sábado, 8 de novembro de 2014

Depois da Chuva

Apesar do arroz doce sobre a mesa é o cheiro a maçãs assadas que ciranda no ar. Imagino que se alguém lá fora – mas claro que ninguém lá fora, talvez eu sozinha neste andar, bem noto ao escurecer que as luzes acesas em todos os andares excepto aqui –, a pituitária agradada, atardemo-nos, cheira a maçãs. É um bom aroma o cheiro a maçãs assadas; as minhas desculpas ao paladar, mas é o cheiro do fruto que impressiona. Vou à varanda e a cadela que não distingo se cadela se cão, espera-me em baixo, paciente. Os bichos solitários conhecem-se uns aos outros, atraem. Saio e logo ela avança contente, na alegria de abrir presentes de Natal, ou, sendo mais canina, roer um osso recheio de carne. E nada disso. Seguimos pelo passeio até à ponte. A cadelita avança na frente, a parar árvore sim árvore não – deve ter um problema na bexiga maior que o meu – e a apanhar-me de seguida. De repente para, orelhas fitas para o outro lado do rio onde três ou quatro pessoas varejam oliveiras, azeitonas pretas a cair em pés de lã, meio zonzas e desasadas no trambolhão, upss, aleijei a cabeça, devo ter batido num tronco, ou, oh, que violência é esta a desprender, logo agora que estava a conversar com a comadre. Golpes de vara atiram-nas sobre panais azuis onde depois as mãos se fazem galinhas bicando milho pressuroso. Aproximo-me da atenção do animal, chamo-o. Entrega-se em contentamento, deixa-se afagar. O que todos os seres gostam de festas, as árvores a rir se uma mão lhes passeia o tronco, as couves galegas que reverdecem a um toque dedos, as flores a imporem-se em nitidez se as acarinhamos com os olhos. E mais. O mundo precisa desse modo relativo para rolar no seu eixo.  
Mal eu, vamos, logo me precede  em passinhos certos. Chegamos e pára num olho cúmplice. Aproximo-me a meio da amurada sobre a água a ajuizar, diz-se amurada numa ponte ou não. Ela, púdica e educada, atravessa para o outro lado. Fico a sós com o fascínio aterrador e escuro da água. Medito, se eu caída lá em baixo, chegaria a sentir o choque frio ou desmanchava-me toda antes do mergulho final. Decerto me desmancharia sem graça, as vértebras do pescoço a dar de si, desistimos. Não o meu corpo em parábola, gracioso, mas uma rodilha de roupas e limos comigo que já não era mim no interior. Sem cor, que os afogados vêm lavados à tona, a água sabe o que faz. Mais que lavados, desbotados. Lívidos, lábios roxos, pernas hirtas, uma aspereza de corda desfiada nos cabelos, as miudezas todas à mostra, até que alguém um casaco, um cobertor, como nos filmes. Volto-me e espio a cadela. Observa-me expectante, nos olhos um pedido, agora tens de ir ver do outro lado. Corre na minha direcção e adianta, nem tudo é negro, vai, anda mais um bocadinho. Obedeço-lhe e a espuma que se eleva da queda da água antes aprisionada, encanta. Lembra antigas lavadeiras a baterem lençóis na pedra, remoinhos de barco no mar, liberdade de brancura em tardes abertas e soalheiras.
Contudo, não faz sol e um vento frio encana sobre o rio a varrer folhas, cheira às árvores depois da chuva e nem um grão de poeira no ar. Não sei se há Deus. Mas estou aqui, leve, no meio desta nitidez deserta de gente. Eu. E todos os meus sentidos intensos e puros, a percepção numa agudeza que comove.

Subimos de novo e serpenteamos junto à estrada; passamos ao largo dos restos da Casa Maial sobre que ainda hei-de escrever para firmar este desgosto ainda etéreo, que as palavras vão fotografar à luz que me coube. Olho os longes da serra. Escuto-lhe o silêncio, o ruído das motosserras ausente.  O sábado poupou-me a visão confrangedora das árvores a cair em rapidez, uns anõezinhos maléficos a correr de um lado a outro. Os socalcos estão sozinhos. Oiço-lhes a conversa silenciosa. Enfim, repousam. Só o esporádico de um ou outro automóvel que circula na preguiça do dia interrompe o descanso natural. Imagino que os bichos campestres, num fuge-fuge de chuva, se refugiaram em casa. Quem sabe bebem chá por cálices de flor, sentados em sofás de folha. Perdi entretanto a minha companheira. Regresso por humidades incógnitas e benfazejas, casa fechadas que o rio rodeia em quedas de água pequeninas. Olho-lhes as pálpebras cerradas, como será viver com a água por companhia? Estugo o passo que ressoa, marquei encontro com um bule e uma chávena, não quero pô-los em espera:) 

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