
em casa da minha outra tia, que, em excesso de decibéis, tentava entrosá-la na rede familiar. Não sei como foi ali parar, mas a madame estava muito atenta à irmã do meu pai, que sobraçava uma
quantidade razoável de molduras - com fotografia – e me informou, radiante de
perspicácia, temos estado aqui as duas a conversar, estou farta de lhe
contar coisas. A minha prima a antecipar-se-me numa certeza fresca, a
francesa não percebe nada… E logo a minha tia agastada, está calada,
Natinha. Então eu não sei que a senhora me está a perceber?! Ora esta! Deixa-me
a saia senão ainda apanhas. Ainda agora a senhora me disse, quando lhe mostrei
o retrato do teu irmão, que também tem um filho chamado Filipe, não se está
mesmo a ver que me percebe – e procurava o assentimento da francesa a
abanar um sim com a cabeça inquirindo em tom maternal – a senhora está-me a perceber, não está? A
senhora imitava-lhe o movimento de cabeça e logo a minha tia, estás a
ver, estás a ver. A filha ria baixo e repuxava-lhe a saia, ó mãe
esteja calada que a francesa não está a perceber nada, está a gritar para quê?
Ela não percebe à mesma. Deixe-a lá ir jantar. E a minha
tia convicta, Mau mau, queres ver que tu apanhas? Eu bem sei o que
estou a dizer. Vai lá buscar o retrato da Lurdinhas vestida de noiva e do tio
Luís. – e para mim – A minha Natinha é parva, a senhora
está a perceber tudo; agora não podes levá-la que já só falta a Lurdinhas e o
Tio Luís, já lhe mostrei os meus filhos e mais família – e a esticar o
pescoço para o corredor – Ó Natinha, despacha-te lá e traz o
retrato que está em cima da cómoda; olha que é esse mais bonito onde ela está
sozinha com o ramo na mão. A minha prima entrou na cozinha a balbuciar
qualquer coisa, mas a mãe arrancou-lhe a foto e logo para a francesa, Esta
é a minha sobrinha Lurdinhas, filha da minha cunhada Anunciação – a
senhora abanava a cabeça sem entender; e ela a ponderar baixinho, o olhar
ensimesmado num canto da cozinha - como é que eu lhe hei-de dizer quem
é a tia Anunciação??! – a minha prima contínua, ó mãe não faça
figuras tristes. E a minha tia a endurecer a expressão, virada para mim, esta gaiata é mesmo parva, a senhora percebe tudo o que eu lhe digo. – impaciente para a filha – Não te mandei
trazer o retrato do tio Luís que Deus tem? Vai lá buscá-lo
que eu assim explico melhor. E para a senhora, o indicador a passear no
vidro da foto da Lurdinhas, não fosse haver um pozinho fino que desfigurasse a
noiva, esta é a Lurdinhas, filha da Anunciação e do meu irmão Luís que
Deus tem – num aparte raciocinante – ai, isto é que ela não
percebe de certeza –. e numa decisão súbita –. Dá-me lá aí o retrato
do tio, Natinha. A minha prima a estender-lhe a moldura de má vontade, ó
mãe…Mas ela enfileirada num caminho sem regresso. Decidida. Com um retrato
em cada mão e aos gritos para a mãe da Bernardette, enquanto a filha, meio
a rir meio com medo de apanhar algum sopapo, não grite tanto, a mulher
não é surda. A minha tia indiferente, a brandir o retrato do
irmão, este é o meu irmão – e
elevava-lhe o retrato à altura dos olhos - é pai desta –
erguia a foto da noiva -. Morreu! - concluiu num grito
sincopado. A minha prima refugiada na porta da cozinha, com medo de um enxota moscas, mas perdida de
riso, a mãe não vê que ela não está a perceber? A mãe à
procura de gestos e eles sem aparecer; e logo para mim, ó Beatriz como
é que se diz que ele morreu em francês, diz lá tu à senhora. Eu disse.
Meia duvidosa, ela já sabe que o tio morreu? Descrente de mim
e já na posse de gestos novos, voltou a gritar, morreu! E
deitava a cabeça, olhos fechados, nas duas mãos juntas e horizontais. Não
contente, gritou ainda, por via de dúvidas e a completar informação, atropelado por um tractor.
E para si mesma, como é que isto se conta? Ah, já sei.
E desatou a fazer ruídos de motor como criança pequena que brinca com
carrinhos, enquanto, olhos cerrados, passava com ímpeto os punhos fechados pelo
tronco, abaixo acima, abaixo acima. A Natinha chorava de riso e eu
idem. A francesa, muito séria, tentava descodificar a mensagem. Quando abriu os
olhos, a farsante improvisada sorria, satisfeita com o desempenho e crente no
poder da mímica.
Não arrisquei perguntas e fui procurar-lhe o marido, a minha tia a garantir-me
segura, fica descansada que eu já levo a senhora, ainda lhe vou mostrar
a casa.
Encontrei o Francês mais velho junto ao Mercedes, com o meu tio que pouco palrou ao longo da vida, a comentar apreciativo, isto é que é um
carro, sim senhor! - e dava palmadas na carroçaria. Depois, fazia
uma pausa admirativa e, enquanto conferia uns pontapés nos pneus, gabava, belos
pneus, olha para o rodado que fazem, novinhos em folha. Isto é que é...E o senhor, humm…humm..hummm…
Ficou no segredo dos deuses a impressão que deixámos nos franceses, mas se eu
visse um homem às palmadas e aos pontapés no meu automóvel, – mesmo que pequenos - julgaria que tinha juízo mole.
A leste destas reflexões, levei o francês para a mesa onde a minha tia, solícita e segura
como nunca a vi, sentava a mulher, a Lurdinhas ainda a espreitar-lhe por
debaixo do braço, no eterno açucarado das noivas. O meu pai, já sentado e
sorridente, exibia certo ar de italiano marialva, os suspensórios dos domingos
a ressaltar no alvo da camisa e o cabelo de depois do banho, risca ao lado, o
arrepio invisível. Tive orgulho nele. Estava bonito e jovem, não se parecia
nada com o tal dos murros na mesa.
A irmã da minha mãe decidira que só a nós dois, lado a lado, era dada a
honra de comer com os franceses. Eles, esfomeados e inteligentes, aceitaram de
boa mente. Levantei os olhos para o meu pai e súbita me nasceu uma ternura; passei-lhe a mão no arrepio
domesticado. O meu pai engasgou, então que é isso? E logo o arrepio tirou proveito do timing, desanuviou e espetou-se como de hábito. Eu, desculpe, pai. E ele, deixa, não faz mal.
Entretanto, a minha tia materna, no seu jeito de barco a sulcar águas, sorriso quente que não sei como um homem pôde desprezá-lo, trouxe a primeira travessa.
Entretanto, a minha tia materna, no seu jeito de barco a sulcar águas, sorriso quente que não sei como um homem pôde desprezá-lo, trouxe a primeira travessa.
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