Olho o dia e não augura. A cor de chumbo
rodeia todas as coisas, como se alguém ponha a uso um pincel
mal lavado, ainda a suar restos de preto, numa aguada que condensa
em cinza violento e entristece a paisagem. Impressiona esta saturação de
humidade, o ar parado de silêncio, a morrinha a fazer cama. Lá fora, há flores
abertas, branco arrependido e pesado de gotas, foi por engano, desculpem,
pensávamos que era primavera, para o ano já não acontece. E a nossa experiência
de florações extemporâneas a recear do milagre. Não raro, custa a vida às
pobrezinhas que arriscaram delicadezas de inverno. E, contudo, estão ali, a
corola a pendurar, cabisbaixas. Quebradas, florescem na ponta do
arco breve que o lápis estranha. Perplexo, fica a remoer indecisões, como é que
se desenha este arqueado de vergonha de flor; o papel em contraditório, a
aguçar frenesins, então... cuidado aí com essa ponta, estás-me a
escalavrar o liso. E as flores que não sabem nada disto,
acachapadas de chuva, Deus, o peso de cada gota.
Em breve, a escuridão vai engolir a
paisagem e a brancura dos cálices esvai, primeiro pardacenta, depois em negrura
indistinta. Talvez as flores durmam sem sonhos, não tenham pesadelos de água,
se desviem rindo de fatalismos e futuros macabros. Sejam apenas elas num hiato
de existência. Ou existam parcamente, amodorradas de silêncio gelado,
arrefecidas de seiva. E quando pensava nas friezas de flor, em raízes
engadanhadas e a tremer agruras sob a terra, a campainha desinquietou-me o
pensamento.
Vou correndo que a minha campainha
pouco toca e tenho que aproveitá-la. Abro a porta e dou de caras com uns óculos
quase submersos por cabelos desalinhados, em conjunto hipnótico com as
lentes, resvalando em monocronia, para cima e para baixo, os olhos a piscarem lá atrás de tudo. Apetece-me
deitar mão ao cabelo invasivo, mas a boca começa imediatamente a abrir e fechar
e desvia-me o propósito. Fala. Deve estar falando. Para mim. Os olhos por
detrás dos óculos confirmam, é comigo. Não fixo as palavras e elas soltam-se e
giram por ali sem nexo, em volta de nós duas. Estou vidrada na boca
que abre e fecha, lábios que se alongam e encurtam quase em assobio, deixando ver dois dentes lascados na ponta. Perto. De cada
vez que ela fala os dentes mostram-se. Está séria, quase pesarosa, mas os
dentes lascados são sorriso que me descansa. Que será que diz ?! Dou
por mim pensando que um baton de cieiro lhe resolvia o problema dos lábios
esbranquiçados, uma greta a meio, mais funda, tocada de sangue. De repente, o
som ligado, a vizinha sabe, foi professora primária, não acha que a menina tem
um trauma?
Fico parvamente a tentar recuperar a
conversa e ponho a uso o meu ar de vizinha (próximo) paramentado de professora
(um bocadinho mais de empáfia). E o que havera de ser?! Bom, parece que, antes,
a netinha sabia ver horas e agora, não. E ela volta, a vizinha não
acha que a menina precisa de ir ao psicólogo? O meu filho tem uma boa caixa,
não paga quase nada...é que a menina anda com medo e a professora pergunta-lhe
sempre as horas agora que sabe que ela não é capaz de as ver (a malandra da
professora). E patati e patatá.
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